Escuridão colorida


NOVA GERAÇÃO: O instrutor de escalada Thulani Mazibuko, 25 anos, nos penhascos de Waterval Boven

Por Greg Child

Há pelo menos uma boa razão para praticar escalada na África do Sul: as rochas. As forças geológicas que transformam carvão em diamante metamorfosearam areias primordiais em paredões de sílex vermelho-vítreo que irrompem pelo país, oferecendo centenas de pontos de escalada de qualidade internacional — dos penhascos remotos de Blouberg e das rotas cercadas de pedregulhos das montanhas Cederberg, ao norte da Cidade do Cabo, até uma imensa elevação que se ergue sobre a própria cidade.

Logo ao norte do Cabo da Boa Esperança, um duro vento sudeste rasga o topo da montanha Table, jogando faixas de neblina na direção das praias lotadas da Cidade do Cabo, 915 metros abaixo. Estou no meio do caminho de uma rota grau 5.10 batizada de Triple Indirect, numa beirada no lado protegido do vento, enquanto meu amigo Ed February guia a última enfiada de corda. Ed é um nativo local e, como um dos escaladores mais famosos do país, é um freqüentador assíduo deste penhasco. Aos 48 anos de idade, seu físico lembra o de um boxeador peso-pena. Quando ele grita que não está mais na corda, agarro com meus dedos as beiradas de pedra branca tão resistente como porcelana endurecida no fogo. O espaço sob meus pés é de dar vertigens. Consigo enxergar a baía Table, onde navios holandeses ancoraram em 1652 para fundar a Cidade do Cabo. Dez quilômetros mar adentro, fica a ilha Robben, o complexo carcerário onde Nelson Mandela ficou preso por 27 anos. Subúrbios brancos cobrem a costa, enquanto os guetos negros de Guguletu e Khayelitsha formam uma linha de fumaça sobre as planícies

Termino a via e encontro Ed próximo à estação de teleférico no topo. Embora já tenha escalado esse penhasco — uma parede de 120 metros de altura — umas vinte vezes, ele está radiante de alegria. A montanha Table é onde a escalada sul-africana começou. Ed aponta ao longo da cadeia de montanhas semelhantes a fortalezas na direção de um paredão distante. "Escalado pela primeira vez em 1895", diz. Tento imaginar os vitorianos que escalaram aquele monolito com cordas de cânhamo, na época em que o lema era "O líder nunca cai". E então tento imaginar o que Ed poderia ter a ver com esses sujeitos.

Há apenas uma década, Ed não tinha permissão para freqüentar muitas rotas em seu próprio país. No apartheid — o sistema de separação racial criado pela minoria branca em 1948 —, até mesmo os espaços abertos eram segregados. E Edmund C. February, doutor em botânica, palestrante universitário e possuidor de um Gold Badge (a mais alta honra dada pelo clube da elite da escalada sul-africana, o Mountain Club of South África ou MCSA), é negro.

ATÉ 1994, QUANDO O APARTHEID foi desmantelado, o procedimento politicamente correto ao se receber um convite para escalar na África do Sul era recusar educadamente. Ao longo dos anos de luta — do primeiro estado de emergência, em 1960, até a libertação de Mandela, em 1990, e sua eleição como presidente, em 1994 — a África do Sul estava se desfazendo. O mundo todo acompanhava o processo nos jornais: uma repetição de imagens de guetos negros em chamas, policiais com armaduras disparando gás lacrimejante e balas, manifestantes negros respondendo ao fogo atirando pedras, e uma AK-47 aqui e ali.

Paradoxalmente, a violência escondeu um período de muitas descobertas no interior do país. Como não conseguiam autorização para escalar em lugares como Nepal, Paquistão e Índia, por causa das políticas racistas de seu governo, os sul-africanos aficionados pelo montanhismo exploraram seu próprio quintal, subindo pela primeira vez seus penhascos inexplorados, enchendo os livros e guias com novas rotas e criando uma fraternidade tão adepta de uma boa cerveja e uma boa piada como qualquer outro bando de ratos de penhasco – com a diferença que encaravam vias até 5.13. A maioria deles era branca: tinha o Dave Cheesemond e o Greg Lacey, pioneiros da Cidade do Cabo que morreram em acidentes de escaladas nos anos oitenta; Martin "Tinie" Versfeld, agora com 45 anos, filho do famoso filósofo e poeta africânder (como são chamados os sul-africanos brancos que descendem de holandeses) Martinus Versfeld; e, finalmente, Andy de Klerk, 37, por duas décadas o melhor alpinista do país, graças às difíceis ascensões de vias 5.13 em casa e escaladas solo na face norte dos Alpes. Em 2000, após ter ouvido falar desses caras por anos, decidi ver por mim mesmo o que eu estava perdendo.

