Por Bill Gifford
ELE ESTÁ DESACOMPANHADO, mas não sozinho. Há crianças ao lado da estrada, acenando tímidas quando ele passa, e homens ociosos descansando nas raras sombras. Há uma motocicleta amarela acompanhando-o, com rodas sobressalentes, para o caso de um pneu murcho, e um pequeno comboio de carros oficiais, seguindo no ritmo imposto por ele. Em algum lugar atrás disso tudo está o pelotão principal. Uma moto da polícia se aproxima e uma pequena lousa é colocada diante de seu rosto: 40 segundos. Ele aumenta a pressão nos pedais, aumentando ainda mais a sua liderança.
Os outros ciclistas podem vê-lo, é claro. A estrada é plana e reta como uma serpente esticada, e a liderança que ele luta para manter é de menos de um quilômetros. Quando Jérémie Ouedraogo (pronuncia-se "ué-DRÔ-go") abriu do pelotão, ganhando terreno, uns poucos tentaram persegui-lo, mas não por muito tempo. Talvez achassem que era cedo demais para uma fuga como essa funcionar, ou talvez tenham visto a cor de sua pele e achassem que ele não tinha chance. Mas ele foi assim mesmo e agora está imprimindo uma cadência forte e constante pela savana, suas rodas girando como o silmandé, o vento rodopiante, que transporta feiticeiros e espíritos por grandes distâncias, mas não ciclistas. Ele ultrapassa uma linha branca no pavimento: faltam 25 quilômetros.
Ele é um rouleur — um puxador. Enquanto outros se contentam em ficar no bolo, protegidos do vento, Jérémie faz as coisas acontecerem. Hoje pode ser que ele consiga chegar na frente dos brancos — os holandeses, belgas e franceses. É o oitavo de onze estágios da corrida, todo mundo está cansado, e ele está muito atrás na classificação geral para ameaçar a liderança de alguém, então talvez o deixem ir na frente.
Ou não. O pelotão está despertando, os corredores já sentem o cheiro da linha de chegada. O vento também está despertando, correndo direto contra seu rosto, e como ele está só, isso é a perdição. O lousa novamente: 30 segundos. Suas pernas pesam como chumbo. Então 22, 15, 5. Eles o engolem.
Uma hora depois, Jérémie observa os juízes franceses da corrida darem a camiseta de vencedor da etapa — a primeira dada a um africano ocidental neste ano — para N’gatta Coulaibaly, 33 anos, um ciclista da Costa de Marfim que ele mesmo já derrotara várias vezes no passado. Coulaibaly está tão exausto que mal consegue ficar de pé, sua bermuda dourada com manchas escuras de urina. Suas lágrimas de alegria misturam-se ao suor enquanto faz uma dança de vitória descalço, para felicidade da multidão de centenas, a maioria de africanos.
Jérémie, um nativo de 27 anos de Burkina Faso, espera pacientemente para receber a camiseta vermelha de "combatividade", dada ao corredor mais agressivo — sua recompensa pelos longos e solitários quilômetros. Ele a veste rapidamente, beijas as meninas no pódio e sorri para as câmeras. Mas é um prêmio de consolação, e ele sabe disso.
NÃO ERA PARA SER DESSE JEITO. Não neste ano, com as bicicletas novas, o treinamento na França e metade da imprensa esportiva da Europa reunida na pequena Burkina Faso — uma ex-colônia francesa desesperadamente pobre perdida entre Mali, Níger, Gana e a Costa do Marfim — para cobrir o Tour du Faso, a única prova de ciclismo profissional e com sanção internacional realizada na vasta extensão continental entre o Saara e a África do Sul.
Depois de oito dias, o país anfitrião ainda não tinha do que se gabar. Sua meia dúzia de ciclistas não ganhara um único estágio. O burkinabé melhor colocado, Saïdou Rouamba, de 34 anos, estava muito satisfeito com seu 15º lugar, mais de 15 minutos atrás do líder, sem esperança de competir pelo título. Jérémie Ouedraogo estava em 18º, mais três minutos atrás. A maior parte das melhores colocações estava ocupada por europeus. Havia um marroquino em terceiro e outro em sexto, mas ninguém da África Ocidental estava sequer perto.
Estrangeiros sempre se saíram bem no Tour du Faso, realizado ao longo de 12 dias em novembro. A primeira corrida foi vencida em 1987 por um russo, e embora equipes africanas tenham triunfado em 9 das 14 vezes, os europeus dominaram os últimos anos, conforme a corrida foi ficando mais popular entre os profissionais de primeira linha e amadores aventureiros. Há quem curta o exotismo da região, há quem venha em busca de pontos para o ranking internacional, e há quem apareça por puro altruísmo, trazendo peças de bicicletas difíceis de obter para os ciclistas locais, ou suprimentos para hospitais rústicos. Todos são inspirados pela oportunidade de encontrar uma forma mais pura de um esporte que na Europa foi manchado por escândalos de doping e pelo excesso de comercialização.
