Trovão líquido

Por Peter Heller
Fotos por Charlie Munsey

Era tão silencioso. O único som era o vento, que agitava as bandeiras de orações budistas estendidas ao longo das margens do rio e congelava as mãos dos caiaquistas que vestiam suas roupas de neoprene. Descia pelo rio, vindo direto do Platô Tibetano, levando flocos de neve até a praia e escurecendo as águas verde-jade com padrões que lembravam tecidos bordados.

Os caiaquistas se moviam rapidamente, pegando coletes salva-vidas e capacetes, e não conversavam. Após dez anos de planejamento, não havia muito o que falar. Eram sete dos melhores caiaquistas de expedições do mundo. Liderados por Scott Lindgren de Auburn, Califórnia, aqueles jovens representavam a vanguarda da exploração de rios e tinham vindo ao Tibete para tentar descer pela primeira vez as corredeiras do Desfiladeiro Tsangpo, considerada a última grande aventura a ser vencida na Terra.

O desfiladeiro era uma grande fenda que cortava o Himalaia, encoberto por tantos mistérios e perigos que uma lendária cachoeira em suas profundezas, procurada por exploradores por mais de cem anos, nunca havia sido sequer fotografada até o final do século 20. Segundo algumas estatísticas, é o desfiladeiro de rio mais profundo do mundo, três vezes mais profundo que o Grand Canyon, nos Estados Unidos. Percorrendo cerca de 1500 quilômetros na direção leste pelo Tibete, a 3000 metros acima do nível do mar, o Yarlung Tsangpo entra no desfiladeiro e perde quase toda sua altitude em 250 trovejantes quilômetros. Ao longo do caminho, entalha um profundo canal entre os grandes picos de Namcha Barwa (8397 metros) e Gyala Pelri (7742 metros), separados por meros 21 quilômetros.

Para os budistas, o desfiladeiro é um local onde se encontram portais místicos para reinos sagrados. Alguns textos antigos dizem que será o último refúgio do budismo quando o resto do planeta estiver em ruínas. Em uma época em que se acredita não terem restado grandes explorações inéditas, havia o Desfiladeiro Tsangpo, como uma temida e inviolada anomalia. Ninguém conseguiu descer a remo o trecho de 70 quilômetros da parte superior, que vai da cidade de Pe até o Riacho Claro, além do qual as quedas-d’água tornam o desfiladeiro intransponível. Ninguém nunca atravessou o Alto Desfiladeiro pelo rio. É possível que alguns trechos dele nunca tenham sido vistos por um ocidental.


SETE HOMENS E UM DESTINO: Em frente ao palácio Potala, em Lhasa, no Tibete, a equipe de feras faz pose com os caiaques

Agora, alguns quilômetros rio abaixo de Pe, Lindgren e outros caiaquistas da Expedição Outside Tsangpo carregavam seus caiaques por uma extensa praia e o colocavam na areia. Ali o rio era calmo, mas isso logo mudaria dramaticamente. A equipe sabia que estava prestes a encarar uma combinação sem igual de corredeiras volumosas e inclinação vertiginosa. A última expedição a tentar vencer o Tsangpo —um grupo norte-americano liderado pelo remador Wickliffe Walker, em 1998— tinha conseguido superar 43 quilômetros quando um de seus membros, o experiente caiaquista Doug Gordon, afogou-se nas violentas corredeiras.

Se alguém conseguiria superar esse desafio, seriam aqueles sete. A maioria fazia caiaquismo desde criança e cada um praticava o esporte pelo menos 200 dias por ano. Lindgren, de 30 anos, era o líder da expedição, um cineasta de aventuras ganhador do Prêmio Emmy que passou grande parte da última década realizando descidas inéditas em alguns dos mais assustadores rios do Himalaia: o Sutlej, o Thule Bheri, o Alto Karnali. Sua especialidade eram corredeiras que combinavam locais remotos, grandes dificuldades logísticas e extrema audácia —e grande parte de suas descidas de caiaque foi feita carregando uma câmera de cinema Bolex, que pesa dez quilos. Era o detentor de um improvável histórico de sempre trazer todo mundo de volta para casa vivo e intacto.

Para a equipe Tsangpo, ele escolheu seus amigos caiaquistas mais próximos, todos veteranos. O sul-africano Steve Fisher, 26, é conhecido pela habilidade em águas profundas e violentas. Mike Abbott, 29, da Nova Zelândia, e seu companheiro de caiaquismo, o inglês Allan Ellard, 27, são famosos pelas descidas insanas, muitas das quais no Himalaia. Dustin Knapp, 24, de Oregon, nos Estados Unidos, é astro de muitos dos filmes sobre caiaquismo de Lindgren. Os gêmeos Johnnie e Willie Kern, 30, de Vermont, também nos EUA, tinham uma reputação tão grande de destemidos que viraram frase de efeito: “Se os irmãos Kern não encaram, ninguém encara”.

À beira do Tsangpo, apenas uns poucos quilômetros antes de o rio começar sua rápida descida, os caiaquistas se enfiaram em seus cockpits apertados como se fossem pilotos de caça e selaram as aberturas com as capas de neoprene. Um por um, pegaram os remos, empurraram a areia e deslizaram na direção das correntes geladas que separavam encostas cobertas de árvores escuras que se erguiam a mais de 4000 metros de altitude.

Três tibetanas de uma aldeia próxima assistiam a tudo da areia. Usavam ponchos de pele e observavam solenemente, como se estivessem em um funeral.