Eis o que descobri na minha primeira viagem ao país: o Yosemite pode ser o melhor lugar para grandes paredões, o Paquistão para faces verticais e a Tailândia para penhascos à beira da praia, mas a escalada na África do Sul é única. Há alguma coisa nas rochas cor de tangerina, nos pores-do-sol no vasto céu, na maneira como as rochas estão posicionadas, dando uma impressão de paisagem do princípio dos tempos. Quando chegou o fim da minha estadia, eu tinha experimentado as melhores escaladas do mundo, em um de seus ambientes mais perturbadores. Meus anfitriões viviam em complexos cercados por muros e arames farpados. Roubos de carro e estupros atingiam níveis anárquicos nas cidades e no interior os ataques a fazendeiros africânderes eram cada vez mais freqüentes. Aparentemente, ainda havia duas Áfricas do Sul, e eu queria entender essa divisão. Então, quando voltei em novembro de 2004 com uma corda, uma cadeirinha e um carro alugado, meu primeiro telefonema foi para Ed.


SONHO COR DE LARANJA: Gustav escala na Waterval Boven

VI ED FEBRUARY PELA PRIMEIRA VEZ EM 1991. Ele estava pendurado numa saliência do Pico Muizenberg, na Cidade do Cabo, na capa da revista inglesa de montanhismo Mountain. Na época já o melhor escalador negro do mundo, ele era famoso por suas ousadas vias em penhascos próximos à Cidade do Cabo e um assombroso número de primeiras ascensões com seu protegido, Andy de Klerk. Ostentava um belo cabelo afro, como uma versão musculosa de Jimi Hendrix. Quando finalmente o conheci pessoalmente, seus cabelos e barba estavam salpicados de branco, o que cai muito bem em um professor universitário. Ed é volúvel, coração-mole, irascível, leal aos amigos e adora beber um bom uísque. Ele também é o sul-africano mais otimista que já vi, sem paciência com quem perdeu as esperanças com os problemas do país, preferindo lembrar as vilas rurais que estão tendo acesso à eletricidade e água encanada pela primeira vez, cortesia do governo do presidente negro Thabo Mbeki e do Congresso Nacional Africano.

Para entender como pensa Ed February é preciso saber que, na maior parte de sua vida, a escalada trouxe para ele uma série de humilhações. Tome por exemplo a vez nas montanhas Cederberg, em 1978, quando negaram a Ed e Dave Cheesemond a permissão para fazer trekking. O patrulheiro lhes disse que não podiam fazer a caminhada separados — era preciso que houvesse ao menos duas pessoas em cada grupo — nem juntos, pois trekking em grupos inter-raciais não era permitido. Ou, novamente nas Cederbergs, em 1983, quando Tinie Versfeld caiu e quase rachou o crânio. Parado na frente da entrada exclusiva para brancos do hospital, tentando ajudar seu amigo africânder a ficar de pé, mandaram que Ed levasse Tinie para a entrada dos negros. Lá, outra enfermeira branca não deixou que entrassem. Os dois ficaram indo de um lado para o outro por quarenta dolorosos minutos até que Ed implorou, dizendo que ele só precisava de alguns pontos.

Sob o regime do apartheid, que quer dizer "separação" em africânder, quase toda interação entre as raças era proibida. As leis classificavam as pessoas como "brancas", "negras" ou "pardas" — para os muitos sul-africanos descendentes de malaios, indianos e outros imigrantes e escravos asiáticos. Os "não-brancos", termo ainda hoje usado para identificar qualquer pessoa que não seja caucasiana, eram transferidos à força, sua casas às vezes demolidas para evitar que voltassem. Negros não podiam votar e o Ato da Imoralidade baniu os casamentos inter-raciais.

