Outsiders 2006

Por Vanessa Kopersztych
Fotos por Marcos Vila-Boas

O que 2006 nos deixou de bom? No que dependeu dos 14 brasileiros que explodem a seguir, o ano trouxe conquistas históricas, aventuras inspiradoras, superação de limites físicos e mentais. Estes atletas voaram mais alto, correram mais rápido, mergulharam mais fundo, pedalaram mais forte e viveram da forma mais intensa possível os esportes outdoor. E, mesmo comprometidos até a última gota de suor, curtiram cada momento da subida. Caros leitores, é um prazer apresentar-lhes os esportistas ao ar livre do ano.

CRAQUE ATÉ NO INFERNO

BOB BURNQUIST

Idade: 30 anos.

Berço: Rio de Janeiro, RJ

Modalidade: Skate.

Por que é um Outsider: Melhor skatista de todos os tempos, fez um salto fenomenal em um precipício do Gran Canyon, nos EUA, estrelou o documentário “A Realidade de Bob Burnquist” e construiu no quintal de sua casa a rampa de vertical mais extensa do mundo.

Quinta-feira, 23 de março de 2006. Bob Burnquist conhece o inferno de perto. Como se não bastasse ser uma espécie de Pelé dos esportes radicais, o maior craque do skate da atualidade decide enfrentar a morte e saltar o penhasco Hell Hole Bend (Declive do Buraco do Inferno), no Grand Canyon, Arizona.

Para que a maluquice acontecesse, uma rampa de 12 metros foi montada no local. Nela, construiu-se um corrimão, por cima do qual Bob teria de escorregar com seu skate para conseguir velocidade e se jogar a uma distância segura do paredão de pedra. Durante a queda, acionaria um pára-quedas, descendo pela fenda do precipício até o chão.

Se esse carioca filho de pai americano, criado em São Paulo mas residente nos Estados Unidos desde XXX, conhecido por acertar manobras ensandecidas nos mais alucinantes half-pipes do mundo, teve medo na hora agá? “Foi a primeira vez na vida que, com o skate, pensei na possibilidade de morte”, confessa. “Aí esfriei a cabeça e me concentrei em todas as hipóteses. Morreria por quê? Além dos melhores equipamentos, estava cercado pelos profissionais mais experientes da área.” Ele tinha razão. Depois de uma primeira tentativa frustrada, Bob venceu o desafio e realizou o salto. “Enfrentei um perrenguezinho, mas quis fazer uma coisa que só eu poderia. Agora, próximo capítulo.”

E projeto é o que não falta em sua carreira. Depois de conquistar 12 medalhas nos X Games, Bob leva a vida que pediu a Deus em uma fazenda de 20 mil metros quadrados perto de San Diego, na Califórnia, na companhia da mulher, Jennifer, e da filha, Lótus, de seis anos. No quintal de casa, ele construiu a rampa de skate mais extensa do mundo: uma estrutura de madeira mais longa que um campo de futebol e com a altura de um edifício de oito andares. Com a mega rampa, inaugurada em setembro depois de quase um ano de construção, Bob pretende explorar os próximos passos da evolução do skate.

Bob também vem explorando seu lado empresário. Dono de uma firma de alimentos orgânicos, a Burnquist Organics, ele pretende trazer o negócio para o Brasil. Trata-se de uma marca ecologicamente consciente, que ele deseja expandir também para a área de vestuário. “O planeta precisa de nossa ajuda. Devemos pensar em reverter o aquecimento global, plantar árvores, usar carros híbridos. Temos de fazer nossa parte.”

Apesar de ter seu cotidiano transformado em documentário – “The Reality Of Bob Burnquist”, lançado este ano no Brasil – Bob é assim, um cara simples, que curte esporte, natureza e, claro, emoção. Durante a sessão de fotos para esta reportagem, feita no Memorial da América Latina, em São Paulo, ele nem de longe dá uma de estrela. Durante a entrevista, fala mais de dez vezes a palavra “tranqüilo” e atende com calma a todos os pedidos do fotógrafo Marcos Vilas-Boas. “Não me sinto maior do que ninguém. Só consegui meu espaço porque lutei bastante. Fiz umas coisas legais, viajei bastante e acho que cheguei a um ponto bacana da vida”, diz, sossegado, como se meses atrás não tivesse se atirado, por vontade própria, na boca do inferno – e saído vivo para contar mais uma de suas fascinantes histórias.

VOANDO ALTO

BRUNA KAJIYA

Idade: 19 anos

Berço: Vinhedo, São Paulo

Modalidade: kitesurf

Por que é uma Outsider: este ano, sagrou-se campeã brasileira e assumiu a vice-liderança do ranking mundial feminino – e ela só compete há três anos.

