Por Marilin Novak
Quando uma maratona, dessas tradicionais, vira mamão com açúcar, a solução é apimentar o desafio. Que tal então cruzar a Cordilheira dos Andes correndo? Além das mais de 25 mil passadas necessárias para percorrer os 42.195 metros de uma maratona, outros ingredientes são acrescentados ao perrengue: um frio de lascar à noite, um sol de torrar de dia e 50% a menos de oxigênio entrando no pulmão, no ponto mais alto do percurso. Tudo isso embalado por uma inebriante sensação de tontura e ânsia por causa da altitude. E pior: pensar em desistir significa ter a sua equipe inteira desclassificada.
Resumidamente, esta é a Cruce de los Andes, uma ultramaratona que existe há 16 anos. A edição mais recente aconteceu entre os dias 2 e 4 de fevereiro, com largada na Argentina (San Juan) e chegada no Chile (La Serena). Para transpor a famosa cadeia de montanhas que divide os dois países, dez equipes percorreram exatos 506 quilômetros e 340 metros, o que dá uma maratona olímpica completa para cada um dos 12 integrantes da equipe. O percurso é invertido todos os anos, mas alcançar o topo do Água Negra, a 4.722 metros, é sempre o calo mais doído nos pezinhos dos corredores.
O legal é que este ano teve tupiniquim na jogada. A equipe Brasil 1 debutou na competição, com 12 homens de cinco estados brasileiros (SP, RJ, PR, SC e RS). Quem juntou essa trupe foi Carlos Roberto Duarte, 55 anos, professor de educação física e organizador da Volta à Ilha, uma corrida de revezamento que contorna Florianópolis (SC). Para entrar na brincadeira, eram necessários alguns pré-requisitos: ser maratonista, ter grana para cobrir seus próprios custos e ainda ficar uma semana viajando. Três meses de procura e a Brasil 1 estava formada. Não ter nenhum atleta com experiência em corrida acima dos quatro mil metros era o principal desafio dos brasileiros. “Nosso grupo era formado por atletas medianos: nenhum destaque, mas também nenhum fraquinho”, conta Carlos. O time tinha cinco atletas acima de 50 anos, o mais velho com 63.
Buscando a melhor distribuição por atleta, Carlos assumiu a sétima etapa, uma antes da tão temida etapa Água Negra, que sobrou para João Luiz Javero. Infelizmente, João se sentiu mal nos últimos 10 quilômetros, caminhando em alguns trechos. “Ele só não parou por que foi muito determinado. No auge do cansaço, não tinha forças nem para levantar um copo de água”, conta Carlos. Como o líder da prova – o argentino Iván Avila, da equipe Viento Zonda – era muito bom, finalizou sua maratona uma hora e meia antes do segundo colocado e, segundo a regra, os atletas que vem atrás são obrigados a terminar a prova em até três horas depois do campeão. João terminou o percurso ultrapassando três minutos desse tempo e a equipe brasileira foi desclassificada.
Já Carlos conta que estava tudo beleza com ele até o km 30. “A partir daí, minhas pernas ficaram pesadas e começaram a incomodar muito”, explica. De terceiro lugar, Carlos caiu para quase último. Completou o percurso em penúltimo, em 4h30min, cerca de 40 minutos a mais da sua meta. “Pensando agora, eu deveria ter feito um treinamento mais específico e me poupado mais no começo”, analisa. Mas, classifica a experiência como “muito legal”.
Opinião compartilhada por outra atleta verde-amarela, a curitibana Elisete Pereira, 44 anos, é uma veterana nos Andes. Ela competiu, pela segunda vez consecutiva, com a equipe argentina Kurufmawida, ou “vento das montanhas” em mapuche, língua de um dos primeiros povos da Argentina e Chile. Elisete é uma servidora pública curitibana que contabiliza mais de 100 provas no curriculum. Começou a correr na década de 70, mas parou nos anos 80 para cuidar da filha e só voltou a gastar o tênis em 2003, quando virou ultramaratonista.
Elisete encarou a décima etapa da prova, já em solo chileno e mais pertinho do mar. Ela brinca que fez uma pré-maratona desde o momento que saiu do Brasil, na segunda-feira (29), até a largada, às quatro da matina do domingo. Entre viagem de avião, ônibus até a cidade da largada e depois até o seu alojamento, no Chile, foi quase uma semana completa de correria, horas de viagem e noites mal dormidas – afinal, enfrentar os alojamentos oferecidos pela organização era de arrepiar. “Tinha tanta barata que nem gosto de lembrar!”, conta a brasileira.
Logo após a largada da sua etapa, Elisete já viu seus concorrentes sumirem na frente. Mas, ficar para trás tinha lá as suas vantagens. “Até o km 5 eu ainda enxergava o povo. Depois, fiquei completamente sozinha na montanha. A lua cheia era tão forte que eu desliguei a luz estroboscópica. Restaram eu e a minha sombra!”
“Às nove horas, surgiram na minha frente os últimos 10 quilômetros: uma subidona de deixar a perna quadrada! Eu só enxergava as curvas em ‘s’ lá no horizonte”. O desafio era tão casca-grossa que ela jura de pés juntos que a organização errou na marcação dos quilômetros do trecho. "Se o pórtico não estiver depois da curva, eu desisto”, pensava. Mas além de guerreira, Elisete é companheira, e sabia que desistir deixaria a equipe fora da batalha. “Coitadas das meninas, depois de tanto esforço! Nem que eu chegasse de quatro eu terminaria, por respeito a elas”.
E não é que a única equipe do sexo “frágil” mandou superbem? As garotas terminaram em quinto lugar na geral, com 57h15min23s totais, somando o tempo das 12 competidoras. Elisete conseguiu terminar a prova depois de suadas 5 horas e 27 minutos, com direito à bandeira do Brasil nas costas ao cruzar o pórtico. “E ainda voltei com uma relíquia: o troféu, que elas fizeram questão de me dar!”. A Brasil 1 fez em 57h31min49s, mas foi desclassificada por causa da sexta etapa. A campeã Viento Zonda venceu em 48h37min25s.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2007)
ALUCINANTE: Todos os perrengues são minimiados pelo visual inesquecível
CORRERIA: Os atletras raçudos da Brasil 1
A CAMINHO DA CORDILHEIRA: O pior ainda estava por vir