Como resultado, o nível da corrida subiu, mas os ciclistas africanos depararam-se com dificuldades maiores que os tremendos obstáculos no treinamento e na obtenção de equipamento em uma região que passou décadas com uma economia sofrida. Como seus vizinhos, Burkina Faso possui pouca indústria ou recursos naturais. Poucos minerais, não muito água, e nada que atraia os turistas. A taxa de infecção por HIV é horripilante e o analfabetismo é a regra. A renda média anual per capita de US$ 230 mal dá para comprar sapatilhas de ciclismo. Não há oligarquias podres de ricas, como no Congo ou na Nigéria, porque não há muito a ser saqueado ("Aqui, a pobreza é distribuída igualmente", me disse um dos operários europeus trabalhando na região). Controlando tudo isso está o presidente Capitão Blaise Campaoré, de 51 anos, um ditador militar que não é desafeito à corrupção, tendo permitido que seu país fosse usado como rota de contrabando de diamantes e armas.
O último ciclista local a ganhar o Tour du Faso foi Ernest Zongo, em 1997, ano em que somente uma fraca equipe belga participou. Um francês ganhou em 1998, um egípcio em 1999, e em 2000 uma esquadra de profissionais italianos levou cinco dos seis primeiros lugares. O evento em 2001 estava saindo do mesmo jeito — uma equipe internacional com base na Holanda havia tomado a liderança no primeiro dia e não largara mais. Os jornais locais, como o L’Observateur, estavam transformando o mal resultado de Burkina Faso em uma crise nacional, acusando a equipe local de "sempre interpretar papéis secundários".
Para piorar tudo, a humilhação estava sendo transmitida para todo mundo ver. O Tour du Faso 2001 foi organizado, pela primeira vez, pela Société du Tour de France, a organização parisiense que monta o maior evento do ciclismo todo mês de julho, e que surgiu para salvar a corrida de Burkina Faso quando ela estava à beira do colapso. Com um orçamento de quase meio milhão de dólares, o pobretão Tour du Faso arranjou umas roupas novas. Havia transmissões toda noite para a Europa, melhores prêmios em dinheiro para as equipes (cerca de US$ 30 mil ao todo), belas garotas no pódio para beijar os vencedores das etapas, e o pentacamepão do Tour de France, Bernard Hinault para dar a maillot jaune — a camiseta amarela — ao líder geral. Parecia um Tour de France em miniatura, só que mais quente.
Os franceses convidaram seis equipes européias amadoras — quatro francesas, uma belga, e uma turma internacional da Equipe de Ciclismo Marco Polo — para competirem com dez equipes da África e do Oriente Médio, incluindo dois grupos de seis homens de Burkina Faso e equipes de Níger, Mali, Costa do Marfim, Camarões, Marrocos, Togo, Egito e Síria. Para se prepararem, um grupo seleto de ciclistas de Burkina Faso (incluindo Jérémie) viajou para a França em setembro de 2001 para seis semanas de treinamento, cortesia da Société. Alguns até ganharam novas bicicletas — bem, bicicletas semi-novas, mas ainda melhores que as velharias remendadas que vinham usando.
Mas agora estavam correndo como amadores. Pior: os amadores estavam acabando com eles. O líder da equipe de Burkina Faso — Hamado Pafadnam, um homem alto de 28 anos — estava passando por um belo aperto. O Tour du Faso deveria ser a sua chance de aparecer, mas ele vinha sofrendo com pneus vazios e acidentes, resultado com certeza de mau olhado por parte de algum inimigo invisível. Alguns membros da equipe tiveram seus momentos — Jérémie terminou a primeira etapa logo atrás da equipe líder — mas o resto estava completamente desnorteado. O chefe da Federação Nacional de Ciclismo de Burkina Faso, um homem com jeito de imperador chamado Adama Diallo, tinha passado um sermão nos atletas, dizendo que estavam sendo covardes, sempre seguindos os europeus.
Diallo não sacava muito de provas de ciclismo — tinha sido jogador de futebol na juventude e se ofereceu como voluntário para chefiar a federação — mas Jérémie não tinha como discordar. Sentado sob a sombra de uma acácia, algumas horas depois do final da oitava etapa, na cidade comercial de Fada N’Gourma, falou de seus companheiros: "Eles não estão em forma. Estão com medo de atacar. Quando saí na frente hoje, chamei meus colegas para se juntaram a mim, mas nenhum deles quis". Jérémie estava desgostoso, mas filosófico. Faltavam três etapas, o que dava três chances de vitória. Seus colegas estavam sussurrando sobre feitiços e conspirações, mas Jérémie estava sempre calmo. Só uma coisa era certa. No dia seguinte ele atacaria de novo. Era a única coisa que ele podia fazer.
O CICLISMO AFRICANO É MEIO como hóquei no gelo australiano. Pouca gente sequer sabe que existe, e ninguém espera muito dele. Mas, da mesma forma que os britânicos levaram o críquete para a Índia e Caribe, os franceses introduziram o cyclisme em suas colônias africanas. A independência já estava próxima quando, em 1959, os franceses montaram uma corrida de exibição em Ouagadougou, a quente e empoeirada capital de uma colônia então chamada de Upper Volta.
Aquela corrida, num circuito fechado curto com ciclistas europeus de primeira linha, entrou para a história do ciclismo, mas somente por causa de suas conseqüências. O secundo colocado — o grande italiano Fausto Coppi, bicampeão do Tour de France e melhor ciclista de seu tempo — foi para um safári depois da competição e ficou doente. Os médicos na Itália acharam que era uma gripe, mas era malária, e fatal. Coppi morreu em janeiro de 1960, aos 40 anos.
