O silêncio que tudo traduz


REINO ANCESTRAL: Mustang, no Nepal, localiza-se na vertente norte da cordilheira, também conhecida como Trans Himalaia, precisamente no interior da falha de Kali Gandaki, uma das gargantas mais profundas do planeta

Por Henri Ajl

Fotos por Henri Ajl / Baboon Imagens

AVISTEI O HIMALAIA PELA PRIMEIRA VEZ NUMA MANHÃ FRIA DE MARÇO. O inverno na Índia estava chegando ao fim, mas a geada da madrugada ainda era forte o suficiente para deixar uma fina camada de gelo sobre o teto dos casebres de Binsar. Eu havia chegado ao vilarejo na noite anterior, depois de uma jornada de doze horas por estradas estreitas e perigosas que cortam o norte do país. Dormi na casa de uma família local que havia conhecido no ônibus. Durante a viagem, ensaiamos uma conversa num inglês meio deficiente e, ao chegarmos, fui convidado a jantar e a descansar junto a eles. Pela manhã, o caçula da família insistiu em me guiar por entre terraços de trigo maduro até uma crista de montanha que ficava bem acima do vilarejo.

Os raios de sol começavam a penetrar entre as encostas verdes do vale, tingindo a plantação de um amarelo quente. Caminhando em direção à crista, eu olhava pra trás e observava a coleção de casebres da vila. Não mais de duzentas pessoas deviam viver ali. Nesse momento, o garoto puxou a minha mão, pedindo atenção, e apontou o horizonte. A imagem era confusa e arrebatadora. Terra e Céu se confundiam numa beleza indefinível, um universo em si mesmo. Naquele horizonte inalcançável eu enxergava uma muralha branca, uma porção do planeta que chegava ao céu. As montanhas estavam envoltas pelas nuvens e pelo silêncio que tudo traduz, pois o Himalaia, mais do que explicado, deve ser sentido.


MORADORA DE MUSTANG: Ali, as mulheres podem se relacionar intimamente com diversos homens sob a proteção de leis e dos costumes locais

O Himalaia me despertou a paixão pela viagem, pelo universo outdoor e pela vontade de conhecer – e registrar – esse mundão. Como não poderia deixar de ser, a maior cordilheira do planeta se tornou um dos principais focos da minha atenção pessoal e profissional. Em nenhum outro lugar da Terra me deparei com paisagens tão magníficas e, ao mesmo tempo, assustadoras. Montanhas nevadas de quase nove mil metros de altura rasgam o céu e ultrapassam os limites da compreensão. Tempestades varrem os vales que segmentam a cordilheira em toda a sua extensão, lançam a neve e o gelo que bloqueiam passagens e causam avalanches. Num ambiente tão hostil como esse, é de se imaginar que o vento passe desimpedido, zunindo por entre as torres de pedra, sem vilas nem gente para atrapalhar. Mas a realidade é outra. Desde tempos imemoriais, o Himalaia é a morada do Homem. De muitos homens. Das mais diversas origens, religiões e culturas. E sendo a morada de tantos povos, acaba por ser a morada dos deuses. Aponte a um hindu a cordilheira no horizonte e ele prontamente exclamará: “Devbhumi!” – a “Casa dos deuses”, em sânscrito.

Até cientistas renomados, especializados nos processos geológicos formadores das cordilheiras, rendem-se ao “elemento divino” presente no Himalaia. Em 2003, entrevistei o geólogo-chefe da Universidade de Oxford, Michael Searle, sobre a presença de fósseis marinhos em toda extensão da Garganta Kali Gandaki e na face tibetana do Everest. Ao indagá-lo sobre a incrível semelhança entre as teorias geológicas de formação da cordilheira e a mitologia tibetana sobre a criação do Tibete, Searle deu uma resposta emblemática. “É claro que existem explicações geológicas de causa e efeito para estas questões, mas não se pode negar que o resultado final desse processo, ou seja, a formação de uma barreira formidável de quase três mil quilômetros de extensão suscita indagações espirituais profundas”.


DISTINTOS: Um trekking pela face sul do Himalaia é uma experiência muito diferente de uma aventura empreendida pelo lado norte. Vales talhados, geleiras, rios caudalosos e as montanhas são verdes. Já o norte é muito mais seco, a cor dominante é o pastel, mas os paredões erodidos pelo vento expõem as suas entranhas e oferecem um espetáculo de cores variadas

Barreira, talvez, seja a melhor definição para o Himalaia. A cordilheira divide a Ásia em vários aspectos. Em primeiro lugar, ela desenha uma fronteira natural entre o subcontinente indiano e o platô tibetano. Esse aspecto é fundamental, pois determina, inclusive, as diferenças climáticas, ambientais e étnicas das duas regiões. Enquanto o subcontinente indiano recebe chuvas torrenciais por quatro meses durante o período das Monções – de junho a setembro – o platô tibetano permanece árido durante o ano todo, graças à intransponível barreira representada pela cordilheira, que impede a penetração da umidade vinda do sul.