Bruna Kajiya virou mania entre os fãs do kitesurf no Brasil. Também pudera: só em 2006, essa paulista de 19 anos foi responsável por boa parte da história do esporte por aqui. Ficou com a segunda posição no ranking mundial feminino (também foi a primeira brasileira a vencer três etapas no circuito, na Alemanha, na Espanha e no Brasil) e faturou o campeonato brasileiro.

Quem a vê pensa que ela treina faz um tempão. Mas, para espanto geral, Bruna só começou a investir no kitesurf quatro anos atrás. Em Ilhabela, onde mora, ela admirava pela janela da escola, que ficava de frente para o mar, uma porção de gente praticando o esporte. Era difícil prestar atenção na aula com tantas pranchas ao vento. Até que um dia resolveu seguir o conselho de um amigo e andou de kite pela primeira vez. Sorte de principiante ou não, em sua estréia ela voou bem logo de cara.

Os vôos não pararam mais. Com incentivo dos pais, em 2004 Bruna foi passar uma temporada de seis meses em Maui, no Havaí. “Treinava todo santo dia”, conta. Voltou para o Brasil afiadíssima e decidida a se dedicar ao kite. Isso rolou bem na época em que Bruna deveria prestar vestibular. Mas a mãe percebeu que a filha estava ficando deprimida com a idéia e a fez mudar de planos. “Ela sacou que eu estava a fim de velejar e me aconselhou a treinar sério e competir”, conta Bruna. “Devo tudo a meus pais, se não fosse por eles, metade das minhas conquistas não teriam acontecido.” Com pais tão bacanas, já era de esperar que Bruna fosse uma garota família. Tanto é que, depois de passar boa parte do mês de novembro treinando sob os ventos inspiradores de Cumbucu, no Ceará, ela pretende voltar para Ilhabela só para passar dezembro inteiro com os pais. “Sempre que tenho um tempo livre, corro para minha casa.”

Em 2007, a bela atleta parte para uma temporada de dois meses de treinos intensos na África do Sul, em companhia do namorado, o kitesurfista inglês Aaron Hadlow, outra fera do esporte. Ela também tem planos de expandir seus patrocínios, pois ainda não consegue ganhar grana com a profissão. “Infelizmente ainda não dá para viver do meu esporte. Tenho dois patrocinadores que me ajudam com as despesas básicas de hospedagem e alimentação, mas estou na luta para conseguir mais recursos”, diz. A julgar pela rápida popularização do kite no Brasil e pelo talento de Bruna, não vai demorar muito para que todos seus sonhos se realizem.

EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ

RAFAEL CAMPOS

Modalidade: Corrida de aventura

Idade: 30 anos

Berço: São Paulo, SP

Por que é um Outsider: Conquistou o primeiro lugar na Between Two Continents, Between Two Oceans, uma corrida de aventura individual de 250 quilômetros na Costa Rica

Imagine todas as penúrias de uma corrida de aventura – trekkings cabeludos, trilhas de bike insanas, trechos de remo sobre-humanos e horas intermináveis sem dormir. Agora tire os companheiros de equipe e pense no cara sozinho fazendo tudo isso no meio do mato, sem ninguém com quem conversar. Dureza? Não para Rafael Campos, um dos mais experientes corredores de aventura do Brasil, integrante da Mitsubishi/Francis Hydratta Quasar-Lontra.

Em abril, ele participou da expedição Betwen Two Continents, Betwen Two Oceans Solo Adventure Race, a maior corrida de aventura individual realizada até hoje. O desafio rolou na Costa Rica, e o atleta chegou em primeiro lugar, depois de 54 horas e 17 minutos.

As batalhas de Rafael em meio à competição de mais de 250 quilômetros não foram poucas. Ao desembarcar na Costa Rica, ele se viu derrubado por uma forte gripe que quase o tirou da prova. “Quatro dias antes da largada, não conseguia sair da cama, estava sozinho e sem ninguém para comprar remédio para mim. Fiquei rezando para melhorar”, contou.

Os deuses atenderam a seus pedidos e ele conseguiu largar com saúde. Mas logo no começo, em um trecho de remo, mais uma pedra no meio do caminho: um de seus remos quebrou e Rafael teve dificuldades para prosseguir. “Desestabilizei-me emocionalmente e achei que tudo estava perdido”, relata. Mais uma vez ele se superou.

Acostumado com corridas em equipe, passou um super perrengue à noite. “Estava muito sonolento e lutei contra mim mesmo para ficar acordado. Quando deitei, o segundo colocado me passou. Acordei, mas nem sabia para onde estava indo, de tão cansado. Daí me recompus e fiquei esperto”, conta.