Mas a semente do ciclismo havia sido plantada e a corrida de Ouagadougou se tornou um evento anual que acabou transformando-se no Tour du Faso, sob a tutela do falecido Thomas Sankara, um carismático oficial do exército que havia tomado o poder durante "La Revolution" de 1983. Sankara instituiu uma série de reformas e rebatizou o novo país como Burkina Faso (uma frase que quer dizer "Terra dos Incorruptíveis" nas duas principais línguas nativas, o moré e o dioula). Em 1987, ele criou o Tour du Faso, convidando uma equipe júnior soviética para a competição. Pouco depois ele foi deposto, executado e jogado em uma vala comum por seu antigo amigo revolucionário, Blaise Campaoré.
Até agosto último, parecia que o Tour du Faso também estava fadado à extinção. A federação nacional tinha ficado sem dinheiro. Não havia fundos para financiar as corridas, comprar bicicletas novas ou organizar um campeonato nacional. Mas, no final do verão, os franceses — motivados em grande parte por uma afeição remanescente pelo evento — chegaram para salvar o dia.
"Eu queria me envolver naquela corrida porque já a tinha visto e sabia como ela era incrível e humana", diz Jean-Marie Leblanc, de 58 anos, diretor-geral do Tour de France e convidado de honra do Tour du Faso em 2000. Mas esse sentimento de amizade ficou seriamente abalado quando funcionários da Société foram a Ouagadougou em agosto e descobriram que seu dinheiro tinha evaporado misteriosamente. E isso dois meses antes do início da competição.
Pelo menos o percurso já estava definido. Burkina Faso tem poucas estradas pavimentadas, todas saindo da capital como aros de roda. Um evento com 1.302 km tem que usar a maior parte do asfalto esburacado do país, por isso a corrida tradicionalmente começa em Banfora, uma pequena cidade comercial no sudoeste, perto da fronteira com a Costa do Marfim, e segue até Ouagadougou, bem no meio da nação. Dali, faz várias idas-e-voltas, se enfiando no mato um dia e voltando no seguinte.
Algumas semanas e centenas de milhares de dólares dos fundos da Société depois, todos os problemas logísticos estavam resolvidos. As equipes foram convidadas, a imprensa internacional avisada e um buffet francês contratado para fornecer refeições, completo com fatiazinhas de Camembert. O Tour du Faso estava pronto para começar.
Ou era o que parecia. Alguns dias antes da largada, quase que tudo ruiu por terra. Uma greve da Air Afrique deixou metade dos ciclistas presos em vários aeroportos da Europa e norte da África. Conforme os competidores iam chegando, com olheiras profundas e sofrendo com o fuso-horário, os sírios e egípcios cancelaram sua participação, assim com os togoleses.
E ainda teve o problemas com os carros, que o Ministérios dos Esportes e da Juventude de Burkina Faso deveria ter providenciado. Na verdade, os carros estavam ótimos — uma frota de táxis branquinhos que serviriam como veículos das equipes, mais um esquadrão de minivans alugadas. Dois dias antes da largada, os oficiais da corrida pediram que os carros e seus motoristas se reunissem no Estádio de Quatro de Agosto, uma monstruosidade de concreto construída pelo governo na periferia da cidade. No interior embolorado do estádio, os franceses foram informados por representantes do Ministério que o preço dos veículos seria muito maior do que o previamente combinado. Senão, não haveria Tour du Faso. Não foi uma reunião feliz. No final, a Société deu o braço a torcer, o Tour prosseguiu como planejado, e os franceses deram de ombros e murmuraram, "C’est l’Afrique".
AS DIMENSÕES DO DESEQUILÍBRIO NO TOUR DU FASO ficaram evidentes na manhã da primeira etapa, quando os ciclistas se reuniram na praça principal de Banfora. Em meio a um bosque de árvores altas, as equipes descarregaram seus veículos, almoçaram e montaram suas bicicletas: belas e novas máquinas de alumínio de fibra de carbono para os europeus, de marcas famosas como Colnago; antigas Peugeots para a maioria dos africanos, com selins rasgados, pedaleiras antiquadas e fita isolante nos guidões. Seus capacetes estavam todos amassados e seus calçados esfarrapados.
A maior parte da multidão se juntava ao redor das vans da equipe de Burkina Faso, onde Jérémie se preparava para a corrida de seu jeito de sempre: com roupa de corrida verde e branca, um walkman grudado na cabeça, ouvindo o astro do reggae Lucky Dube. Ele é alto e boa-pinta, com olhos vivos que projetam uma autoridade silenciosa Apesar do líder oficial da equipe ser Pafadnam, é para Jérémie que seus colegas se voltam durante as corridas, para quem vão buscar uma cerveja gelada depois da chegada.
Sua bicicleta, recostada em uma árvore, é uma Eddy Merckx laranja e preta, só uns poucos anos defasada. Na verdade, ela não é sua; pertence à federação nacional de ciclismo, que a ganhou da fabricante de bicicletas que pertence a Merckx — o lendário belga que ganhou o Tour de France nas décadas de sessenta e setenta.
Jérémie a odeia. É grande demais e de alumínio, dura e insensível. Ele preferia estar em sua própria bike, apesar de velha e pesada. O quadro de aço dela é mais flexível que o de alumínio, e, o mais importante, após milhares de quilômetros de treinamento, seu corpo havia se adaptado às suas dimensões. O apelido dela, "Rasta", está escrito no garfo dianteiro. Mas ele não tem escolha. Os franceses lhe deram essa bicicleta, e o que pareceria se a recusasse? Tirando seu walkman e guardando uma banana no bolso de sua camiseta, ele segue para a linha de largada.