Esse diferencial no índice pluviométrico das duas regiões proporcionou desenvolvimentos de ecossistemas distintos. Um trekking pela face sul do Himalaia é uma experiência muito diferente de uma aventura empreendida pelo lado norte. Na primeira, caminha-se por vales talhados por geleiras e por rios caudalosos. As montanhas são verdes, o musgo recobre as pedras e, nos meses de abril, as árvores de rododendro – conhecidas como azáleas – perfumam a trilha. Já o norte é muito mais seco. O tom dominante é o pastel, mas os paredões erodidos pelo vento expõem as suas entranhas e oferecem um espetáculo de cores variadas. A vegetação é quase inexistente, a não ser quando nos aproximamos de algum vilarejo, onde o sistema milenar de canais traz a água do degelo e permite o cultivo do trigo e da cevada sobre o solo arenoso.

Civilizações também se desenvolveram separadamente em razão da cordilheira. No subcontinente, povos indo-arianos deram origem a reinos e impérios. Ao norte, as populações tibetano-mongolóides também desenvolveram complexas organizações sociais, uma teocracia embasada no budismo tântrico e uma sociedade perfeitamente adaptada às exigências de uma vida a mais de quatro mil metros de altitude.

Apesar do formidável obstáculo representado pela “Barreira”, os homens – tanto do norte como do sul – forçaram brechas na cordilheira, lançaram-se à imensidão desconhecida da “Morada das Neves”, que é o real significado de Himalaia em sânscrito, e abriram rotas de contato e de comércio pelas montanhas. Algumas dessas brechas, como a Garganta de Kali Gandaki, na região de Mustang, tornaram-se verdadeiras “estradas himalaias” por onde caravanas de mercadores conduziam centenas de iaques, burros e cavalos, e transportavam riquezas variadas de um lado ao outro do Himalaia. Travessias épicas, tempestades e tragédias geradas por esse fluxo secular contínuo constituem um dos capítulos mais interessantes do imenso acervo cultural e histórico de toda a cordilheira.


NEPAL: Feira livre em Khumbu

AS MULHERES DE MUSTANG SÃO SORTUDAS. Afinal, quem imaginaria que neste confim isolado do Himalaia uma mulher poderia se relacionar intimamente com diversos homens? E ainda sob a proteção das leis e dos costumes locais? É provável que Mustang seja o melhor exemplo de como as limitações impostas pelo Himalaia determinam o desenvolvimento e o estilo de vida das populações que se estabeleceram no sopé das montanhas.

O reino ancestral de Mustang localiza-se na vertente norte da cordilheira, também conhecida como Trans Himalaia, precisamente no interior da falha de Kali Gandaki, uma das gargantas mais profundas do planeta, com paredões avermelhados com mais de cinco mil metros de altura. Diz a lenda que a entrada do reino é inviolável por estar protegida por dois titânicos guardiões. Esses gigantes de pedra são, na verdade, as montanhas Daulaghiri e Annapurna, ambas com mais de oito mil metros. Ironicamente, a entrada do reino é, de fato, tão protegida pela cordilheira, que nem mesmo a umidade consegue penetrar, transformando Mustang num dos pontos mais áridos de todo o Himalaia.

Para sobreviver, os súditos de Mustang, conhecidos como Lobas, desenvolveram técnicas para captação e canalização da água do degelo das montanhas e adaptaram suas estruturas familiares e sócio-econômicas. A terra arável é rara e preciosa, e representa o único bem familiar. Num jantar animado, aquecidos por um destilado adquirido junto a uma caravana vinda do Tibete, descobrimos que em Mustang a propriedade é indivisível. Os locais nos explicam que, para sobreviver, é melhor que os filhos de uma mesma família dividam a esposa do que a terra. Por isso, é normal que irmãos casem com uma mesma mulher e tenham filhos com ela.

Politicamente, Mustang pertence ao Nepal. Mas a língua, a religião e as tradições são tibetanas. As autoridades nepalesas impõem diversas restrições aos habitantes e aos viajantes que desejam se aventurar pela Garganta de Kali. O custo da licença de trekking é de US$ 700 por pessoa. Há, também, a exigência do acompanhamento de um fiscal do governo (US$ 600 por grupo) durante todo o percurso e é impossível organizar a caminhada de forma independente. Ultrapassadas as dificuldades burocráticas, Mustang surpreende a cada vale conquistado, a cada panorama inesperado e a cada vilarejo perdido no tempo e no espaço.