E bota esperteza nisso. Depois de outras roubadas, Rafael conquistou a liderança e ficou com a primeiríssima posição. Agora ele está todo empolgado com a possibilidade de investir em corridas de aventura solo, que muitos apontam como uma evolução do esporte. “Apesar da solidão, a preparação é mais simples, você é dono de seu tempo e não briga com ninguém”, avalia. “Desafia seus próprios limites e precisa treinar intensivamente vários esportes, enquanto nas corridas em grupo cada um é melhor em alguma modalidade específica”, conclui. Pra encarar 250 quilômetros de prova non-stop sozinho, é preciso se garantir – o que não parece ser problema para o Rafa.

TALENTO NAS ALTURAS

JANINE CARDOSO

Idade: 32 anos.

Berço: São Paulo, SP.

Modalidade: Escalada,

Por que é uma Outsider: Foi semifinalista na Copa do Mundo de Escalada e no Campeonato Mundial, consolidando-se como a primeira brasileira a se sair tão bem em competições internacionais.

Janine é uma autêntica “mulher contemporânea”. Aos 32 anos, casada e com uma filha de três, ela vive o dilema típico das conquistas pós-feminismo: deve ficar mais em casa curtindo a família ou dedicar-se à profissão? Só que, no seu caso, o trabalho foge do convencional – Janine é uma das maiores promessas brasileiras em escalada. Dia sim, dia sim, ela dá duro no Ginásio de Escalada Casa da Pedra, em São Paulo, para se aperfeiçoar.

Há 12 anos treinando pesado, a atleta acumula conquistas significativas: foi três vezes campeã brasileira. O campeonato brasileiro de 2006 não havia terminado até o fechamento da Outside, mas os especialistas têm quase certeza que Janine deve faturar o tetra.

Em setembro, ela chegou à semifinal de uma etapa da Copa do Mundo de escalada esportiva. Em Marbella, na Espanha, terminou a competição em 16º lugar. No começo de novembro, mais uma ótima surpresa: a escaladora foi para as semifinais do Campeonato Mundial, na Itália, ficando na 27ª colocação. Com isso, consolidou-se como a primeira brasileira a conseguir tão boa posição em um campeonato desse porte.

Quando pequena, sempre viajava com a família para Atibaia, em São Paulo. Ficava especialmente encantada com a Pedra Grande. Anos mais tarde, fazendo uma viagem pela Europa, apaixonou-se por uma parede de escalada indoor. “Experimentei, achei legal e, na volta ao Brasil, comecei a treinar.”

Desde então, foram anos de dedicação total ao esporte. “Gosto dessa coisa de desafio porque sou bem persistente. Tenho sempre que chegar ao final de qualquer coisa que estou fazendo”, diz. Mas tantas horas de treinos e competições têm também o seu lado barra. “Não é fácil ficar treinando e viajando sem parar. Tem horas em que me canso bastante.”

O que nos faz retornar ao dilema inicial: como dar a atenção devida à pequena Manuela e ao marido, Alexandre? “Às vezes, o Alê fica injuriado. Por um lado ele me apóia, por outro acha tudo meio maluco”, confessa. Formada em jornalismo, ela ainda edita uma revista especializada em escalada e faz faculdade de educação física. “Minha certeza é que, se deixar de escalar, ficarei frustrada.” Sem solucionar o dilema da mulher moderna, Janine vai levando a vida como gosta – nas alturas.

A MOÇA QUE SURFA DE CAIAQUE

ROBERTA BORSARI

Idade: 33 anos.

Berço: São Paulo, SP.

Modalidade: caiaque surf.

Por que é uma Outsider: Primeira atleta brasileira a participar da Copa do Mundo de Caiaque surf, em Portugal, onde conquistou o quarto lugar.

Muita gente no Brasil nunca ouviu falar de caiaque surf, mas no que depender de Roberta Borsari, a trajetória desse esporte por aqui vai longe. A modalidade, que consiste em pegar ondas com um caiaque, encantou a atleta no início dos anos 2000, depois de ela ter se aventurado pelo rafting e canoagem.

Hoje Roberta é a mulher que abriu o caminho para as brasileiras nas competições de caiaque surf pelo planeta. Este semestre, ela viajou a Portugal para participar da Copa do Mundo da modalidade, conquistando um sensacional quarto lugar. E tem mais: ganhou um novo equipamento de primeira, depois de ter sua performance aprovada por um dos maiores fabricantes de caiaques do mundo, o grupo inglês Mega Kayaks, entrando assim para o Team Mega, a elite da modalidade. Com isso, Roberta passa a ser a primeira sul-americana a entrar na seleção top. “Trouxe para o Brasil o primeiro caiaque desse tipo. Sempre tive muito gás para batalhar pelo que acredito”, comemora. Além da conquista da copa e do poderoso patrocínio, Roberta criou este ano o primeiro Caiaque Clube do Brasil, que já conta com 170 associados — entre eles 36 mulheres.