Ed nasceu após a repressão, num subúrbio ao norte da Cidade do Cabo chamado Wynberg, em 1955, e se descreve como "negro", embora o governo do apartheid o tenha classificado como "pardo". Ele sabe pouco sobre a história de sua família, a não ser que sua avó era javanesa e que February (fevereiro) é um nome de escravo, o mês da emancipação de algum ancestral. De qualquer modo, a cor de sua pele foi garantia de maus bocados. Oitenta por cento do país era área proibida para ele, incluindo parques nacionais e reservas de caça. Mas todo verão o pai de Ed, Ronald February, professor, e sua mãe, Helen, que trabalhava na Biblioteca da Cidade do Cabo, davam um jeito de driblar a proibição, colocando Ed e seus dois irmãos em seu carro e atravessando a fronteira para acampar em Lesoto, Suazilândia e Moçambique.

Os tambores da luta marcaram o ritmo da juventude de Ed: o Massacre de Sharpeville em 1960, no qual a polícia branca matou 69 manifestantes negros; a prisão de Mandela em 1962; as sangrentas revoltas estudantis de Soweto em 1976. Na faculdade, Ed descarregava sua raiva em protestos de ocupação que freqüentemente acabavam com a polícia usando seus açoites. "Nos primeiros protestos, fomos pegos e espancados. Então aprendemos a sair correndo", diz ele. "Aquele era o sistema. Nós não pensávamos, só lidávamos com ele. Era uma sociedade bem doentia", conclui. "Escalar era normal".

TENDO CRESCIDO À SOMBRA da montanha Table, Ed começou a escalar bem cedo. Aos 14, ele pedalava sua bicicleta até os picos Elsies e Muizenberg, que ficavam próximos, na Península do Cabo. Havia alguns escaladores negros na época, homens que cresceram antes do apartheid, incluindo Charlie Hankey, um tio distante de Ed, e George Ganget. Aos 16, Ed juntou-se ao Cape Province Mountain Club, um clube de montanhismo que surgiu nos anos trinta.

Na Table, Ed cruzava com os principais escaladores do MCSA, exclusivo para brancos, e até jogava conversa fora, mas ninguém estava disposto a escalar com ele. Lentamente, contudo, ele e dois outros jovens escaladores negros, Ed January e Maurice Wyngard, encontraram parceiros brancos que não ligavam para sua cor. Dave Cheesemond quebrou o gelo, em 1974. Depois vieram Greg Lacey, Tinie Versfeld e um moleque do colegial chamado Andy de Klerk. Quando Ed e Andy se conheceram, em 1981, eram uma dupla bastante improvável: Ed tinha 26 anos e Andy, 14. Andy já estava causando um certo agito como um garoto com potencial, então Greg e Ed o convidaram para escalar a Table. "Andy estava escalando muito à frente de sua época", diz Ed. "Ed me acolheu. Nunca houve competição entre nós", diz Andy, que hoje parece mais um surfista do que um escalador, com cabelos loiros revoltos e um onipresente cigarrinho.

Mesmo hoje em dia, repetir uma escalada de Andy não é brincadeira. Num dia abafado, logo no começo da minha viagem, Ed, Andy e Tinie me levam para uma subida de 40 metros chamada Technicolor Darkness (a Escuridão Tecnicolor), 160 quilômetros a leste da Cidade do Cabo, próxima à cidade de Montagu, com uma classificação de 5.12b. Quando me passam a cadeirinha para que eu guie a escalada, fica claro pra mim que não vai ser moleza. A rocha é lisa como vidro e dividida por uma única fratura, fina como um fio de cabelo. Consigo chegar na metade da subida antes dos meus braços fraquejarem e eu cair sete metros. É a primeira de muitas quedas. Quando termino a via, estou acabado, mas satisfeito com minha escalada desajeitada.

"Esse maluco fez essa escalada em solo quando ainda estava na escola", conta Ed, apontando para Andy. Ed tinha dormido além da hora, mas o jovem Andy, 17 anos, acordou cedo e escalou a face sem cordas. "Escalada solo é o que há em controle mental", explicou Andy quando Ed lhe deu uma bronca. Os dois continuaram rompendo barreiras e estabelecendo novos limites ao longo dos anos de Andy na Universidade da Cidade do Cabo, e só pararam de contar as vias abertas lá pelo número 500. Mas em 1989, quando estava a ponto de ser convocado para a Guerra de fronteira contra Angola, Andy partiu para a Europa e depois para os Estados Unidos. Ele casou com uma escaladora norte-americana e não voltou até 1998, após ter se divorciado. "Evitar uma guerra injustificável foi parte da razão de eu ter ido embora", Andy me conta. "Mas eu também não queria perder dois anos de escalada".


