Por Juliana Morais
Fotos por Brett Butterstein
EU ESTAVA ENTRE OS PRIMEIROS COLOCADOS DA PROVA, fazendo um esforço extremo para manter o ritmo e a postura. Meu coração disparado a 190 batidas por minuto e meu diafragma se acabando para buscar mais ar para o meu pulmão. Uma sensação desesperadora. E a parte crítica estava ali, logo à frente: a neve. No início eram apenas pequenos blocos de gelo, mas, em seguida, uma neve fofa e pesada, que logo transformaria minha vida num pesadelo, tomou conta do chão. Foi quando começou um pequeno deslizamento de neve bem onde eu me encontrava, me arrastando descontroladamente para baixo. Na hora só conseguia pensar em manter meu corpo quente, então ergui minhas mãos para não congelá-las e acabei enterrando minha cara na neve fofa e molhada, o que me deixou numa situação ainda pior. Com a cara queimando por causa do gelo, os óculos embaçados e os olhos ardendo, praticamente me arrastei até chegar ao topo de uma das montanhas mais espetaculares da corrida. Chegar vivo a uma altitude de 4.267 metros, poder apreciar uma paisagem estonteante por alguns minutos e respirar profundamente o ar puro e gelado da montanha é o motivo para eu e outros 124 fanáticos nos “alistarmos” na Hardrock Endurance Run 100 milhas (160,9 quilômetros), conhecida como a prova mais difícil do mundo.
Nos próximos 305 metros de descida, pude respirar e repensar a possibilidade de ser um dos primeiros colocados daquela corrida. Desde a minha infância gostei de desafios. Cresci correndo e escalando, mas foi na fase adulta que descobri o gosto pelas corridas de longa distância, principalmente aquelas por trilhas desconhecidas. Com a medicina, aprendi a ser persistente e manter o foco em tudo o que faço. Então, depois de passar nove anos da minha vida correndo ultramaratonas, comecei a me dedicar aos eventos de 100 milhas de distância e a duas provas em particular: a The Western State (percurso em uma trilha histórica, no meio de uma estação de esqui chamada Squaw Valley, perto de Lake Tahoe, na Califórnia) e a Wasatch (outra prova excitante e dura em função do calor intenso, da altitude e das trilhas desconhecidas, em Utah, perto de Salt Lake City). Durante os últimos sete anos, acabei a The Western State entre os quinze primeiros colocados e neste ano consegui bater meu recorde na corrida de Wasatch, cruzando a linha de chegada em 8º lugar, 13 dias antes da largada da Hardrock.
Um pouco cansado de correr as mesmas provas, decidi partir para um desafio diferente. Precisava de novas sensações. Queria ir ao limite das minhas condições físicas e psicológicas e, para isso, somente encarando o que diziam ser uma das provas mais selvagens e difíceis do mundo. Sempre fui extremamente competitivo e seguro do meu potencial e achei que tudo o que falavam da Hardrock não passava de mito e falta de treinamento dos corredores. Então, acabei me inscrevendo com a confiança de que acabaria a prova num tempo razoável e numa boa colocação. No dia da largada, estava um pouco nervoso, pois meu corpo ainda não havia descansado o suficiente desde a The Western State. A inclinação das montanhas e a altitude também me preocupavam e não me atraíam nessa prova, mas nada que me fizesse desistir do desafio. Já a regra de ter que beijar a tal da pedra gigante no final da corrida não me agradava nadinha… Hardrock é uma pedra imensa que dá nome à prova e marca o ponto de chegada do percurso. É algo imensurável, somente estando lá para entender do que estou falando.