A corrida começa forte e a seleção é impiedosa. Já na primeira subida, um dos ciclistas de Níger fica para trás. Curvado sobre o guidão, meio fazendo careta, meio arfando, ele tenta alcançar os outros, mas falha. A Radio Tour anuncia: "Ciclista nº 26 ficou para trás do pelotão". Em 20 minutos, quatro dos seus cinco companheiros também estavam comendo poeira.
Os africanos não são os únicos a sofrer. Por alguma razão a primeira etapa começou às duas da tarde, a hora mais quente do dia, quando as lojas se fecham e nada nem ninguém se move. A temperatura está na casa dos 40ºC, e depois de meia hora de corrida, os franceses, de rosto vermelho no final do pelotão, estão virando suas garrafas de água vazias, desesperados.
Lá na frente, os líderes estão enfiando o pé na tábua, e a corrida se divide em meia dúzia de grupos pequenos. Jérémie consegue entrar no pelotão da frente, mas fica para trás a uns poucos quilômetros da chegada em Bobo-Dioulasso, a segunda maior cidade de Burkina Faso. Ele termina em décimo, cerca de dois minutos atrás do líder — bem na frente de seus colegas, e o melhor africano ocidental.
Trinta minutos depois, ainda há ciclistas chegando, bem depois de Hinault ter colocado a camisera amarela nos ombros do vencedor, um holandês de 27 anos chamado Joost Legtenberg. Os retardatários são em sua maioria africanos, respirando com dificuldade, completamente devastados. Dois ciclistas europeus surgem no campo de visão, com um africano logo atrás. Ao ver a linha de chegada, o africano acelera furiosamente e a multidão — sem vida há um segundo — vai ao delírio.
QUANDO JÉRÉMIE OUDRAOGO TINHA UNS SEIS OU SETE ANOS — não há registro exato de sua data de nascimento —, seu pai, Sibri, levou-o para a floresta, a um dia de caminhada de sua fazenda. Fique ereto, Sibri ordenou. Então ele pegou uma longa faca e fez três rápidos cortes horizontais na têmpora direita de Jérémie, logo atrás do olho. Depois repetiu o corte no lado esquerdo. Jérémie estremeceu, mas segurou as lágrimas. As cicatrizes que se formaram o marcariam para sempre como um mossi, membro da maior a mais poderosa tribo de Burkina Faso.
Os mossi enfrentaram e venceram salteadores muçulmanos no século XVI, comerciantes de escravos no XVIII e missionários e colonizadores no XIX antes que Ouagadougou finalmente caísse nas mãos dos franceses em 1901. Os colonizadores impuseram impostos brutalmente altos que forçaram muitos mossi a vender seu gado e trabalhar nas plantações de cacau e café dos franceses na Costa do Marfim. Os antepassados de Jérémie estavam entre os poucos que conseguiram manter suas terras, cultivando milho, sorgo e amendoim, sofrendo com as vicissitudes da seca.
Em casa, um dos deveres de Jérémie era buscar água para família, que já era bem grande: ele é o segundo de nove irmãos e irmãs da primeira esposa de seu pai (agora, perto dos 60, Sibri já gerou vinte filhos com quatro esposas e não mostra sinais de que pretenda parar em breve). Na estação chuvosa, de abril a junho, só era preciso ir até um poço próximo do aglomerado de cabanas de sapé em que moravam, uma para cada esposa. Na estação seca, Jérémie tinha de buscar água do outro poço, a cinco quilômetros de distância, passando pelo matagal. De manhã ele pegava um recipiente de plástico verde, prendia-o a uma velha Peugeot azul de uma marcha que era o único meio de transporte da família, e seguia por trilhas de terra até o poço. A bicicleta era grande demais para um menino de sete anos, por isso ficava de pé no pedal esquerdo e enfiava a perna direita pelo meio do quadro até o outro pedal, segurando o guidão com seus bracinhos finos.
Anos depois, na mesma bicicleta, Jérémie participou de sua primeira corrida, na cidade próxima de Boussé. Ele tinha 18 anos, já era alto e forte, e foi com um bando de amigos, invertendo seu guidão para dar à sua velha montaria uma aparência mais veloz. Havia 40 ciclistas na prova, em todos os tipos de bicicleta, e depois de várias voltas no meio de uma nuvem de poeira, ele chegou em quarto. Ganhou um prémio de 300 francos — cerca de 50 centavos de dólar —, o dinheiro mais fácil que já tinha feito.
A partir de então Jérémie competia sempre que podia, em cidadezinhas por toda Burkina Faso. A maioria era de eventos com múltiplas voltas pelas ruas das cidades, geralmente sem asfalto. Jérémie era um corredor tático e foi galgando degraus no cenário local. "Ele é très intelligent," diz Victor Duchene, um belga de 69 anos que se ofereceu como voluntário para ser o treinador da equipe de Burkina Faso. "E ele é malin" — esperto, com um toque de impiedosidade.