Filha de professores de educação física, Roberta sempre foi doida por esportes, de natação a vôlei, passando por handebol e remo. Há seis anos, conheceu o caiaque surf e nunca mais parou de pegar ondas, sempre incentivada pelo irmão Maurício. “Ele ia às competições e voltava dizendo: ‘Rô, não há muitas mulheres nas provas, você tem esse perfil de pegar a onda, de descer rio, é remadora, deve investir nisso’. Resolvi seguir os conselhos dele.”

Como faltavam mulheres praticantes do esporte, Borsari sempre competia entre os homens. “Nenhum deles queria perder para mim. Os caras preferiam ficar atrás do pior remador do que ficar atrás de uma mulher”, diverte-se.

Está enganado quem pensa que Roberta vive na praia: a moça trabalha todos os dias no Uol, como designer do portal para a área de publicidade interna. E tem muito jogo de cintura para conciliar a profissão e a paixão pelo esporte – descolou até um patrocínio com a empresa. “Tenho que ser competente para fazer valer toda a força que me dão”, diz. “Desdobro-me para ser uma boa profissional no trabalho e uma boa atleta na água.” Pode não ser tarefa fácil, mas desafios são especialidade de Roberta.

RUMO AO PAN

EDIVANDO SOUZA CRUZ

Idade: 28

Berço: Ilhabela, São Paulo

Modalidade: mountain bike

Por que é um Outsider: é o brasileiro melhor classificado no ranking mundial, ganhou tudo o que pôde este ano no Brasil e está a uma pedalada do Pan

Edivando Souza Cruz nasceu em uma família humilde de Ilhabela, litoral norte de São Paulo. Sem muitos recursos financeiros, o jeito era se locomover pela região de bicicleta. O garoto fazia tudo apoiado nas rodas da surrada magrela: ia e voltava da escola, da praia ou da casa dos amigos. Mas Edivando jamais reclamava, pelo contrário. Foi pegando cada vez mais gosto pela bike e, quando viu, já tinha virado ciclista profissional.

Hoje Edivando é um dos maiores nomes do mountain bike no Brasil. Foi medalha de prata nos Jogos Pan-Americanos de 2003 e representou o país nas Olimpíadas de Atenas. Em 2006, tornou-se o brasileiro com a melhor classificação no ranking internacional.

Prestes a embarcar para os Jogos Sul-Americanos da Argentina, o atleta encontrou a reportagem da Go Outside para uma sessão de fotos e entrevistas no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. De fala mansa e pausada, meio tímido e um pouco sério, ele contou como começou a se dar bem no mountain bike. “Em 1993, participei de minha primeira competição, em Caraguatatuba, da qual fui campeão”, relembra. “No final daquele ano, em novembro, foi marcada uma grande prova em Ilhabela, e isso me empolgou ainda mais. Fiquei em segundo lugar e a partir daí tive contato direto com os melhores do Brasil”, diz. Desde então nunca deixou de participar – e se sair bem – das provas mais importantes do circuito nacional. Em 1995, já com patrocinador, foi destaque da categoria júnior. Nessa época, estreou em uma competição internacional.

Patrocinado pelas marcas Michelin, Astro e Vzan, Edivando vive exclusivamente do esporte e, graças a sua bike, pôde dar uma vida mais confortável à mulher, Roselaine, com quem é casado há sete anos, e ao filho, Samuel, de três. O pequeno, aliás, já segue os passos do pai. Adora brincar com sua bicicleta e acompanha Edivando em algumas competições.

O ciclista é dedicado e treina duro para alcançar os objetivos. Sua rotina não é moleza: ele treina seis vezes por semana, cinco horas diárias, alternando corrida e pedaladas com natação e musculação, para ter força na hora de carregar a bike nas trilhas. “Houve uma época em que deixava as coisas acontecerem. Hoje tenho metas e planos mais definidos”, conta.

Atualmente ele concentra todas as energias para conseguir uma vaga nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007. Para isso, precisa acumular bons resultados nas provas e torcer para que o Brasil avance no ranking mundial. Se nosso país estiver entre os 25 primeiros colocados na classificação geral das nações, sobra uma vaga no Pan. Se estivermos entre os 15 primeiros, sobram dois lugares. Fé no Pan!

A ATLETA QUE VAI FUNDO

KAROL MEYER

Modalidade: Mergulho livre

Idade: 38 anos

Berço: Recife, Pernambuco

Por que é uma Outsider: Conquistou vários títulos e recordes este ano, finalizando 2006 como uma das cinco melhores mergulhadoras do mundo.

O filme da vida de Karol Meyer é Imensidão Azul – ela confessa que assistiu ao longa-metragem mais de 13 vezes. Normal: não há no Brasil figura mais apaixonada pelo mergulho do que ela.