O YARLUNG TSANGPO é um dos quatro maiores rios que correm pelas encostas do Monte Kailas, no oeste do Tibete, um pico sagrado para os budistas, hindus e jainas. Ele puxa as águas da encosta norte do Himalaia e se volta de repente para o sul, cortando a barreira de montanhas, na direção da Índia, onde se torna o Brahmaputra. Em seu curso oculto pelas montanhas, o rio e seu afluentes escavaram o Desfiladeiro Tsangpo. Logo antes de a corrente principal passar a chamada Grande Curva, ela se junta ao Po Tsangpo, que flui vindo do norte. Desse ponto, o Yarlung Tsangpo corre pelo Baixo Desfiladeiro (que também nunca foi conquistado por caiaque) em seu caminho para a fronteira com a Índia, a 160 quilômetros. Em seu ponto mais ao sul, atravessa densas florestas subtropicais habitadas por tigres.

No meio do Baixo Desfiladeiro, há a região de Pemakö. Um antigo texto budista descoberto por um lama no século 17 declara: “Setes passos na direção do Pemakö com uma intenção pura fará certamente com que se renasça aqui. Uma única gota de água ou folha de grama deste lugar sagrado garante a liberação do renascimento nos planos inferiores da existência”. Budistas tibetanos acreditam que a Grande Curva é o lar da deusa Dorje Pagmo, a consorte de Buda. O desfiladeiro é seu corpo; os picos ao redor, seus seios; e o rio, sua espinha dorsal.

Os mistérios evocados pelo desaparecimento do Tsangpo no desfiladeiro e o aparecimento do Brahmaputra no outro lado inspirou não apenas mitos, mas também a curiosidade científica. Na década de 1870, havia uma controvérsia entre estudiosos britânicos e indianos sobre o curso desconhecido do Tsangpo. Havia rumores de uma cachoeira do tamanho de Niágara ou das Victoria Falls.


CENA DE AVENTURA: Entre um exército de 68 carregadores tibetanos, teve até quem levou o filho para a expedição, que atravessou um dos desfiladeiros mais misteriosos do mundo

O TIBETE ESTAVA FECHADO PARA VIAJANTES EUROPEUS, mas em 1880 o governo da Índia enviou uma dupla de agente secretos que falavam tibetano para desvendar o mistério. Um deles era um lama chinês; o outro, um alfaiate de Sikkim chamado Kintup, que viajava disfarçado de peregrino. Sua missão era mapear, em segredo, o desfiladeiro. Para isso ele carregava uma roda de orações portátil equipada com um compartimento oculto com uma bússola e um termômetro. Depois de penetrar o máximo possível no desfiladeiro, ele supostamente deveria deixar 500 toras marcadas boiarem rio abaixo. Se membros de seu departamento conseguissem recuperar com sucesso qualquer uma dessas toras no Brahmaputra, o debate estaria encerrado de uma vez por todas.

In 1881, Kintup e o lama chinês chegaram a um célebre monastério em Pemaköchung, em pleno coração do desfiladeiro, além do qual ninguém havia se aventurado. Eles refizeram sua rota, voltando para o norte, mas o lama traiu Kintup e o vendeu como escravo. Kintup esperou por mais de um ano até escapar, em 1883, quando finalmente lançou as toras no rio —50 por dia, durante dez dias. Mas a essa altura os observadores rio abaixo já haviam voltado para a Inglaterra.

Duas outras tentativas notáveis de penetrar no desfiladeiro foram feitas no início do século 20. Em 1913, o capitão F. M. Bailey, um intrépido britânico caçador de faisões, consegui percorrer mais de 65 quilômetros, afligido por sanguessugas, febre, ferimentos e inanição, antes de dar a volta. Em 1924, um incrível botânico e explorador de Lancashire, Frank Kingdon Ward, e o nobre britânico Jack Cawdor seguiram por trilhas de caçadores através do Alto Desfiladeiro. Eles descobriram uma impressionante cachoeira, que batizaram de Rainbow Falls (Quedas Arco-Íris), subiram se arrastando por uma passagem chamada Senchen La e desceram até o tropical Baixo Desfiladeiro, tornando-se os primeiros estrangeiros a atravessar o Desfiladeiro Tsangpo. “A cada dia a paisagem se tornava mais selvagem; as montanhas, mais altas e íngremes; o rio, mais veloz e furioso”, escreveu Ward em seu livro de 1926, The Riddle of the Tsangpo Gorges.

Explorações recentes têm terminado quase invariavelmente em controvérsia e, em alguns casos, em morte. Em 1993, um caiaquista japonês chamado Yoshitaka Takei entrou no rio perto da confluência do Po Tsangpo, no extremo norte da Grande Curva, e pereceu nos primeiros quilômetros. No mesmo ano, o cineasta David Breashears e o fotógrafo Gordon Wiltsie tentaram fazer a travessia do desfiladeiro a pé e conseguiram dar uma olhada nas míticas Hidden Falls (Quedas Ocultas) antes de decidirem dar meia-volta. A National Geographic Society patrocinou em 1998 duas expedições ao Tsangpo. Na primeira, por terra, um grupo de norte-americanos liderado por Ian Baker, estudioso do Tibete, e Kenneth Storm Jr, aficionado pelo Tsangpo, fez um levantamento e mediu os 33 metros da espetacular Hidden Falls. O anúncio dessas descobertas causou protestos amargurados de geógrafos chineses, que vinham explorando o desfiladeiro desde 1973 e haviam fotografado as Hidden Falls de um helicóptero em 1987. A segunda foi a mal-fadada expedição do remador Wickliffe Walker, que terminou após a morte de Doug Gordon. A equipe de Walker, com quarto caiaquistas, foi criticada por tentar fazer a descida em outubro, com o rio cheio após a temporada das monções, o que muitos na comunidade dos caiaquistas consideraram suicida. O grupo tomou outra decisão crítica: viajar com uma equipe de apoio mínima para carregar os suprimentos por terra. Conseqüentemente provisões para muitos dias tiveram que ser levadas nos caiaques, deixando-os pesados e difíceis de manobrar.