DIVERSÃO: Andy de Klerk no Lost World Canyon

EM 1981, ED CONHECEU NICKY ALLSOPP, uma universitária que cursava botânica e agora trabalha para o Conselho de Pesquisa Agricultural. Como Nicky é branca, "era contra lei sairmos juntos”, lembra Ed. "Não podíamos ir ao cinema, a restaurantes, a bares ou à praia juntos, mas podíamos fazer trekking". Em 1984, eles se mudaram para o bairro muçulmano de Bokaap, onde vivem até hoje. Em Bokaap as pessoas não se incomodavam com um casal inter-racial e, em 1996, os dois se casaram.

Ed se jogou de cabeça na vida acadêmica, terminando seu doutorado em botânica no mesmo ano. Como escalador, ele sentia que tinha sido deixado para trás. Por anos ele viu os amigos brancos partirem em expedições financiadas por clubes para qualquer lugar onde seus passaportes fossem aceitos — principalmente os Andes. "Ouço esses caras falarem das expedições incríveis das quais participaram e fico pensando, Porra, nessa época eu estava penando para descolar um parceiro de escalada. E eu estava fazendo escaladas duas vezes mais difíceis que qualquer um deles".

Em 1996, Andre Schoon, então presidente da MCSA e ainda membro ativo ao 65 anos, bateu à porta de February. Ed tinha 42 anos quando isso aconteceu, e Schoon queria que ele entrasse para o clube. Ed ficou na dúvida — ele havia criticado o clube na imprensa como uma instituição elitista branca. Mas agora Mandela estava pedindo unidade racial mesmo depois de ter passado metade da vida na prisão. "Eu entrei pro clube", explica Ed, "porque concordo com Mandela. Todos temos que ajudar a formar uma África do Sul unida". Ed era um dos poucos não-brancos na filial da Cidade do Cabo, que contava com 1.800 associados, a maior das 13 filiais do clube de 4.500 membros. Em 2002, o clube deu a Ed o Gold Badge, a primeira vez que um não-branco recebeu o prêmio. Apesar de ter ficado feliz, Ed ainda achava que o MCSA devia a toda comunidade não-branca um pedido de desculpas formal. "Se as pessoas no comando deste país se desculparam, qual é o problema do clube de montanhismo fazer o mesmo?".

A PÉROLA DO MONTANHISMO SUL-AFRICANO é o Anfiteatro Milner, a leste da Cidade do Cabo, nas montanhas Hex River. Um penhasco do tamanho do El Capitain, a face ostenta uma série de escaladas 5.11 e 5.12 que sobem paralelas a uma cachoeira de 610 metros de altura sobre duras pedras de sílex cor de laranja. Estou com Tinie, Andy e Tony Dick, um morador da Cidade do Cabo com cinqüenta e poucos anos que ainda escala vias 5.11. Para horror dos outros dois, Andy trouxe seu pára-quedas e uma roupa alada tipo Homem-pássaro. Seus amigos sempre se preocupam quando ele leva seu equipamento de BASE-jumping, principalmente para o Milner e seus 880 metros de altura. Após um longo dia na rocha, Andy sobe até o ponto mais alto do Milner, puxa um cigarro e liga para sua mãe do celular para lhe desejar um feliz 68º aniversário. Ele desliga, pula do precipício, voa por 25 segundos e abre seu pára-quedas. Tinie e Tony respiram aliviados.

Numa outra tarde, fui à oficina de carpintaria de Andy, uma viagem de meia hora saindo da cidade. Eu tinha acabado de ler uma notícia sobre uma pesquisa feita pela polícia nacional dizendo que a África do Sul é uma das sociedades mais homicidas da Terra: 21.738 assassinatos em 2002, em comparação com 16.204 nos Estados Unidos, um país com uma população seis vezes maior. Quando cheguei na oficina, Andy estava atrás de uma porta de aço fechada a cadeado. Uma cerca eletrificada e placas alertando sobre o sistema de alarmes cercavam o prédio. "Parece que você está na prisão", comentei. Andy aceita, relutantemente, o crime como conseqüência natural da pobreza do gueto. "Meu vizinho foi roubado", ele conta. "Sabe o que levaram? Comida e roupas de frio. Deixaram a TV". Ele dá uma longa tragada em seu cigarro e em seguida diz, "Você devia visitar um gueto".