Aos cinco anos, a garotinha já acompanhava o pai, Carlos Irapuan Meyer, em suas sessões de pesca. Pouco depois, durante as saídas paternas para pesca submarina, ela percebeu que tinha uma relação especial com a água e que era capaz de ficar longos períodos submersa, sem respirar, só curtindo as belezas oceânicas. Até que um dia, aos 19 anos, enquanto tomava banho de piscina no clube, decidiu testar sua capacidade de ficar imersa na água sem se mexer. Chegou à surpreendente marca de 3m39s — isso sem nenhum preparo prévio. Começava aí uma história de sucesso rara entre atletas brasileiros especialistas em apnéia.

Hoje, aos 38 anos, essa recifense criada em Florianópolis é o maior nome do mergulho livre no Brasil. A lista de conquistas é longa, por isso vamos falar só de 2006, ano em que Karol bateu o recorde nacional de apnéia dinâmica com nadadeiras (121 metros), superou o próprio recorde nacional na mesma categoria (chegou a 125 metros), ficou com o recorde pan-americano de apnéia estática (com a marca de 7 minutos e 18 segundos, apenas 12 segundos de diferença do recorde mundial, pertencente à russa Natalia Molchanova), faturou o recorde sul-americano na categoria lastro constante (-65 m), na categoria lastro constante sem nadadeiras (-35m) e, por fim, levou o recorde sul-americano em imersão livre (- 60m). Se você precisou de fôlego para ler este parágrafo, imagina ela, para ficar todo esse tempo embaixo d’água.

Tantas vitórias são o resultado de um esforço colossal. Karol treina todos os dias, mas só depois de encerrar o expediente como supervisora de uma agência na Caixa Econômica Federal, onde trabalha há mais de 20 anos. Além do esforço físico, a atleta se empenha para deixar a cabeça tranqüila nos momentos de tensão em pleno fundo do mar. “Crio âncoras mentais. Tenho sempre que banir as informações ruins que passam pela minha mente, só assim consigo eliminar a ansiedade”, explica. “Deixo na memória só as realizações boas. Isso me ajuda, me dá força. A cabeça é um indicador máximo de meu desempenho como atleta.”

Feliz da vida com o sucesso em 2006, Karol planeja novos objetivos para o próximo ano: ela pretende focar seus esforços na apnéia dinâmica, para superar recordes nessa categoria. “Uma disciplina estática não exige muito esforço físico. Estou perto de uma marca pan-americana na apnéia dinâmica e quero treinar visando o mundial de 2007”, diz.

Ela também deseja se envolver num projeto de levar o esporte para jovens carentes de Florianópolis. Tudo para popularizar ainda mais o mergulho, sua grande paixão. Vai fundo, Karol!

A MULHER E O MAR

IZABEL PIMENTEL

Idade: 40 anos.

Berço: Aquidauana, Mato Grosso do Sul.

Modalidade: Vela

Por que é uma Outsider: Velejou sozinha o oceano Atlântico, de Portugal ao Brasil. Foi a primeira mulher brasileira a encarar esse desafio

“Minha religião é o mar. Fui criada como católica, mas nunca entrava na igreja. Em compensação, sempre nadava no mar e pensava em como era bom estar ali.” Ouvindo isso, dá para entender como uma pessoa pode agüentar, feliz da vida, ficar sozinha, apenas na companhia do mar, durante 42 dias e 6 horas. Foi o que fez este ano a velejadora sul-mato-grossense Izabel Pimentel, de 40 anos, que cruzou o oceano Atlântico com seu barco e se tornou a primeira mulher brasileira a realizar a proeza.

Velejando de Cascais, em Portugal, até Fortaleza, no Ceará, ela garante que não se sentiu solitária em nenhum momento. “Estava realizando um sonho. Não era uma competição. Fiz tudo sem estresse, curtindo cada segundo”, conta. E olha que Izabel não faz o tipo zen. É pilhada, fala sem parar, sempre olhando fixamente para seu interlocutor.

Como uma pessoa tão energética conseguiu enfrentar mais de um mês em absoluto silêncio, sem ninguém por perto além do oceano, aves e peixes? “Criei um esquema de rotina, o que foi superimportante. Preferia a noite para dormir. Cochilava 15, 20 ou 40 minutos, dependendo da situação. Acordava cedo e sempre tinha que trabalhar em algo no barco”, diz. “Tinha de monitorar a situação do tempo ou do vento, ligar para meu pai, dar entrevistas por rádio. Houve dias em que só ficava molhada, não conseguia nem secar o pé. Chegou a um ponto em que todas as minhas roupas estavam salgadas”, lembra, rindo.