Nas explorações anteriores de Scott Lindgren no Himalaia, ele também tinha viajado com pouca bagagem —alguns carregadores quando necessário, caiaques abarrotados de mantimentos e equipamento. Cinco meses antes de a expedição de Walker acabar em desastre, Lindgren e seu parceiro caiaquista Charlie Munsey haviam caminhado Po Tsangpo abaixo até a confluência, com a intenção de ali entrar no Tsangpo e tentar uma primeira descida do Baixo Desfiladeiro. Embora tenham conseguido vencer alguns quilômetros pelo Po Tsangpo, decidiram que pegar a enorme torrente do rio seria idiotice.

Nos três anos seguintes, Lindgren bolou uma ambiciosa estratégia que, acreditava, lhe daria uma chance de conseguir fazer a primeira descida do Alto e do Baixo Desfiladeiro em uma única expedição. Primeiro, ele necessitava de caiaques leves, o que significava uma grande equipe de apoio para levar o equipamento. Segundo, a expedição precisava de recursos para operar de uma maneira metódica, cuidadosa e independente por até 50 dias. Terceiro, ele concluiu que a única época razoável para tentar descer o Tsangpo era no meio do inverno, entre as monções e a primavera. Se a expedição fosse programada para descer quando o Tsangpo estivesse em seu nível mais baixo, ele talvez até tivesse uma chance.

Mas seu projeto sairia caro. Lindgren, de temperamento ousado e rebelde, sabia que precisaria de um belo patrocínio para pagar um pequeno exército de quase cem pessoas, capaz de se sustentar por semanas a fio. O tamanho do grupo e a duração da jornada, percebeu, fariam da tarefa de arranjarem vistos e autorizações uma complicada maratona diplomática.

Para realizar seu sonho de uma aventura do século 21, Lindgren sabia que teria de se valer do estilo grandioso das expedições do século 19, obsoleto há 50 anos. No meio de janeiro, após quase um ano de intensas preparações, a equipe partiu de São Francisco, pronta para encarar seu destino.

AS PRIMEIRAS CORREDEIRAS eram jardins de pedras, com bastante espaço para manobrar. Mas, ainda assim, as hidráulicas—valas profundas que podiam prender os caiaquistas em seu remanso—eram imensas. O rio não era só poderoso, mas gelado, com temperatura por volta de 5º C. Apesar de roupas de mergulho, capacetes e luvas de neoprene, a submersão em um desses buracos causaria um choque térmico e rapidamente sugaria a energia do corpo.

Era quase noite no primeiro dia quando os caiaquistas chegaram à primeira queda para valer, uma curva larga para a esquerda que descia íngreme por uma série de buracos. Os três primeiros caiaquistas, Abbott, Ellard e Willie Kern, passaram pelas corredeiras e escaparam do primeiro grupo de hidráulicas. Então Kern foi arrastado. A corrente caótica levou-o para a direita e virou seu caiaque. Ele rolou de volta tarde demais para evitar um dos grandes buracos e sumiu. Após o que pareceu ser um tempo perigosamente longo, ele surgiu no meio da espuma, chacoalhou a cabeça e remou para a esquerda até as águas verdes. Dustin Knapp contornou a curva e fez a mesma coisa—exceto que, quando caiu no buraco, o rio o lançou doze metros para a direita e o ejetou de cabeça para baixo. Ele se recuperou rapidamente e se juntou a Willie.

O plano era remar 70 quilômetros pelo Alto Desfiladeiro até Clear Creek, ponto além do qual o rio se espremia entre enormes paredões e caía em duas grandes cataratas, a Rainbow e a Hidden Falls. Em Clear Creek, a expedição inteira teria de escalar quase 1650 metros para atravessar Senchen La, um feito nunca tentado no meio do inverno. O tempo, as condições da neve e o risco de avalanches eram todos desconhecidos. Do outro lado de Senchen La, ficava o Baixo Desfiladeiro, onde os caiaquistas explorariam e desceriam tanto quanto conseguissem—por volta de 32 quilômetros, com sorte.

Naquela noite os caiaquistas e a expedição de apoio acamparam em um pasto perto de uma pequena aldeia chamada Tripe, a seis quilômetros do começo da corredeira. O clima ao redor da fogueira era de silêncio e reflexão. “Aprendi uma lição hoje”, disse Knapp. “Fazer um reconhecimento eu mesmo quando não estiver muito seguro.” Mike Abbott bebia chá. “O primeiro dia foi meio intimidador”, disse. Lindgren, pensativo após seu primeiro contato com a força do Tsangpo, falava pouco. “Quero todo mundo alerta”, pediu aos caiaquistas. “Uma pisada na bola lá fora e é o fim de tudo.”

