ULTRATRAIL DU MONT BLANC
Por Décio Ribeiro
Sonho ou pesadelo? Essas duas palavras não saíam do meu pensamento desde que, em dezembro de 2005, eu e meu colega André Arruda descobrimos o site da The North Face Ultra Trail Tour du Mont Blanc, uma corrida realizada nos arredores do mítico Mont Blanc e cujo percurso, de 158 quilômetros, acontece em três países _França, Itália e Suíça. Ficamos apaixonados pela prova e, mesmo sabendo das dificuldades que certamente estariam por vir, fizemos nossa inscrição para o evento, que neste ano aconteceria entre os dias 25 e 27 de agosto.
Não tínhamos muitas informações sobre a corrida, mas as poucas que chegavam até nós eram de arrepiar: somente um terço dos inscritos terminam o desafio. Em 2005, dos 2000 participantes, apenas 700 concluíram o percurso dentro do tempo-limite de 45 horas. Apesar dos obstáculos, topamos o negócio, afinal, somos aficionados por aventuras desse tipo. Decidimos que tínhamos de nos preparar para não fazer feio entre os gringos. Durante o primeiro semestre deste ano, treinamos cerca de 1600 quilômetros, mas mesmo assim pairava a dúvida: será que estamos preparados?
Entregamos tudo pra Deus. Depois de passar pelo incrível túnel do Mont Blanc, chegamos a Chamonix, na França. Às 19h05 do dia 25, uma sexta-feira, foi dada a largada. Depois de um trecho plano de 8 quilômetros, tivemos de pegar nossos bastões de trekking para enfrentar uma primeira grande subida. Optamos por sair com a mochila cheia de água, pois assim não precisaríamos parar nos primeiros Postos de Controle, que estavam congestionados.
Os pontos de abastecimento eram impressionantemente fartos, sempre com frutas, chocolates, macarrão. Havia até postos com estrutura para massagem, banho e podólogo! Sem falar na tecnologia de ponta, em que chips fixados em cada atleta mostravam sua posição para todos que quisessem acompanhar online o desafio.
Nosso foco principal era terminar a corrida, por isso nos mantivemos atentos para não sermos eliminados nos PCs de corte e deixamos a briga pela vitória para os favoritos, que se distanciavam cada vez mais. A vontade de cruzar a linha de chegada era tanta que eu e o André levamos a sério o papel de dupla, ora um puxando o outro, orientando e incentivando o companheiro sempre que necessário. André estava preocupado com o fato de nunca ter ficado duas noites sem dormir, como quase sempre acontece em corridas de aventura. Com exceção de dois pontos estratégicos nos quais paramos por 1 hora, o resto do tempo descansávamos e nos abastecíamos em pitstops de cinco a dez minutos.
Mesmo a força de vontade e uma estratégia bem planejada não foram suficientes para nos livrar dos imprevistos. Próximos de completar 100 quilômetros de prova, André começou a sentir dores no joelho direito, obrigando-nos a diminuir o passo. Felizmente estávamos a sete horas de vantagem do tempo de corte. Com o impacto nos trechos de descida, suas dores pioraram. Tudo ficou ainda mais complexo quando pegamos uma noite inteira de chuva, que deixou as trilhas superescorregadias e perigosas entre os quilômetros 126 e 142. Mas como tudo o que é mais difícil também é mais gostoso, seguimos em frente.
No quilômetro 149, começamos uma contagem regressiva e nem mesmo a longa e fria madrugada nos impediu de continuar. Faltando apenas nove quilômetros, fizemos força para manter a calma, já que não dava para aumentar o ritmo. Nossa missão de representar bem o Brasil estava se tornando realidade. Às 7h44 do domingo, dia 27, cruzamos a linha de chegada, com a bandeira verde-e-amarela nas mãos. Maravilha: fomos os primeiros brasileiros a concluir os 158 quilômetros da Ultra Trail do Mont Blanc. Uma experiência assustadora, mas totalmente fascinante.