Apaixonada por esportes desde pequena, Izabel também é fera no remo. É uma das atletas com maior percurso navegado a remo em solitário no Brasil. Já foi de Santos a Vitória (mais de 1.000 quilômetros) e percorreu todo o litoral sul da Bahia (cerca de 800 quilômetros).

Suas expedições não lembram em nada sua formação – Izabel é analista de sistemas – nem seu último emprego: ela passou os últimos anos batendo ponto no Banco Espírito Santo, em Lisboa. De repente, decidiu que era a hora de abandonar os tailleurs pelos maiôs. “Estava ficando louca no banco. A gente tem que cair na real que o tempo passa. Eu bolei o roteiro do filme que queria viver, botei tudo no papel e fui atrás de um patrocinador.”

Atualmente mais ocupada do que nunca, ela prepara seu novo projeto: a regata Mini-Transat, que começa em setembro de 2007 na cidade francesa de La Rochelle e acaba em Salvador, na Bahia, totalizando 7.800 quilômetros. Como Izabel tem pique de sobra, a moça já começa a agitar a empreitada seguinte: a volta ao mundo em alto-mar, seu maior sonho. “Tenho certeza de que vou conseguir”, diz, com firmeza absoluta. E que ninguém ouse duvidar.

A GARRA DO GUERREIRO

DIOGO GUERREIRO

Idade: 25 anos.

Berço: Florianópolis, Santa Catarina.

Modalidade: windsurf.

Por que é um Outsider: Bateu o recorde mundial ao percorrer a maior distância oceânica de windsurf ao velejar mais de 370 quilômetros de Fernando de Noronha a Natal.

Muita gente pode pensar que se trata de um apelido, mas Guerreiro é mesmo o sobrenome desse incansável atleta que acaba de realizar uma aventura histórica: nos dias 26 e 27 de setembro, Diogo velejou sozinho mais de 370 quilômetros, de Fernando de Noronha a Natal, batendo o recorde mundial por percorrer a maior distância oceânica de windsurf, sem nenhum barco de apoio e sem escala em terra.

Conquistas como essa não faltam em seu currículo. Entre maio de 2004 a julho de 2005, em companhia do velejador Flávio Jardim, percorreu a costa brasileira partindo do Chuí, extremo sul, até chegar ao Oiapoque, no norte. Os dois não só tornaram-se recordistas mundiais em distância percorrida de windsurf, como também ficaram com a marca de menor embarcação a vela a percorrer a costa nacional.

Nascido em Floripa, Diogo pratica windsurf há mais de 14 anos. O recordista chegou a cursar três anos de arquitetura, mas desistiu quando se deu conta de que não havia mais espaço para nada em sua vida além dos treinos e expedições de wind. Sábia decisão.

Hoje morando em Garopaba, Diogo comemora os feitos. A expedição Noronha/Natal ainda o deixa radiante. A princípio, ele iria fazer o trajeto acompanhado pelo amigo e velejador Flavio Jardim. Mas o companheiro, às vésperas da viagem, levou uma mordida de um pastor alemão. “Eu tive 24 horas para mudar todo o planejamento de duas para uma só pessoa. Não podia desistir. A previsão do tempo era favorável, eu estava bem fisicamente. Decidi não abrir mão desse sonho, e deu certo.”

Claro que a travessia teve momentos duros. Diogo passou por vários perrengues e chegou a querer desistir. “Foi um sofrimento, nem posso dizer que me diverti. No início estava apreensivo. Quando anoiteceu, pensei até em chamar o resgate, mas a Marinha não trabalha à noite”, conta. Sem contar o pânico do rapaz ao pensar na possibilidade de ser atacado por tubarões. “Conversei com um biólogo antes de viajar e ele me aconselhou a levar um espeto de churrasco para atacar o bicho. Um tubarão passou embaixo da minha prancha uma vez, mas só de curiosidade.”

Com 2007 apontando em seu horizonte, Diogo começa a traçar mais uma de suas aventuras – dar a volta ao mundo em um veleiro, durante dois anos, acompanhado de Flavio. Desta vez, quer apenas curtir o prazer de sair pelo mar. Como bem escreveu o poeta Fernando Pessoa, navegar é preciso.