Enquanto os caiaquistas mediam o tamanho do desafio, a equipe de terra composta por 80 pessoas, incluindo eu, havia passado o dia serpenteando por antigas trilhas de caça na escarpada margem direita do rio. O grupo estava sob a supervisão do guia de rios e fornecedor de equipamentos do Himalaia, David Allardice, um neozelandês de 44 anos que tinha uma base em Katmandu. Além de sua própria equipe de cinco sherpas nepaleses escaladores, Allardice havia recrutado68 carregadores tibetanos em Pe. Andrew Sheppard, um alpinista e esquiador radical de 29 anos, era o encarregado das escaladas técnicas. Ken Storm Jr, 50, que havia feito o levantamento de Hidden Falls em 1998, era perito em história natural e cultura do desfiladeiro. Charlie Munsey, 34, de Idaho, estava viajando a pé, desta vez como fotógrafo. Dustin Lindgren, 27, o irmão mais novo de Scott, vinha junto para cuidar das filmagens. A expedição de apoio carregava 2000 refeições desidratadas, 100 quilos de batatas e 30 quilos de chocolate e barras energéticas. Traziam também laranjas, cebolas, equipamento médico, sapatos de neve, piquetas, cordas, rádios, telefones por satélite, um laptop carregado de imagens detalhadas do rio e um gerador com painel solar.

Os mapas por satélite foram uma benção dos céus. Em Auburn, onde Scott Lindgren vive e mantém sua produtora de filmes, os caiaquistas passaram dezenas de horas olhando cada quilômetro do rio. Havia longos trechos que pareciam “estourar”, com as corredeiras completamente cobertas de branco. Willie Kern tinha encontrado fotografias das corredeiras tiradas por Kingdom Ward em 1924, e tentava, animado, correlacioná-las com as fotos tiradas pelos satélites, em uma bizarra justaposição de tecnologias.


FÚRIA TIBETANA: Os norte-americanos Scott Lindgren e Dustin Knapp remam forte para se safar das violentas corredeiras do Tsangpo

AO REMAR POR CIMA de uma grande onda classe 5 (as corredeiras são classificadas de 1 a 6, sendo que a última é mortal), por uma fração de segundo, dá para se ter uma visão do rio correnteza abaixo. É puro caos, um colidir contínuo. É possível ver silhuetas arredondadas de grandes pedras logo abaixo da superfície, e aí você tem certeza que logo depois delas há hidráulicas perigosíssimas. Jorros de água se erguem de rochas pontudas como se fosse serragem saindo de um serra elétrica. Bolsões de água rodopiante escapam da loucura e os limites desses redemoinhos podem agarrar e virar um caiaque em um instante.

Poucos esportes exigem um processamento de dados tão veloz. A sobrevivência depende de decisões tomadas na hora, tanto deliberadas como por reflexo. Um erro entre mil acertos em um único dia e sua vida pode chegar ao fim. Por todas essas razões, o caiaquismo é um jogo para individualistas. Ele atrai aventureiros que se deliciam em fazer tudo sozinhos. Cada um dos homens na equipe Tsangpo encarou algumas das maiores descidas e quedas-d’água da história do esporte, sendo que muitas dessas vezes foram os únicos membros de seus grupos dispostos a assumir o risco.

Para Lindgren, a liderança no Tsangpo exigia um incrível equilíbrio. Ele precisava da coragem e da confiança total dos companheiros, mas também de sua humildade para deixar de lado os desejos pessoais sem hesitar. A ele cabia manter a concentração enquanto carregava a responsabilidade final por qualquer problema, não importa o quão trivial ou importante, e por todas as vidas da expedição. Seu primeiro grande teste aconteceu no quinto dia, próximo às mesmas corredeiras que mataram Doug Gordon.

Até agora, o rio vinha sendo uma mistura de passagens rápidas, corredeiras inclinadas e jardins de pedras, descritos por Lindgren como “insanamente íngremes”. Os trechos de águas calmas levavam os caiaquistas ao largo de acampamentos de lenhadores, campos cultivados em níveis, ocasionais aglomerados de casas de pedra e santuários budistas.

No amanhecer do quarto dia, os sinais de habitações humanas haviam desaparecido. O rio, em seus trechos calmos, tinha uma cor turquesa e parecia polido na luz da manhã. Em todos os lados, os paredões do desfiladeiro se erguiam dezenas de metros, cobertos de névoa. Rio abaixo, erguia-se uma montanha de floresta. Ao lado dela, uma geleira descia por um cânion lateral, empurrando um monte de rochas e terras. Na areia úmida, os rastros de um grande felino, possivelmente um leopardo, acompanhavam a água. Já tínhamos passado da Musi La, um espigão que se ergue 750 metros acima do rio, a grande barreira para caçadores e peregrinos que descem pelas margens. Era brutalmente íngreme. Bambuzais densos e enormes árvores de 2 metros e meio de espessura confundiam até os sherpas, e os carregadores não estavam contentes. Do outro lado, a rota perdia qualquer semelhança com uma trilha.

No rio, os caiaquistas se vêem imediatamente diante de uma bela descida. Seis deles pegaram seus caiaques e os carregaram pela margem, mas Steve Fisher, o sul-africano, aproximou-se de uma rocha, da onde eu estava assistindo a tudo. Com ares de um golfista experiente se preparando para colocar a bola no buraco, observou a correnteza explosiva. “Sem problema”, disse.

Fisher voltou ao seu caiaque e o empurrou. Lançou-se em uma forte corrente que passava por um labirinto de rochas ao lado da margem esquerda, passou por duas passagens estreitas, pegou carona em um mini-redemoinho e subiu em uma ilhota de pedra. Ficou lá, segurando seu remo e vistoriando tudo. Depois voltou para a água e, com duas fortes remadas, achou o caminho na correnteza que tinha escolhido para voar por uma queda de quatro metros. Desaparecendo na espuma no fundo, ele levou um bom tempo, talvez um pouco demais, para se livrar. Em seguida remou com força em uma tempestuosa rampa de água que o levou a um redemoinho agitado perto do paredão esquerdo. Virou e se ajeitou novamente, seu caiaque balançando e raspando as rochas negras molhadas. Não há lugar mais difícil para girar o caiaque e se recuperar do que um redemoinho violento próximo a um paredão, mas Fisher manteve a concentração. Olhando em volta em busca de uma saída, escolheu seu caminho e saiu correndo do vortéx, de volta para a corrente principal, onde escapou de um ponto de impacto, quebrou outra grande onda e se viu livre.