TEM ALGUMA COISA ARREPIANTE em ficar olhando a pobreza de dentro de um ônibus com ar-condicionado. Por isso me inscrevi na Adventure Without Limits, uma empresa de excursões para os guetos que deixa você olhar de cima de uma bicicleta. Por US$46, consegui transporte até o gueto de Masiphumelele, na Península do Cabo, uma bicicleta velha e uma guia de 23 anos chamada Noluthandu, da tribo xhosa.

Pedalamos por estradas esburacas ao longo de barracões que não passam de colagens de latão, tijolos, madeira, plástico e caixas de papelão. As famílias partilhavam de bicas e banheiros comuns. Os moradores faziam "gatos" para pegar eletricidade dos postes. Noluthandu me mostra uma lojinha onde se pode comprar um único cigarro ou uma única fatia de pão-de-forma.

Masiphumelele surgiu do nada no início dos anos oitenta como um acampamento clandestino para africanos desempregados ou que trabalhavam para os brancos na Cidade do Cabo. Preocupados com as condições de favela e com as crescentes taxas criminais, os brancos fizeram uma petição para a transferência dos invasores. A polícia os expulsou mas, após a abolição das leis que impediam o livre trânsito dos negros, em 1986 as pessoas voltaram aos poucos e construíram um assentamento informal com 26.000 habitantes. Empurramos nossas bicicletas até uma pequena cabana. Lá dentro estavam três sangomas ou curandeiras, todas mulheres. Uma batida de tambor se inicia e a matriarca de ancas largas lidera o trio em uma dança de bate-pés. No final, elas ficam diante de nós, ofegantes.

"Faça perguntas. Elas são videntes", diz minha guia. Pergunto o que vêem no futuro de Masiphumelele. "Não temos nada. Os homens não têm trabalho. Não há remédios. A AIDS irá destruir o povo. Este gueto está condenado". Eu vou embora me perguntando como digerir uma excursão na qual a desgraça é a maior atração. No caminho de volta, um menino de 8 anos sobe na garupa da minha bicicleta e pega uma carona. Quando chega a hora de saltar, ele me cumprimenta e sorri. Como qualquer criança em qualquer lugar.


PAÍS DE PEDRA: Greg Child, em primeiro plano, e Ed February unidos pela corda nas montanhas table, na Cidade do Cabo

EM UM PAÍS TÃO ABENÇOADO em matéria de rochas, me pareceu estranho que tão poucas crianças negras pratiquem escalada. Ed culpa o apartheid por ter assassinado o amor por amplos espaços abertos na cultura negra — isso e o fato de um par de sapatilhas para escalada custar mais do que a maioria ganha em um mês.

A leste de Johannesburg fica Waterval Boven, a principal região de escalada esportiva da África do Sul, onde os penhascos vermelho-ferrugem atraem uma galera internacional. Com 13 igrejas, três bares e 12.000 pessoas, Boven é na verdade duas cidades, uma branca e outra negra. Não há nenhuma barreira dividindo as duas, mas a transição entre as avenidas arborizadas e o gueto desorganizado é brutal. Aluguei um quarto no albergue Roc ‘n Rope, que o dono, um africânder de 20 anos chamado Gustav van Rensburg e sua esposa francesa gerenciam como se fosse uma escola de escalada. Quando íamos para a enorme cachoeira de Boven, Gustav aparece com um policial. Ele estava preocupado com as câmeras do nosso fotógrafo. Recentemente, um brutamontes ameaçou cortar a corda de rapel de um escalador se ele não lhe desse dinheiro. O escalador continuou descendo e o aspirante a ladrão fugiu.

DE BOVEN, DIRIJO na direção leste para o Parque Nacional Kruger, daí para o sul ao longo das exuberantes montanhas Drakensberg e de volta para a Cidade do Cabo. Chego a tempo de assistir uma exibição de slides no encontro social das noites de terça no MCSA. Um murmurinho amigável enche o lugar. Ed distribui abraços e grita saudações.

Quando todos são convocados a sentar, Tinie caminha para a frente, com uma folha de papel nas mãos. "Sinto que precisamos corrigir erros do passado", começa. O silêncio toma conta do recinto. Referindo-se à história do clube como "uma degraça", Tinie o condena por ter endossado a política do apartheid. "Precisamos nos desculpar com todos que foram prejudicados”, conclui.