QUARTETO FANTÁSTICO

ATENAH

Modalidade: Corrida de aventura

Idade da equipe: Seis anos

Berço: São Paulo, SP

Por que são Outsiders: Formada só por mulheres, a Vivo Atenah Salomon foi a melhor equipe brasileira no Ecomotion/Pro deste ano, batendo 40 times nacionais e ficando em quarto lugar na classificação geral, perdendo apenas para três quartetos gringos

Silvia Guimarães, 30, Eleonora Audrá, 28, Cristina de Carvalho, 37, e Fernanda Maciel, 27, são nomes que a história do esporte feminino no Brasil não vai esquecer tão cedo. As “quatro fantásticas” da equipe Vivo Atenah Salomon – nome inspirado na deusa grega Atena – foram a sensação do Ecomotion/Pro 2006, a maior corrida de aventura da América Latina, que aconteceu entre os dias 9 e 19 de novembro. Não por acaso: formado só por mulheres, o grupo obteve a melhor colocação entre os participantes brasileiros da prova, repleta de marmanjos fortões e ultrapreparados para superar duríssimos testes de mountain bike, técnicas verticais, trekking, navegação, remo e rafting. Bateram nada menos que 40 equipes nacionais e ficaram em quarto lugar, atrás apenas de três times gringos.

Para que tudo desse certo, Silvia, mais conhecida como Shubi, Eleonora, a Nora, Cris e Fê contaram com forte integração e química perfeita. “Este ano estávamos mais fortes, nenhuma de nós havia participado de provas individuais e nosso foco era mesmo o Ecomotion”, conta Shubi. Cris, que ficou a cargo da preparação física do quarteto, acrescenta: “Durante toda a prova, a gente se cuidou e se ajudou muito, não bobeando com alimentação ou hidratação”. Nesse cuidado, fizeram a massa cinzenta, a estratégia e o trabalho em equipe contar mais do que a força que os quartetos formados por três homens e uma mulher tinham a mais.

O melhor lugar entre as equipes brasileiras no Ecomotion/Pro é a consagração de uma história de sonho e dedicação. A idéia de disputar provas de aventura com uma formação prioritariamente feminina a princípio parecia loucura, mas mostrou-se visionária. Desde que foi formada, em 2000, para a disputa do Elf Authentique, no Nordeste, a equipe foi ganhando o respeito do meio e mostrando que a força feminina vai além dos músculos. Já na estréia, as meninas terminaram a prova de mais de 800 quilômetros em 9º lugar.

Nos anos seguintes a Atenah participou de grandes corridas no Brasil e ao redor do mundo todo. Correram o extinto Eco Challenge na Nova Zelândia e em Fiji. No Raid Gauloises do Vietnã, chegaram em 8º lugar. Na Croácia, em 2004, ficaram em 4o no Terra Incognita com Shubi, Nora, Cris e Marcelo Toldi, integrante reserva da equipe. Abocanharam um 4º lugar e se tornaram a sensação da competição. A lista de bons resultados no Brasil também é enorme. Tudo conquistado com intuição, emoção e cooperação – três pontos fortes da grega Atena e dessas quatro deusas do esporte.

COM O PÉ NA PORTA

JIHAD KHODR

Idade: 22 anos.

Berço: Matinhos, Paraná.

Modalidade: surf.

Por que é um Outsider: Vencedor do SuperSurf 2006 (o Circuito Brasileiro Profissional), também conseguiu garantir sua vaga para o WCT 2007.

Por Edinho Leite*

O paranaense Jihad Khodr nunca teve portas abertas no surf. Na real, em sua carreira, ele teve que derrubar, arrombar e enfiar o pé na porta diversas vezes para conseguir entrar onde deseja.

Para começar, ele é o único surfista muçulmano profissional do mundo. Após os atentados de 11 de setembro e a maluquice da guerra ao terrorismo de Bush, esse detalhe pessoal de sua vida se transformou em dor de cabeça. Em 2001, teve sérios problemas para chegar ao Havaí, onde disputaria etapas do WQS (divisão de acesso ao primeiro escalão do surf profissional).

Em 2005, após lutar muito por seu lugar no WCT, a primeira divisão do surf profissional no mundo, viu suas chances desaparecerem na reta de chegada. A última vaga para o tão sonhado caminho ao título mundial foi surrupiada inesperadamente por Jarrad House, no último evento do WQS do ano, na havaiana Sunset. Jihad ficou abaladíssimo. Chegou a pensar em parar de competir, mas a força de vontade e o apoio da família ajudaram-no a recuperar sua garra característica.

Isso foi comprovado em 2006. Jihad, aos 22 anos, é o novo campeão brasileiro de surf profissional. Um feito e tanto, especialmente se levarmos em conta a corrida paralela que travou, de novo, para se garantir na elite mundial. Ele venceu o SuperSurf 2006 (o Circuito Brasileiro Profissional) como se fosse um degrau para seu objetivo maior, o WCT. Paralelamente, conseguiu se garantir na elite para 2007. E o que poderia ser muita pressão para um cara só, acabou virando um fator motivacional.