Em 1996, com 21 anos, Jérémie foi selecionado no último minuto para competir no Tour du Faso com a equipe nacional "C". Um alemão ganhou naquele ano, mas Jérémie chegou em 16º — nada mal. Dois anos depois, enfrentando fortes competidores internacionais, chegou em terceiro na classificação geral, para a surpresa de todos menos de si mesmo. No último dia, os franceses que foram vitoriosos olhavam para a bicicleta de Jérémie, sem acreditar: era uma Peugeot enferrujada, com um câmbio antigo e uma corrente grudenta, o garfo dianteiro pintado de vermelho, amarelo e verde, as cores rastafari.
Seu desempenho surpreendente deu-lhe uma vaga em uma equipe que também lhe forneceu sua amada bicicleta Rasta. Como um dos cinco ou seis melhores ciclistas no país, entre cerca de 350 atletas credenciados, ele ganhava um salário de U$ 55 por mês — o bastante para viver disso.
Passou a treinar em período integral, muitas vezes na companhia de Hamado Pafadnam, seu colega de equipe e melhor amigo. Um menino pobre da cidade de Kaya, no norte do país, Pafadnam era um cara grande e gentil, com um sprint matador. Jérémie era magrinho e resistente, mas Paf era o atacante, o cara que podia ganhar as corridas. Os dois se tornaram inseparáveis, treinando todo dia na estrada a noroeste de Ouagadougou. Em corridas locais e nacionais eles faziam uma poderosa combinação. "Quando corríamos juntos", lembra Jérémie, "ninguém podia nos derrotar".
Mas Jérémie sempre sonhara com coisas maiores. Todo mês de julho, ele passava seus dias em um bar no centro de Ouagadougou, grudado na TV para assistir ao Tour de France. Sentado no escuro, bebendo um refrigerante ou uma cerveja Castel, ele assistia as imagens borradas no televisor antigo, enfiado em uma caixa de metal para evitar furto. São dez quilômetros de distância dali até sua casa na periferia, mas o bar tem uma recepção melhor. Ao longo dos anos, assistiu Indurain, Ullrich e Armstrong. Mas nenhum africano negro conseguiu sequer chegar à linha de largada.
Talvez Pafadnam se torne o primeiro. Ele vai correr para uma equipe semi-profissional na Espanha na temporada de 2002 — o primeiro ciclista burkinabé a ir para a Europa. Jérémie está com um pouco de inveja de seu amigo, mas lhe deseja tudo de bom. Por isso, vai ficar de olho para ver como Paf se sai no estrangeiro. Talvez sua chance chegue também. Mas o tempo está acabando. Ele já tem 27 anos. Quando a etapa do Tour de France acaba, Jérémie tira uma nostas velhas do bolso, paga a conta, e volta para sua esposa, Kadi, e seu filho pequeno, Evarice, em sua casa de tijolos de concreto em uma rua esburacada e sem nome. A porta é uma cortina, o teto é um pedaço de metal ondulado. Do lado de dentro, encostada na parede, uma longa e baixa mesa está lotada de troféus.
CADA DIA DA CORRIDA amanhece fresco e agradável, a luz âmbar cobrindo os matagais planos e os baobás esparsos, com suas raízes do tamanho de um botaréu de uma catedral francesa. Mas é tudo enganação. Às onze da manhã o calor é de matar, razão da maioria das etapas começar às sete da matina. O ar está cheio de poeira vinda do Saara, arrastada pelo vento sazonal conhecido como harmattan, o algoz de todos os ciclistas.
Na terceira etapa, que vai de Boromo a Koudougou, um bom números de competidores está com cara de doente. Assim como as equipes de TV francesas, o commissaire da União Internacional de Ciclismo, e a turma da Mavic, a fabricante de rodas. Observando um pobre belga ficar para trás para tomar uma dose de anti-diarréico — seus shorts estão manchados com uma cor repulsiva — Hinault abaixa o vidro de sua limosine e ri, "Il fait la chiasse!" Ele se cagou todo!
Se la chiasse não dá um tempo, a próxima parada do atleta é provavelmente o car balai, ou "vagão vassoura", um antigo ônibus escolar bege que segue atrás do último colocado, como um leão obeso espreitando os membros mais fracos da manada. Nove ciclistas desistiram na terceira etapa, de um total de 76 competidores. A quarta, e mais longa etapa, cobrindo 173,5 quilômetros entre Ouagadougou e Ouahigouya ao norte, perto do Saara, promete ser um dia cheio para o vagão.
Os corredores largam no horário marcado, mas no car balai há pouca pressa. Na verdade, ele está sem gasolina. Enquanto um subalterno sai correndo atrás de um pouco de combustível, o chefe do car me passa, com gentileza, um sermão sobre os vários pecados dos EUA. "Vocês nos dão trigo, leite e óleo de soja", diz, referindo-se à ajuda internacional da qual Burkina Faso depende tanto, "mas não sabem como serem amados".
Seu nome completo é Nocke Blaise Antoine Mamadou Bassole, somando seus nomes mossi, cristão, muçulmano e de família, mas ele prefere ser chamado de Blaise. Alto e digno, na casa dos 60, vestido com uma roupa africana de poliéster cinza claro, com uma barba grisalha para combinar, ele passa a maior parte do ano como inspetor de ferrovias. No car balai, ele chefia uma equipe de um motorista e três ajudantes.
O subalterno de Bassole retorna com gasolina, mas agora o car balai não quer pegar de jeito nenhum. Acabamos empurrando o ônibus velho, com a ajuda dos atletas de carona. O motorista engata a marcha, mas o bicho afoga. Ele abre o capô, mexe em alguma coisa, e motor ruge com vida nova. Subimos a bordo e nos enfiamos no tráfego matutino, com destino a Ouahigouya.