Se um caiaquista de corredeiras for incapaz de remar para longe do perigo, ele só tem uma opção: puxar a corda de sua capa de vedação, sair do caiaque e nadar para onde for seguro. Nas drásticas corredeiras do Tsangpo, entretanto, haveria pouca chance de caiaquista resgatar um outro perdido na água. Uma corda jogada só alcançaria uma fração da extensão do rio. Apesar do apoio moral do grupo, cada caiaquista estava essencialmente por conta própria. Ter que nadar significa praticamente estar morto. Por isso, a equipe fez um pacto mórbido. “Conversamos sobre isso”, disse Johnnie Kern. “Decidimos que você afunda com seu caiaque. Nadar está fora de questão.”

PARA OS OUTROS CAIAQUISTAS olhando a descida de Fisher, principalmente Lindgren, era um momento decisivo. Fisher tinha bancado o cowboy e conseguido descer—mas ele poderia não ter conseguido. A comunicação não tinha sido clara e não havia um plano de ataque. Lindgren lidera com uma intensidade imperdoável e bruta. Durante a maior parte da viagem, esteve tenso como uma corda de piano, preocupando-se, calculando, ficando na sua. Algumas vezes parecia mal-humorado. Quando alguém dizia bom-dia, freqüentemente nem respondia ou saía de seu transe só o tempo suficiente para responder com um automático: “É, bom dia, como vai?”. Seus amigos, os caiaquistas que o conheciam há anos, diziam que era assim mesmo durante uma expedição. Você se acostuma.

Como alpinistas de grandes montanhas, os caiaquistas têm que lidar não só com seus próprios riscos, mas também com a culpa e a lamentação que vêm com a perda de companheiros íntimos. Em 1997, Johnnie e Willie Kern perderam seu irmão mais velho, Chuck, no Back Canyon do Gunnison, no Colorado. Viram Chuck desaparecer em uma horrível peneira de pedras. Lindgren dirigiu sem parar vindo da Califórnia para ajudar os gêmeos a recuperar o corpo. “Chuck era meu melhor amigo”, Lindgren disse, em uma noite em Lhasa. “Perdi 11 amigos em três anos para os rios.”

Não muito tempo depois do quase desastre de Fisher, os caiaquistas do Tsangpo chegaram ao trecho do rio onde Doug Gordon tinha morrido. Eles saem da água e, com a torrente reverberando no estreito cânion interno, fazem um momento de silêncio em sua honra. Ninguém da equipe parece estar com vontade de ficar falando sobre isso, mas naquele dia os caiaquistas fizeram uma reunião onde foram mudadas as regras do jogo. A questão propriamente dita da reunião foi que uma descida solo como a de Fisher não aconteceria de novo. Os caiaquistas prometeram deixar de lado a impulsividade e agir como uma equipe. Isso significava mover-se lenta e metodicamente, mantendo constante comunicação. Nada de apressar as coisas.

Nos dois dias seguintes, eles remaram juntos por corredeiras quase constantes, com o rio seguindo sua inexorável descida pelo Himalaia—um fluxo de 425 mil litros por segundo, em gradientes de 20 a 30 metros de descida por quilômetro, um volume equivalente ao Rio Colorado descendo pelo Grande Cânion, mas umas 15 vezes mais inclinado. No oitavo dia no Alto Tsangpo, uma pirâmide negra de rocha e pinheiros surgiu à esquerda. A montanha soltava fumaça e dava para sentir o cheiro de enxofre. Era a fortaleza de Dorje Traktsen, uma das moradas da vingativa divindade protetora do desfiladeiro. Do outro lado do rio, em uma encosta coberta de árvores, ficavam as ruínas do antigo monastério de Pemaköchung. Tudo ao redor era vegetação amassada: as camas dos animais chamados takin, bovinos corpulentos e baixos que são a presa favorita dos caçadores da região. Gorals, animais semelhantes a bodes, com lã avermelhada, pastavam nas encostas dos morros. Adiante, o rio desaparecia entre paredões elevados, serpenteando ao redor de espigões e drenos que o cortam de ambos os lados, marchando na direção leste. Além do desfiladeiro, altas montanhas de gelo e neve formavam um enorme horizonte branco. Ainda mais ao longe, visível através de uma fenda, um pedaço de Pome Range coberto de neve, fechando o lado norte do Baixo Desfiladeiro e forçando o Tsangpo a correr para a Índia, no sul.

No décimo dia os caiaquistas chegaram a um trecho de descidas tão íngremes que não dava para ver onde acabavam. Fisher, Abbott e Knapp fizeram um reconhecimento a pé, dizendo ter encontrado enormes buracos e uma travessia obrigatória (uma travessia, no caso, é quando o caiaquista aponta o caiaque para cima no rio, usando a corrente para mover-se de um lado para o outro). Se você perder uma travessia dessas, acaba sendo levado rio abaixo em direção a lugares que provavelmente vão te matar.