Do lado de fora, na rua, a discussão corre solta. "Muito bem, cara", Andy diz a Tinie. Mas outros discordam. "Por que eu deveria me desculpar? Eu era criança durante o apartheid", questiona um membro branco nos seus vinte e tantos anos. Ed é o único escalador não-branco presente, mas pouca gente fala com ele a respeito da questão. Após a multidão ir embora, Ed e eu voltamos para sua casa com um escalador branco de 27 anos chamado Tristan Furman. Tristan simpatiza com a posição de Ed, mas, como outros escaladores mais jovens, acredita que a necessidade de um pedido de desculpas ficou no passado. Após alguns drinques, o debate esquenta. "Ed, quantos não-brancos você introduziu à escalada?", pergunta Tristan. "Isso não é minha responsabilidade", responde Ed, irritado, acrescentando que ele fez o bastante sendo o mais proeminente escalador não-branco do país. Tristan então descreve como a comunidade agrária de sua família foi atacada por bandoleiros negros, o que resultou em mortes. "Ninguém se desculpou por isso", diz.

Momentos depois, a tensão se dissipa. "Bem, todos sofremos", diz Ed, calmamente. "Todos nós devemos desculpas". Esse parece ser o cerne da discussão. Quem somos "nós" na África do Sul? Com tantas culturas — mais de uma dúzia de etnias negras, africânderes, brancos de ascendência britânica, indianos, asiáticos, e gente que é um pouco de cada — talvez haja Áfricas do Sul demais, cada uma delas como uma ilha isolada, esperando para receber uma ponte que as interligue.

Ed e Tristan despedem-se como amigos mas, meses depois, em casa, recebo um e-mail de Ed. É uma carta aberta para Greg Moseley, presidente do MCSA da Cidade do Cabo, enviada para escaladores de toda África do Sul. A carta é longa e, em certos trechos, transborda de raiva. Ed enumera uma série de descontentamentos antes de concluir, "Como um sul-africano não-branco, não posso mais comprometer minha integridade sendo membro desta organização".

A maioria das pessoas próximas a Ed o apóiam. "Os brancos acham que já deixaram o apartheid para trás, mas os negros ainda sentem raiva", diz sua esposa, Nicky. Andy prevê: "Não se surpreenda se Ed tornar-se presidente do clube. Veja o que aconteceu com Mandela: saiu da prisão para a presidência".

COMO SÃO ESTRANHAS as imagens mentais que a África do Sul deixa em você. Uma carroça puxada a burro ultrapassada por um BMW. Um fazendeiro expelindo perdigotos e cerveja num bar em Karoo, gritando: "Vivíamos como reis! Agora vivemos como príncipes!" As montanhas cobertas de nuvens assomando sobre os telhados de latão de um gueto. E, no meio disso tudo, Ed February, um homem no centro da nova África do Sul, equilibrando-se entre dois mundos. Só o tempo dirá se Ed vai voltar para o MCSA. Nesse meio-tempo, a rocha continua sendo a mesma que sempre foi.

Minha última escalada é com um dos mais antigos amigos de Ed, um cirurgião ortopédico chamado Charles Edelstein — ou Snort, como seus amigos o chamam, por causa de sua sinusite. Snort conhece Ed desde 1978, quando ele era um estudante de medicina que alugava um apê em Johannesburgo. Ele acolheu Ed, o que não parece grande coisa, exceto que Snort é branco, e isso era ilegal. Vamos de carro até Blouberg Massif, uma plataforma de sílex de 370 metros de altura próxima à fronteira com Botsuana e Zimbábue.

Numa cidadezinha de Blouberg, um garoto nos leva até uma vaga que parece reservada para o carro. Uma mulher reclina-se na porta de uma cabana feita de lama, com um incongruente celular pendurado na cintura. Snort escala aqui há 25 anos. Ele paga a ela para que cuide do carro e, em seguida, com o sol descendo no horizonte, colocamos nossas mochilas e seguimos morro acima, caminhando no ar fresco da tarde até que, por volta da meia-noite, armamos acampamento em uma caverna. Ao amanhecer, a rocha já está quente. Escalamos o dia todo, com o ar quente tomado de silêncio, a não ser pelo tinir dos sinos das vacas. O sol está se pondo quando Snort finalmente chega ao topo. Ouço-o gritar e olho para cima. Ele está de pé na beira do penhasco, com os braços estendidos e os punhos fechados: "Isto é a África!"

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2005)