Logo deixamos a cidade para trás, trocando os enxames de lambretas por uma paisagem seca e plana que parece o Texas. A estrada é dura, acabou de receber uma camada de cascalho, e logo topamos com o ciclista número 22, Harouna Amadou de Níger, de 26 anos, pedalando numa cadência lenta, mas digna. Ele não dá sinais de que vai parar, por isso ficamos atrás dele, mantendo uma distância respeitosa.
Pouco depois encontramos nosso primeiro cliente: Lionel Vedrine, um francês de 29 anos. Ele vem tendo má sorte desde o começo, quando teve um pneu furado oito quilômetros após a largada da primeira etapa. Seguiu o tempo todo sozinho, exaurindo suas forças, e quando o ritmo aumentou hoje, não conseguiu acompanhar. "Meu corpo todo dói, só penso na minha namorada e na minha cabeça já está tudo acabado", lamenta, desabando no assento. "Merda".
Pegamos outro francês exausto, depois um marroquino fortão que arrebentou o canote do selim e não está nada feliz com isso. Finalmente, Amadou vai para o acostamento e desmonta. Mas, em vez de subir no ônibus, ele se agacha atrás de um arbusto. Remonta e continua, sem nenhuma pressa.
Pegamos mais dois colegas de equipe de Vedrine, mas Amadou continua em frente. O descontentamento cresce dentro do ônibus. Ele está se movendo a 20 km/h — nesse ritmo, vai lever o dia todo para terminar. Dois ciclistas europeus querem que Bassole e seu pessoal o façam desistir, mas ele não quer saber disso. Se Amadou vai desistir ou continuar se arrastando pela pista, a decisão é só dele. Um dos atletas franceses agita uma garrafa de Coca-cola gelada na janela. "Entra aí!", grita o moleque, balançando a garrafa.
"Pára logo!"
"Pourquoi?" pergunta Amadou.
"Nós temos as bicicletas caras", sussurra Vedrine, "mas eles não desistem".
Avançamos na frente e estacionamos em uma cidadezinha, na exígua sombra de uma árvore. Cocas semi-geladas surgem, junto com galinha grelhada dura e um punhado de bananas. Dez minutos depois, Amadou passa por nós. Jogamos os ossos de galinha pela janela e seguimos atrás dele. Não demora muito para que ele pare no lado da estrada. Sua bicicleta é içada até o teto de ônibus e ele toma um assento na frente. Ele nem mesmo está suando. "Malade," explica, apontando para seu estômago. Pega a banana em seu bolso e começa a comê-la, observando a paisagem pela janela sem dizer mais nada.
OUAHIGOUYA. YAKO. KAYA. Ziniaré. Fada N’Gourma. A caravana segue pelo interior do país, uma etapa se transformando na seguinte. Em cidadezinhas e pequenas aldeias de fazendeiros, as crianças são dispensadas da escola e se amontoam na beira da estrada. Acenam para os caminhões de publicidade; para os policiais de moto; e para os corredores de todas as cores. Acenam para os líderes assim como para os últimos colocados. "Bon courage!", gritam.
Todo mundo concorda que a corrida está mais bem organizada que nunca; tem boa comida toda noite e as etapas começam na hora marcada. Mas as chegadas estão muito pouco festivas — sorumbáticas, na verdade. Quase ninguém aplaude. "Está faltando alguma coisa", me conta um jornalista da TV de Burkina Faso, em uma noite, durante uma rodada de cerveja. "Tudo na África é como uma festa. Mas aqui, não há festa nenhuma". Um dos belgas, que já havia participado do Tour de Faso nos últimos cinco anos, concorda. "A prova perdeu sua alma africana", lamenta-se.
A razão é simples: o vencedor da etapa é quase sempre europeu. Os marroquinos têm um corredor na terceira colocação geral, mas não conseguem fazer ele avançar. Por isso a camiseta amarela fica nos ombros de Joost Legtenberg, apesar da inevitável parada para la chiasse. Quanto aos africanos ocidentais, eles desistiram da competição de vez na dura quarta etapa, na qual Jérémie perdeu 18 minutos ao ficar preso atrás de um acidente causado por um ciclista de Camarões.
Uma noite, em Ouagadougou, depois da sexta etapa, Jérémie vai ver Victor Duchene. Encarregado de cuidar das necessidades físicas dos ciclistas, como comida, remédios e massagem, o treinador muitas vezes é mais próximo deles que o diretor da equipe. Victor trabalhou com muitos astros, incluindo Eddy Merckx e Greg LeMond, e passa algumas semanas por ano trabalhando com a equipe de Burkina Faso, preparando-os para o Tour.
Jérémie sente-se desencorajado, e chora. Esperava chegar entre os cinco primeiros neste ano, o que seria o bastante para se fazer notar na Europa. Mas está tão atrás que não há mais esperanças. E falta unidade para sua equipe; cada um dos membros parece estar correndo por si mesmo. Ele diz a Victor que decidiu abandonar a prova.
Victor já tinha visto algo assim antes. "Eles são complexé," diz, mais tarde. “Vêem as bicicletas bonitas dos europeus, seus óculos de sol caros, seus capacetes novinhos, e se sentem desmoralizados. Suas pernam ficam pesadas. Hesitam em atacar, e, em vez disso, conformam-se em simplesmente segui-los.”