Lindgren fez a travessia primeiro, com Willie Kern e Ellard logo atrás. Eles cortaram o rio, seguindo na direção de uma grande rocha, atrás da qual havia uma piscina segura. Mas, rodeando a pedra, havia uma grande onda pulsante que se espremia como um funil na corrente principal. Quando Johnnie Kern bateu na onda, ela jogou-o de ponta-cabeça no meio do rio. Ele estava descendo às cegas na direção das traiçoeiras saliências, enquanto seu irmão gritava para que ele ficasse no centro. Ouvindo os avisos, ele encontrou uma rota de fuga e se livrou do perigo.

Só que o perigo não tinha acabado. Ao sair do santuário, Fisher foi atropelado por uma série de ondas grandes, caiu de cabeça para baixo em um buraco, virou, rolou e saiu segurando os dois pedaços de seu remo quebrado. Enquanto adernava em outro buraco, usou metade do remo, remando como se estivesse possuído, lutando para atravessar o rio. “Eu sei como Doug Gordon deve ter se sentido sendo jogado para o centro desse rio enorme, sem poder fazer nada, sem saber o que havia embaixo dele, mas sabendo que era tudo enorme”, disse Fisher naquela noite.


SEM MOLEZA: Famoso por sua habilidade em corredeiras violentas, o sul-africano Steve Fisher teve de dar duro também fora da água

11º DIA, 13 DE FEVEREIRO, ANO NOVO TIBETANO. Os carregadores se recusavam a trabalhar. Estavam cada dia mais preocupados e rancorosos. Tornavam-se mais freqüentes os pequenos furtos, como relógios e facas. Algumas centenas de metros abaixo do acampamento, o Tsangpo virava de repente para a esquerda, seguindo para o nordeste, passando direto por um corredor de altos penhascos, sem margens. Lindgren o apelidou de Rodovia Nordeste. A equipe ainda esperava encontrar as piores corredeiras e precisavam de um dia para fazer o reconhecimento. A Rodovia não tinha piedade. Em alguns lugares, a corrente era tão barulhenta que era preciso gritar nos rádios portáteis para ser ouvido pela equipe de terra. Mais de um terço da corredeira era inavegável, por isso a equipe passou horas içando os caiaques de rocha em rocha, escolhendo o caminho com cuidado ao longo dos penhascos. Quando tudo estava acabado, eles deslizaram até um belo acampamento. A equipe estava exausta e eufórica. Willie e Johnnie Kern tiraram suas roupas de mergulho. “Grande dia”, disse Willie. “É pra isso que a gente vive.”

Dois dias curtos e algumas corredeiras bem difíceis depois, em 16 de fevereiro, os sete caiaquistas caíram em vários pequenos redemoinhos em um dreno logo acima de uma curva apertada para a esquerda : Clear Creek. O canto era cercado por um penhasco que se erguia 1650 metros para cima, na direção do mundo de neve que é o Himalaia. Jogaram seus remos nas rochas pálidas, saíram dos caiaques e celebraram o momento histórico. A equipe de terra comemorou. Em 14 dias de combate, eles completaram os 70 quilômetros do Alto Desfiladeiro Tsangpo, remando por 100 das corredeiras navegáveis e carregando os caiaques apenas 23 vezes. Lindgren levantou a bandeira do Clube dos Exploradores. “O Alto Desfiladeiro Tsangpo está oficialmente conquistado”, comemorou.

Ninguém pôde curtir a glória. Tudo que a equipe de Lindgren tinha de fazer era olhar em volta: um beco sem saída cercado de grandes paredões de pedra e centenas de metros de faces de montanha quase verticais. O rio desaparecia ao redor de um canto, com o som de turbinas de avião. Logo abaixo, caía em cascata sobre as Rainbow Falls e, algumas centenas de metros mais à frente, vinha a catarata de Hidden Falls. Entre a Hidden e a junção com o Po Tsangpo, ficava o chamado Five Mile Gap (o Vão de Cinco Milhas), um trecho do Tsangpo tão profundamente enfiado no desfiladeiro que só foi visto por uns poucos ocidentais. A única saída era para cima.

66O METROS NEVE ACIMA e mais 1000 metros por trilha que, no inverno, era um completo mistério. Esse era o caminho para o Baixo Desfiladeiro, para onde Lindgren estava determinado a guiar seus caiaquistas para outra descida inédita. Naquela noite, no acampamento, Dustin Knapp tirou as alças de sua mochila e, concentrado, prendeu-as no seu caiaque. Logo os outros caiaquistas estavam preparando seus caiaques para serem carregados por sobre a montanha.

Ao raiar do dia, os carregadores tibetanos colocaram a carga nos ombros e seguiram os cinco sherpas para dentro do mato. O caiaquistas colocaram os caiaques de pé, prenderam as alças e tiraram suas estranhas mochilas do chão. A antiga trilha seguia direto para cima no meio de uma densa floresta. Seguia cada vez mais para o alto, por finos degraus de pedra e raiz, sob abetos e pinheiros. Os caiaquistas iam ao longo da encosta como coloridas feras da montanha, passando por uma velha bandeira de oração. Após nove horas brutais, o longo comboio de carregadores, caiaquistas e trekkers deparou-se com um campo de neve e escalou os restos de uma avalanche, armando acampamento a 3000 metros de altitude.

No amanhecer do dia seguinte, Andrew Sheppard seguiu na frente, subindo aos poucos uma ravina íngreme. Sua piqueta mantinha um ritmo constante de cortar e raspar, seguido pelo som de suas botas. Jangbu Sherpa acompanhava com sua piqueta, aprofundando os degraus. Depois vinha a fila de carregadores e os sete caiaques vermelhos, laranjas e amarelos.