DIVERSIDADE: Dança das Máscaras na cidade de Leh

DESEMBARCAMOS EM LEH NO PRIMEIRO DIA DO FESTIVAL DE LADAKH. A cidade estava movimentada e uma atmosfera agradável pairava no ar – rarefeito, diga-se de passagem. Leh era o ponto de partida de uma viagem de um mês pela Caxemira Indiana. O Himalaia atravessa o coração da Caxemira, seccionando a região em duas metades muito distintas. A oeste da cordilheira viaja-se por uma região verde e fértil, abençoada por chuvas regulares que propiciam o cultivo de arroz, açafrão, tubérculos e frutas dos mais variados tipos. Essa metade ocidental da província é conhecida como a Caxemira islâmica, uma região muito mais parecida com a Ásia Central do que com o subcontinente indiano. Essa similaridade tem raízes culturais e históricas, afinal, há mais de seis séculos, diversos reinos maometanos sucederam-se no domínio na região. É verdade que a Índia passou a controlar boa parte da Caxemira após a turbulenta independência de 1947, mas essa soberania se deve mais ao poder de convencimento da metralhadora do que ao coração e ao desejo dos habitantes do lugar. Não à toa, a região está em guerra há mais de 50 anos.

Ladakh, que está do lado de lá da Cordilheira, não ficou imune a toda essa confusão. Na década de 60, a região foi palco de duas guerras entre a Índia e a China pelo controle de uma área fronteiriça. No final, a China acabou levando pra casa uma fatia considerável do território Ladakh. Atualmente, Paquistão e Índia travam o conflito mais insano do planeta, enfrentando-se num campo de batalhas surreal, em meio a avalanches e tempestades, nas altitudes da Geleira de Siachen. O povo Ladakhi também tem de lidar com problemas de outra ordem, relacionados com a má vontade dos deuses em despejar sobre a terra árida a água que sobra do outro lado da Grande Barreira. A seca é séria e atrapalha a vida de moradores e viajantes. Nossa equipe foi obrigada a cancelar um trekking de dez dias até a remota cordilheira de Zanskar em razão da falta de pasto para alimentar os cavalos da expedição.

Para conectar as duas metades da Caxemira, viaja-se por uma estrada labiríntica que serpenteia por desfiladeiros intermináveis. Pilotando o ônibus, o motorista faz ginástica digna de atleta para manter as quatro rodas dentro do asfalto. A estrada dá medo, mas as atrações que surgem durante a epopéia rodoviária justificam o enjôo provocado pelas curvas. Desafiando a sede das montanhas do Trans Himalaia, o rio Indo segue, determinado, o seu caminho rumo ao Golfo da Arábia. Da janela do ônibus, vêm à mente as imagens do filme Alexandre, quando as tropas macedônicas, às margens daquele rio, obrigam o líder-guerreiro a abandonar sua investida contra a Índia e o convencem a regressar à terra natal.

Foram dois dias de viagem até alcançarmos Srinagar, capital da Caxemira islâmica. A presença de soldados indianos por todos os lados indica que o conflito permeia o dia-a-dia do lugar. Viajamos por diversos vilarejos e conhecemos personagens adoráveis e hospitaleiros e nos deliciamos com a culinária local. Convidados para um casamento tradicional, descobrimos que na Caxemira vegetariano não tem vez. São dezenas de pratos diferentes, todos repletos de carne. Tradicionalmente, os casórios se arrastam por quatro longos dias. A festança é tão exagerada que algumas famílias vão à bancarrota mesmo antes do último convidado ir embora. Tentando acabar de vez com isso, o governo editou uma nova legislação limitando o número de pratos servidos nos casamentos. A população não aprovou a medida e a lei não pegou. Afinal, acabar com costumes tão antigos numa sociedade tão conservadora como essa não é tarefa simples.


LADAKH: Vista da cidade

TODOS OS DIAS, QUASE UM BILHÃO DE SERES HUMANOS VENERAM O RIO GANGES, NA ÍNDIA. Em nenhum outro lugar do planeta, gente e água relacionam-se de uma forma tão íntima. Ao amanhecer, o hindu se achega às margens do rio e pratica atos de devoção. Reza, canta e sai dali purificado. É no Ganges, também, que realiza os últimos ritos do ciclo da vida, cremando os mortos e lançando nas águas as cinzas dos entes queridos para serem levadas pelo fluxo milenar que renova a planície do subcontinente. A espiritualidade é uma característica intrínseca da sociedade hindu e o rio Ganges é o seu maior expoente.