Olhe pra mim, Jérémie, ele diz. Eu sou branco, você é negro. Mas você é tão forte quanto eu. Mais forte, até. Não precisa ter medo e não precisa desistir. Victor sabe que Jérémie é um bom ciclista, forte e versátil. É menos forte que Pafadnam, mas tem o cérebro que compensa a diferença, e quer ganhar.
No dia seguinte uma reunião é realizada e nela é anunciado que Jérémie é o novo líder da equipe de Burkina Faso, no lugar de Pafadnam, seu melhor amigo. Há lágrimas e gritos, mas a lógica é incontestável. "Ele demonstrou no Tour du Faso que é o melhor ciclista em Burkina Faso", Victor diz mais tarde. E Pafadnam? Talvez em sua mente ele já esteja na Espanha.
ELE SONHA EM ESCAPAR, em longas aceleradas sob o sol. Na manhã da nona etapa, dispara na frente muito cedo, depois de apenas três dos 126,5 quilômetros do trecho entre Fada N’Gourma até a cidade de Tenkodogo, juntando-se a um grupo de cinco outros ciclistas: seus colegas Lucien Zongo e Mahamadi Sawadogo; Martinien Tega, de Camarões; Sylvain Després e Arnaud Vettier, da França. Quatro africanos e dois lentos franceses, então ninguém presta muita atenção neles quando abrem distância, alternando-se para dividir a carga. A diferença chega a dois minutos, depois três, e então, após 40 ou 50 km, começa a diminuir, caindo para dois minutos e mais um pouquinho.
Em Koupéla, onde o curso vira para o sul, parece inevitável que o grupo seja alcançado. Jérémie pede que seus colegas andem em bloco, com força total, e eles redobram seus esforços. Estão enfrentando um vento cruzado agora, por isso posicionam-se pela pista para cortá-lo melhor. A diferença volta a aumentar.
Ainda trabalhando juntos com perfeição, passam por um grande lago sem notar um crocodilo refastelado na margem lamacenta. Jérémie vai para trás para pegar água para sua equipe e fica no fim do grupo, descansando. Seus colegas Zongo e Sawadogo mantêm o ritmo forte, à espera de seu sinal.
Ele se sente bem, em parte porque decidiu usar sua velha bicicleta, mas por outras razões também. Nas primeiras etapas sentiu-se fraco em momentos cruciais e se perguntou — como Pafadnam — se alguém não teria botado um feitiço ou “Wak” nele.
Ciclistas são supersticiosos em qualquer cultura, mas principalmente na África, onde magia é parte do dia-a-dia. Se algo de ruim ou de bom acontece, um burkinabé suspeita que há Wak envolvido. Quem faria uma coisa dessas com Jérémie? "Alguém que não quer que a gente ganhe", explicou ele com seriedade, dando a entender que poderia até ser um colega de equipe.
Faltando cinco quilômetros, ele ataca, disparando pelo lado da estrada, quase no cascalho, até a liderança. Seus companheiros, momentaneamente chocados, reagem devagar demais. Mas na moto amarela, que vinha seguindo o grupo desde o começo, o piloto remunga. "Ele é mesmo um saco", diz para seu passageiro. "Por que está atacando justo agora?"
Inevitavelmente, ele é alcançado; seu ataque é bem-sucedido somente em deixar Zongo, seu colega, para trás. Com o desafio feito, toda cooperação vai para o saco. Depois de quase três horas trabalhado em conjunto, os ciclistas agora parecem inimigos mortais: os três burkinabé contra os outros três. Os seis atletas perdem velocidade e Zongo consegue tirar a diferença.
Jérémie fica atrás, todo calmo, assistindo as hostilidades. Com dois quilômetros para a chegada, seu colega Zongo dispara na frente pela esquerda. A estrada segue em um declive suave, por isso ele consegue abrir uma boa distância. O atleta de Camarões tenta acompanhar Zongo, mas não consegue, deixando isso para Després, o francês. Estão indo bem rápido agora, mais de 55 km/h, e por um momento parece que Zongo vai conseguir chegar primeira à linha de chegada que se aproxima rapidamente.
A estrada é como um funil, estreitando-se conforme se aproxima da chegada. Després alcança Zongo e segue para o final, enfiando a cara no guidão, com Jérémie bem na sua cola. Mas é cedo demais. Ele fica sem fôlego, e não é preciso muito esforço para Jérémie virar para a direita e assumir a liderança, como se uma mão invisível lhe desse um gentil empurrão. Ele ergue os braços quando sua bicliceta passa zigue-zagueando pela área de chegada, sob ondas de emoção vindas da platéia. Dá para ouvir uma mulher gritando de alegria; seus corpo está todo formigando enquanto passa voando pela descida e entra na cidade.
JÉRÉMIE SÓ PÁRA na sombra de um barzinho, várias centenas de metros depois da linha de chegada. A multidão sai correndo como se fosse um estouro de boiada, cercando-o – criancinhas excitadas e um monte de jornalistas de TV, abrindo caminho com suas câmeras pesadas. Todo mundo se amontoa no pequeno bar a céu aberto, empurrando-o para dentro, onde fica preso entre uma mesa de pebolim e uma câmera de TV. Uma Fanta gelada surge em sua mão; microfones surgem na sua cara. "C’est une grande victoire pour notre pays," começa.