O grupo caminhava encosta acima quando o transe foi quebrado por um grito: “Vira! Vira! VIRA!”. Tsawong, um tradutor tibetano de Lhasa, havia escorregado e estava deslizando montanha abaixo. Quando passou pela longa fila de homens, gritaram para que virasse e ficasse de barriga para baixo, para deter a queda. Próximo ao precipício, ele conseguiu fazer isso usando seu cajado. Ficou lá parado em um pequeno amontoado de pedras e chorou. Sob o sol forte a neve estava ficando perigosamente fofa, mas não havia tempo para colocar cordas. Um carregador arrancou um pedaço de pedra do tamanho de um prato que bateu no antebraço de Johnnie Kern a passou por entre as pernas de Ken Storm, ferindo sua panturrilha. Finalmente, os carregadores e caiaquistas alcançaram o topo. Em um monte de pedras varrido pelo vento, cercado por um mar de neve, largaram suas cargas a 4100 metros de altitude.

Lindgren desabou sobre seu caiaque amarelo, com o queixo nas mãos. “Isso foi foda”, disse. “Não foi seguro.” Agora, tínhamos de fazer a travessia. Senchen La, sobre a vila de PayŸ, que ficava sob a grande confluência, exigia que déssemos a volta pelo topo da encosta antes de descer novamente. Havia penhascos e fendas congeladas. Provavelmente seria tão ou mais íngreme que o caminho que tínhamos completado. Os carregadores se recusaram a seguir por esse caminho. Eles se juntaram e disseram ao neozelandês Dave Allardice que, de jeito nenhum, iriam a Senchen La. Acenderam seus cigarros e comunicaram para onde iriam: a vila de Liku. Nada de travessias arriscadas, só direto através do topo. Allardice é um cliente difícil. Quando guerrilheiros maoístas nepaleses apareceram de repente em sua empresa de equipamentos em Katmandu exigindo tributo, ele explicou o quanto já tinha feito por escolas e vilas locais e disse que não lhes daria um maldito centavo. Concluiu com uma palestra sobre as realidades políticas do Nepal. Dessa vez, os carregadores balançaram as cabeças. Senchen La era perigoso demais, impossível no inverno. Vamos para Luku primeiro, falaram, depois rio acima até PayŸ. Allardice exigiu, depois discutiu, em seguida bajulou e finalmente decidiu que talvez os carregadores tivessem razão.

A expedição seguiu para Luku, descendo quilômetros. Mike Abbott deixou que o caiaque o levasse. Jangbu, Sheppard e os carregadores deslizaram de bunda. Após mais uma travessia pela rocha sobre uma queda de gelo, estávamos novamente na mata. Já era noite. Willie Kern estava abalado—todo mundo estava. “Eu acabei de me colocar num risco maior do que me permito no rio”, disse. “Estava escalando pela neve, com degraus pequenos, preso a um perfeito tobogã”, disse Dustin Knapp. Steve Fisher, sobrevivente de incontáveis quase desastres, admitiu simplesmente: “Isso foi a coisa mais perigosa que já fiz”.


COM A BENÇÃO DO HIMALAIA: Lindgren carrega seu caiaque tendo ao fundo os picos nevados da cordilheira

DEZOITO DIAS APÓS A CAÍDA N’ÁGUA, em Pe, e após quatro dias carregando caiaques sem parar, a exausta companhia saiu da selva do Baixo Desfiladeiro e chegou à vila de Gogden, com uma população de cerca de 150 pessoas. Além da vila ficava o Tsangpo, em uma fenda tão profunda que nem dava para ver a água. Do outro lado do desfiladeiro, havia um paredão de campos cultivados em degraus e casas esparsas sob picos nevados.

Os membros da expedição foram convidados a diversas casas e, na escuridão de salas enegrecidas por fumaça, comeram pipoca fresca e beberam aguardente. As fornalhas abertas brilhavam vermelhas, as rodas de oração de bronze ao lado delas cintilavam e as prateleiras estavam cheias de estômagos de porco recheados de manteiga. Os caiaquistas gesticulavam para seus espantados anfitriões mönpas. Diferente dos fazendeiros de Pe e do Alto Desfiladeiro, os mönpas eram caçadores—uma das poucas culturas budistas caçadoras no planeta. Eles serviam manteiga de iaque, uma espécie de boi selvagem asiático, para ser apreciada junto com a aguardente e, quando fomos levado para o pasto para armar o acampamento, alguns de nós não conseguíamos nem desamarrar os sapatos.

No dia seguinte, Mike Abbott, Willie Kern e Dustin Knapp foram até o Baixo Desfiladeiro para dar uma checada no rio e, quando voltaram, relataram uma assustadora transformação: a corredeira cor de turquesa, aumentada pelas águas do Po Tsangpo, corria entre dois paredões de pedra maciça, a 100 metros de altura. As margens rochosas que tínhamos visto nas fotografias por satélite haviam desaparecido. O rio era uma calha de paredões íngremes acompanhados por uma impressionante cicatriz, a marca de um cataclismo. Em junho de 2000, apenas um mês depois do satélite da Space Imaging ter passado por cima do lugar, uma grande represa de lama que havia se formado após um deslizamento de terra no Yigong, um afluente do Po Tsangpo, tinha se rompido. Ken Storm e a equipe tinham ouvido falar dessa enchente repentina, mas nada havia lhes dado a menor idéia da verdadeira escala da transformação do Baixo Desfiladeiro.