Essas águas sagradas só poderiam mesmo brotar de um solo sagrado. Gangotri, Yamunotri, Kedarnath, Badrinath – as quatro nascentes do Ganges – estão encravadas em Uttarakhand, em pleno coração do Himalaia indiano. Esta é uma região fascinante, que habita o inconsciente de religiosos há milênios e de aventureiros há séculos. Sadus, os famosos ermitões hindus, peregrinam periodicamente entre as quatro nascentes do rio. No seu trajeto, dão provas inquestionáveis de devoção e fé. Em minhas passagens pela região, tive a oportunidade de testemunhar momentos incríveis. Durante o Festival de Shivaratri (Noite de Shiva), avistei centenas de ermitões subindo descalços as encostas geladas das montanhas portando apenas o tridente. Nestas trilhas úmidas e íngremes, um encontro inusitado acontece: religiosos seminus avançam lado a lado com exploradores superequipados, todos Himalaia acima. Os aventureiros, contudo, não objetivam apenas as nascentes sagradas. Querem ir além, desafiar os limites para alcançar os cumes nevados.

O Hinduísmo é a religião dominante nesta parte da cordilheira. O panteão de deuses hindus é colorido e variado e diversos templos dedicados às divindades estão espalhados pelas montanhas. Foi à procura de um deles, em homenagem ao deus macaco Hanuman, que nossa equipe ficou perdida em meio a um mar de montanhas e teve de dormir ao relento, em pleno Himalaia. Era o último dia de uma longa caminhada pelo Vale do Pindari, região remota próxima às fronteiras do Nepal e do Tibete. Naqueles dias, não estávamos com sorte na contratação de guias locais. O primeiro nos acompanhou aos trancos e barrancos por alguns dias, mas teve de ser despachado para casa depois de desaparecer com as nossas mochilas durante uma overdose etílica. O segundo, contratado para o último dia da viagem, nos colocou numa enrascada ainda maior.


TRADIÇÃO: Garota loba, como são conhecidos os súditos de Mustang

Nosso destino era uma crista isolada no alto das montanhas, com vistas desconcertantes do santuário de Nanda Devi. É nesse ponto que fica o templo de Hanuman, onde passaríamos a noite antes da longa descida até a civilização. Conduzidos montanha acima pelo suposto guia, ficamos intrigados quando ele se mostrou por demais contemplativo. Olhava pra um lado, olhava pro outro, fixava os olhos no horizonte, e nada de templo. A noite caiu e nem sinal do nosso refúgio. Continuamos em meio à escuridão e neblina. A trilha havia sumido. Caminhávamos às cegas, entre troncos, galhos e pedras. Pernas e braços enroscavam em raízes impedindo o avanço. Desfiladeiros profundos surgiam na noite escura. Percebi que estávamos andando em círculos, sem rumo. A gota d’água foi a quase queda de um de nós, certamente uma ida sem volta. Decidimos parar aquela loucura e aceitar a realidade dos fatos: estávamos perdidos.

Nos acomodamos junto a um paredão que se projetava para frente, num ângulo negativo, formando uma espécie de abrigo natural. A temperatura caía e o vento castigava a encosta. Nos enfiamos nos sacos de dormir, estendidos diretamente sobre o solo úmido. Não havia sinal de nascente d’água nas redondezas e decidimos suportar a sede até o sol raiar. Mas a água veio até nós. Uma chuva torrencial que potencializou o frio. Depois da tempestade, só o silêncio, cortado, ocasionalmente, pelo canto distante de um pássaro.

A preocupação com um improvável encontro com a fauna local afastava o sono. A noite se arrastava. Quando, enfim, o dia nasceu e, com ele, a expectativa de reencontrarmos o caminho e seguirmos para o templo, a cerração baixou com força, reduzindo a visibilidade a algumas dezenas de metros. Seguimos sem rumo, por horas a fio. De repente, uma brecha nas nuvens, Himalaia à frente, quebra-cabeça montado. O “guia”, justificando o título pela primeira vez, encontrou a direção. Em poucas horas, estávamos deitados, pernas pra cima, tomando um chá quente, sobre o asfalto esfarelado de um vilarejo como tantos outros que povoam a região. Hoje, seis anos depois, posso afirmar que momentos como esse alteraram os rumos da minha vida: minha profissão, meus valores e meu dia-a-dia nunca mais foram os mesmos.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2006)