Das cinco etapas disputadas no cenário nacional, Jihad foi ao pódio em quatro delas. Viu a chance de ser campeão por antecipação em Itacaré, na penúltima etapa, escapar de suas mãos por pouco. Conseguiu enxergar o lado bom das coisas – depois de xingar um pouco para comprovar que, claro, também é humano – e foi para a última etapa do circuito na Barra da Tijuca, no Rio, completamente focado em seu objetivo de vencer. O equilíbrio mental com o qual competiu no circuito brasileiro pode ser justamente a “chave” que falta à maioria dos nossos atletas que já figuraram ou ainda estão no WCT.

Sua velocidade, versatilidade nas manobras e, principalmente, a atitude mental podem levá-lo a uma brilhante carreira na primeira divisão do circuito mundial. Conheço poucos atletas que conseguem equilibrar a vida estressante das competições com a diversão que esse mesmo caminho pode proporcionar. Talvez seja essa a grande vantagem de Jihad Khodr. Quando ele faz uma coisa, faz com vontade. E não parece haver maneira de tirá-lo do caminho que resolve tomar. Aos oponentes um aviso: ele está de pé, firme, na frente da porta.

*Edinho Leite é editor-chefe da revista Hardcore, especializada em surf.

NÃO CHEGA DE SAUDADES

Se o ano trouxe tantas alegrias nos esportes outdoor, trouxe também duas grandes tristezas. Vitor, primeiro brasileiro a chegar ao cume do Everest sem o uso de oxigênio suplementar, faleceu na descida. Roberta, que este ano escalou dois picos patagônicos de mais de dois mil metros em apenas 10 horas, sofreu um acidente de carro fatídico nos Estados Unidos. Não fosse suas mortes, Vitor e Roberta certamente estariam entre os Outsiders 2006. Abaixo, nossa homenagem a esses dois atletas que conquistaram montanhas e um lugar na história do esporte brasileiro, que num mesmo ano perdeu dois de seus maiores expoentes.

VITOR NEGRETE (1967 – 2006)

Vitor faria 39 anos dia 13 deste mês. Talvez passasse este aniversário em chão mais firme (os dois últimos foram comemorados no Aconcágua, a mais de 6.000 metros de altura), mas com certeza sua mente estaria em algum cume, planejando a próxima escalada. Paulista, formado em engenharia de alimentos, um dos fundadores do grupo excursionista Gaia, desbravador de trilhas e montanhas, Vitor foi, junto com o parceiro Rodrigo Raineri, o primeiro brasileiro a escalar a face sul do Aconcágua, em 2002, e a escalar a mesma montanha no inverno, em 2004.

Em 2005, Vitão chegou ao cume do Everest usando cilindros de oxigênio. Em 2006, voltou à maior montanha do mundo para encará-la de igual para igual, sem sherpas nem cilindros de oxigênio. Chegou ao cume (o primeiro brasileiro a fazê-lo só com os próprios pulmões), mas faleceu na descida, a 8.300 metros de altitude, dentro de uma barraca, às duas da manhã do dia 19 de maio. Não houve dor nem angústia – ele simplesmente adormeceu, exausto, para nunca mais acordar.

O corpo de Vitor descansa na montanha, coberto por pedras. Um memorial foi erguido perto do acampamento base em sua homenagem pelo parceiro Rodrigo Raineri. Sua alma, porém, sempre foi e será para sempre uma Outsider.

ROBERTA NUNES (1972 – 2006)

Quando um escalador morre na montanha, a tristeza vem acompanhada de certa resignação – afinal, o risco faz parte desse esporte. Porém, quando um escalador morre como Roberta Nunes, num acidente que nada tem a ver com assumir riscos, o pesar pela perda parece ser ainda maior.

Roberta Nunes, curitibana, escalava desde 1996. Em 2003, ela colocou o Brasil no mapa do montanhismo mundial ao escalar, junto com a espanhola Cecília Buil, a primeira via aberta por mulheres na maior falésia marinha do planeta, a Thumbnail, na Groenlândia. A escalada foi registrada no filme Hidrofilia, que ganhou vários prêmios no exterior. Em setembro de 2005, tornou-se a primeira não-americana a escalar o El Captain, um monolítico de granito que fica no Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia, Estados Unidos, em 15 horas. Por esse feito, foi eleita uma das Outsiders 2005. Em fevereiro de 2006, escalou as montanhas Guillaumet (2.593 metros) e Mermoz (2.754 metros) em somente 10 horas, tornando-se a segunda mulher a escalar dois picos na Patagônia no mesmo dia. Essa conquista lhe renderia seu segundo troféu Outsiders.

Roberta costumava passar seis meses por ano escalando em algum lugar do mundo, e desta vez foi de mala e cuia para uma temporada de treinos no Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia. Foi lá que sofreu o acidente de carro que a vitimou. “Nunca fiquei preocupada em morrer”, ela nos disse em entrevista. Mas nós ficamos muito tristes por você ter-se ido, Roberta.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2006)