TODO CAIAQUISTA DE EXPEDIÇÃO tem o mesmo pesadelo: remar até se ver em um ponto sem saída. Um rio sem margens é um beco sinistro. Uma vez que se está lá dentro, diante de quedas mortais, não há com cair fora ou dar meia volta. Com uma vazão muito alta, um rio como esse exibe uma hidrologia mortal. A água rebate nos paredões e cai em cima de mais água. Para um caiaquista conseguir chegar a um dos lados, ele tem na verdade que remar contra a corrente. Os redemoinhos dos cantos ficam tão intensos que podem até engolir e expulsar o caiaquista quando ele tenta atravessá-los.

O baixo Tsangpo tinha se tornado um rio exatamente assim. A enchente havia simplesmente apagado as margens rochosas que seriam a solução para uma passagem segura dos caiaquistas no Alto Desfiladeiro. Enquanto saíamos caminhando de Gogden, o rio batia furioso contra os paredões escavados, sem nenhuma saída à vista. Os caiaquistas começaram a se tocar que o Baixo Desfiladeiro havia se tornado quase intransponível.

Mais outro passo cheio de neve, direto até uma floresta tropical, chegando a um aglomerado de casas à beira do desfiladeiro: a vila de PayŸ. Daqui dá para olhar direto por cima do rio, que faz um S pelo meio de paredões com centenas de metros de altura. Em cada curva havia acidentes trovejantes e quedas de água, tudo cercado por uma faixa de 30 andares de altura de pedra maciça. Lindgren balançou a cabeça: “De PayŸ a Luku está fora de questão. Vamos dar uma olhada rio acima”. Os caiaquistas foram ver o rio. Passaram o dia divididos em duas equipes, uma descendo até o rio logo abaixo de PayŸ, a outra caminhando rio acima, seguindo a curva S para procurar um acesso ao rio e locais exploráveis. Não parecia nada bom.

Apesar da quantidade de neve que encontramos lá no alto, Storm, Allardice, Sheppard, Dustin Lindgren, dois sherpas e dois guias tibetanos decidiram se arriscar em uma audaciosa expedição paralela: iam tentar escalar por cima de Senchen La e descer até a Hidden Falls. Enquanto o resto da expedição continuou rio acima até o topo da Grande Curva, esse pequeno grupo seguiu direto pelo lado do desfiladeiro acima. Disseram que iam ficar talvez uns cinco dias atrás do resto do pessoal. Pela primeira vez, a equipe estava se separando.


SANGUE FRIO: Scott Lindgren encara com coragem as águas supergeladas do Tsangpo

Lindgren ainda tinha esperanças de que pelo menos um pedaço abaixo da confluência do Po Tsangpo pudesse ser percorrido de caiaque. Após outro reconhecimento, o grupo de Lindgren voltou ao Tsangpo e acampou em uma praia com uma macia areia branca e fina. O rio passava correndo e trovejando ao lado. “É um rio diferente”, comentou Lindgren, “bem grande”.

Uma descida da confluência até o PayŸ era de apenas 13 quilômetros de rio, mas Fisher achava que o fluxo era de 710 mil litros de água por segundo, quase o dobro da corrente no Alto Desfiladeiro. Havia grandes quedas rio abaixo, sem nenhum lugar para sair da água e carregar o caiaque. Os mapas por satélite eram agora inúteis para avaliar as corredeiras e planejar uma rota.

Em nosso acampamento final, na vila de Tsachu, empoleirada em uma encosta sobre o rio, os sete caiaquistas fizeram uma conferência. Lindgren disse: “Já ganhamos nossas medalhas de ouro”. Ele pediu que os caiaquistas votassem: quem estava disposto a dar tudo por encerrado? Sete braços de ergueram. O rio havia se imposto. Ele mudou radicalmente e deu uma lição de humildade aos caiaquistas. Lindgren tinha deixado claro desde o começo que não assumiria riscos às cegas. Chegaram até ali e ele não pretendia deixar nenhum morto pelo caminho.

Eles haviam sido os primeiros a descerem o grande prêmio do Tsangpo, o famoso Alto Desfiladeiro. Agora encerravam a expedição com uma descida inédita de um trecho de 14 quilômetros de Po Tsangpo. Depois remaram pela junção dos rios e por alguns quilômetros do Yarlung Tsangpo, contornando o ápice da Grande Curva. No dia seguinte a turma da Hidden Falls chegou ao acampamento, triunfante. Haviam chegado à cachoeira e Andrew Sheppard desceu por lá de rapel até os limites da Rainbow Falls.

Ficamos uma semana em Tsachu. Bandos de garças negras estavam migrando para o norte. À noite seus sons alarmados desciam das trevas. Aldeões curiosos se reuniram em nosso acampamento e nos disseram que algo inominavelmente triste estava prestes a ocorrer em Tsachu e PayŸ e todas as outras aldeias ao redor da Grande Curva. O governo controlado pelos chineses os havia dito que, na primavera, essas vilas seriam despovoadas e os residentes seriam realocados para novas cidades e fazendas fora do desfiladeiro. Havia rumores de um parque nacional—ou o projeto de uma enorme hidrelétrica.

“Ninguém mais vai morar aqui?”, perguntamos. Eles balançaram as cabeças, negativamente. Andamos até sair de Po Tsangpo, seguindo para a Estrada Chengdu. Parecia o fim de mais do que só uma expedição. Se as notícias forem verdadeiras, os caçadores mönpas não iriam mais assombrar as trilhas altas, colocando novas bandeiras de oração em sua passagem. Sobrariam apenas o barulho das garças voando, o vento e o som incessante do grande rio.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2006)