TRANSALPINE RUN
Por Stefani Jackenthal
Atravessar os Alpes de norte a sul, da Alemanha até a Itália, cruzando os territórios austríaco e suíço, pode parecer glamouroso. Mas a atmosfera de sofisticação se dissipa quando você tem pela frente 233 quilômetros para serem percorrido a pé em apenas oito dias. Foi o que tive de fazer no TransAlpine Run, uma ultramaratona que rolou entre os dias 2 e 9 de setembro na Europa.
A superprova reuniu 100 duplas, que teriam de correr na pauleira da cidade alemã de Oberstdorf até Latch, na Itália. Enquanto eu olhava para as íngremes montanhas que me esperavam, lembrava de meu parco preparo físico feito nas ruas de minha cidade, Nova York. Mesmo assim, eu e meu parceiro sueco, Fredrik Ölmqvist, tivemos uma corajosa largada, liderando a horda de duplas mistas. Os 28 quilômetros da primeira etapa foram vencidos tranqüilamente dentro de uma densa floresta. A organização disponibilizava frutas e hidratação, o que nos poupava de carregar muito peso nas mochilas. Por motivos de segurança, os integrantes de cada dupla não podiam ficar mais de 30 metros separados um do outro.
Após o começo de trilhas fechadas, partimos para o traiçoeiro sobe-e-desce das montanhas alpinas. Mais uma vez meu instinto nova-iorquino veio à tona quando um casal local nos ultrapassou como cavalos adrenados. “Não há montanhas assim em Nova York…”, eu refletia, cabisbaixa.
Continuamos em nossa toada, prestando atenção na demarcação da organização feita com fitas amarelas e tendo o máximo de cuidado nos trechos com neve. Estavam tão escorregadios que parecia que alguém havia jogado azeite no caminho. O primeiro dia terminou na cidade austríaca de Steeg, mas as etapas seguintes reservariam um terreno ainda mais inóspito, com os cansados participantes tendo de usar cordas para não cair, principalmente no trecho seguinte de 30 quilômetros que contava com uma ascensão de quase 2000 metros.
Já ouvíamos os gritos da torcida, enquanto nossos pulmões buscavam fôlego e nossas trôpegas pernas tentavam vencer o terreno acidentado. A essa altura em terceiro lugar, apertamos o passo em um ritmo forte até que Fredrik se desequilibrou e caiu. Ao ver a cena, corri perguntado: “Está tudo bem?” e acabei tropeçando nas palavras e num buraco. Levantamos prontamente, mas terminamos o dia em quarto lugar. Até a cerveja sem álcool das áreas de descanso nos animavam a prosseguir na luta.
Após o terceiro dia de 35 quilômetros, com 2500 metros de ascensão, minha panturrilha direita pediu água. Aliás, ela reclamou durante todo o dia e eu não tinha como continuar. Parei, mas minha dupla seguiu em frente. Fredrik conseguiu um outro parceiro pelo caminho, mesmo que, oficialmente, já estivéssemos fora da disputa.
O quarto dia deu uma folga às duplas daquele sobe-e-desce de doer. Apesar da longa distância de 42 quilômetros, os corredores encararam um terreno plano em meio a uma floresta para, no dia seguinte, dar de cara com um pequeno, porém extremamente íngreme, trecho de 5,4 quilômetros. As melhores duplas fecharam esse percurso em 42 minutos.
Restavam mais três dias de prova e os ultracorredores encontravam ânimo só de pensar na chegada. Você sentia essa energia nas áreas de descanso, mesmo com trechos que se seguiram, de 38, 33 e 24 quilômetros, respectivamente.
Eu não pude sentir na prática, mas imagino o entusiasmo desses heróis ao entrar na pequena cidade italiana de Latch, cheia de largos campos que exalavam o doce aroma das macieiras. A alegria foi dividida com o povo italiano, que saudava os atletas. O melhor é que, a partir de agora, esses corajosos esportistas podem falar para todo mundo que um dia já cruzaram os Alpes de norte a sul, a pé.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2006)
PERNAS PARA QUE TE QUERO: Participantes cruzam os Alpes na Ultratrail du Mont Blanc