Ele é o campeão, um herói. Em seu francês peculiar, agradece seus companheiros e descreve como foi inspirado pela multidão ao longo da estrada nos quilômetros finais. Um jornalista local o agarra e ele muda para sua língua nativa, o mossi, as palavras saindo em uma enxurrada. Victor o encontra e eles se abraçam. "Está contente?", Jérémie pergunta. Sim, Victor está contente.
Logo surge um representante do Ministério do esporte e da Juventude e o arrasta para o pódio, onde recebe sua camiseta branca de vencedor da etapa. E a corrida toda dá um suspiro de alívio. Teria sido horrível se o país-anfitirão não ganhasse ao menos uma etapa.
Depois, os holandeses falaram de como foi um dia fácil — quase como um dia de descanso. E outros sussurraram: será que armaram a corrida para não deixar os africanos mal? No ano anterior, o amigo de Jérémie, Mahamadi Sawadogo, ganhou a mesma estapa — mas somente porque, dizem os cínicos, os italianos deixaram. Talvez tenha acontecido a mesma coisa agora. De qualquer modo, o dia seguinte, a décima etapa, é bem rápida e um monte de atletas pode tentar ganhá-la. "Todos os africanos enfiaram na cabeça agora que podem vencer", reclama um ciclista holandês.
TAVEZ JÉRÉMIE OUÇA OS BOATOS, talvez não. Ele sabe que ganhar uma única etapa, em uma corrida que não vale quase nada para a Europa, não é o suficiente. E por isso decide partir pra cima na décima primeira e última etapa, a de maior prestígio da corrida, um trecho de 156,5 km de P(tm), próximo à fronteira com Gana, seguindo para o norte até Ouagadougou. A etapa vai terminar em frente ao palácio de Moro-Naba, lar do rei dos mossi, que estará no local assistindo a tudo.
A etapa começa devagar e festiva, mas os competidores — 48 sobreviventes entre os 77 que iniciaram a prova — farejam uma última chance de vitória. A vinte quilômetros de Ouagadougou, Jérémie acaba em outro grupo na frente. Nas favelas da periferia, a multidão ao longo da pista tem quatro ou cinco pessoas de espessura. Dá para ouvir pedaços de conversa. Mais de uma pessoa grita, "Pafadnam! Pafadnam!" Mas Paf não está no grupo. São Jérémie, Sawadogo, um marroquino e um camaronês — nenhum europeu desta vez. Em determinado momento chegam a estar mais de um minuto na frente, mas quando se aproximam do centro da cidade têm pouco mais de 35 segundos de vantagem, uma margem muito pequena.
Entram na cidade pelo leste, zigue-zagueando na frente do pelotão para evitar os buracos na rua. Na rotatória das Nações Unidas estão oito segundos na frente. Ao fazerem uma curva fechada na Banque Centrale d’Afrique de L’Ouest, a um quilômetros do final, Jérémie pode ouvir o pelotão se aproximando.
Sawadogo acelera sozinho, tentando conquistar a vitória. Jérémie faz um esforço final, mas suas pernas não se movimentam. Ele não tem mais energia — será o Wak?, pergunta-se. O enxame de perseguidores o ultrapassa, e pega Sawadogo também. Um francês grande e musculoso vence a estapa.
Depois, Adama Diallo — chefe da Federação de Ciclismo de Burkina Faso — vem até Jérémie, tira sua cigarreira da boca e balança os ombros, inquisidor, como se dissesse, "Qual é o seu problema, afinal?". Jérémie, de algum modo, agüenta calado. Ele respeita Diallo, mas Diallo nunca participou de uma prova de ciclismo, por isso não faz idéia do sofrimento, da solidão, da tortura mental. Jérémie simplesmente dá de ombros e murmura uma explicação educada. Ele observa o rei dos mossi, o seu rei, dar um belo manto branco ao vencedor geral, Joost Legtenberg, que parece — não tem outro jeito de descrever — um pateta vestido daquele jeito. Então ele vai procurar Pafadnam, mas ele já foi embora.
Essa reportagem sobre o Tour du Faso 2001 foi publicada pela Outside norte-americana em 2002. Em 2004, o atleta Wahab Sawadogo tornou-se o primeiro burquinense a vencer o Tour, com Jérémie Owedraogo ficando em 4º lugar. Em 2005, foi a vez de Jérémie vencer a classificação geral, levando para casa a camiseta amarela. Ele foi também o campeão da temporada 2005-2006 da UCI África Tour.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2007)
NOVIDADE: Típica família de Burkina Faso esperando para ver os atletas do Tour du Faso passarem
SANGUE BOM:Jérémie Ouedraogo, estrela em ascensão do time de Burkina, e seu bom humor no treino matinal
CALMARIA: Fora da correria do Tour du Faso, um homem conserta bicicletas num vilarejo perto de Uagadugu
TORCIDA ORGANIZADA: Pessoal do vilarejo assiste, animado, à passagem dos atletas, logo cedo, em Boromo
CONTRASTE: Mulheres de Burkina agitam bandeirinhas da Nike enquanto aguardam os atletas na reta final
CICATRIZ: Atleta do time de Camarões descansa na tenda depois de uma queda que lhe causou alguns ralados
PELE BRANCA: Pernas européias invadem o Tour du Faso
BIKE LOCAL: Paralela à competição, a vida de Burkina Faso continua em duas rodas