NA PRIMEIRA GRANDE SUBIDA DA PROVA, logo após ter deixado a cidade de Silverton, começo e fim da competição, ainda conseguia ver os líderes beirando o pico da primeira grande montanha. Pouco depois, meus olhos só conseguiam ver a silhueta dos mesmos, cruzando o sol que já despontava no céu azul. Entre o topo dessa montanha e os próximos 1.219 metros de descida, decidi que iria começar a competir de verdade. Correndo, comecei a me adaptar ao meu ritmo, com a altitude e com as alterações climáticas do lugar. Depois de algumas horas, eu encontraria meu amigo Paul Sweeney, vencedor da Hardrock de 2004. Corremos juntos por algumas milhas a uma velocidade absurda e desnecessária, até o momento em que torceria meu tornozelo entre uma pedra e outra, abrindo margem para a dor e o desconforto, a maior frustração para um corredor! Nesse momento, eu já havia percorrido 48 quilômetros entre montanhas, rios e trilhas desconhecidas, ou seja, eu ainda tinha 112 quilômetros de chão pela frente. Até chegar ao próximo Posto de Controle (PC), andei mais alguns quilômetros, desgastado e com muita dor. Ao chegar percebi que minha dieta “passarinho” a base de gel e eletrólitos nunca me levaria à linha de chegada (para uma corrida dessas é preciso comer carne, carboidratos e comida de verdade que sustente o seu físico por muitas horas).
Depois de passar uma pomada analgésica para a dor, segui para Handie’s Peak, a inclinação mais intensa e o pico mais crítico do percurso, a 4.267 metros de altitude. No início da subida, para piorar a situação, fui surpreendido por um entusiasta que ao derrapar diversas vezes sua caminhonete na estrada, acabou levantando muita poeira de terra na frente dos competidores. O oxigênio, que já estava escasso para mim, se misturou com a poeira, dificultando minha respiração e baixando minha resistência drasticamente. Eu ainda conseguia me mover, mas o que realmente me inspirava a continuar era a visão do pico da montanha, uma beleza fortificante – pelo menos até dar de cara com a neve. O pé machucado passou a ser um desafio para mim, até porque eu pensava já ter atravessado uma das piores partes da corrida. Mas estava errado, novamente. Aquela montanha era só para mostrar o que vinha pela frente. Já começava a escurecer e os próximos quilômetros cruzariam a cidade de Ouray, com inúmeras elevações e descidas que nos levariam a uma trilha praticamente virgem na beira de um precipício gigante. Com o cair da noite essa trilha se transformaria num dos momentos de maior tensão para mim. Sem enxergar o que estava ao meu redor, somente aquilo que a minha pequena lanterna de cabeça iluminava, ficava me imaginando despencando como um boneco de pano de cima daquele penhasco. A cada passo que dava meu estômago embrulhava. Não sei se era cansaço, fraqueza ou medo.
Sem muitas sinalizações nessa trilha, acabei me perdendo no meio do nada. Estava exausto e com muito frio, minha roupa estava molhada e pesada por causa da neve, e meu instinto era a única coisa que me guiava naquele momento. Depois de uma hora perdido, consigo chegar numa cidade no meio da noite, onde ainda tive de escutar de um cara na rua: “Hey asshole! What’s your hurry?” (Ô, imbecil! Pra que tanta pressa?). Quando finalmente consegui chegar à tenda onde ficava o PC, estava tão tonto e com a visão tão embaçada que acabei entrando pelos fundos e praticamente desmaiando em cima do meu saco de dormir. E o pior é que em nenhum momento consegui dormir, tamanho meu cansaço, dor e mal estar. Meus pés, destruídos e completamente sem pele na área dos calcanhares, sangravam e ardiam muito, algo desesperador. Decidi continuar. Minha namorada – é essencial ter uma pessoa ou uma equipe de apoio numa corrida dessas – tinha me esperado um tempão na entrada desse PC e, não tendo me visto chegar, começou a ficar preocupada. Achou que eu tivesse caído no precipício, já que alguém falou para ela que tinha me visto naquele trecho pela última vez. Desesperada, ela dirigiu até Telluride, cidade próxima, na esperança de me encontrar. Chegando lá, descobriu que eu já havia deixado o último PC e estava a caminho dali.
O PRÓXIMO PERCURSO ERA EM ESTRADA DE CHÃO. Comecei a me sentir mal e tive que me apoiar em meus joelhos para vomitar diversas vezes. A sopa de vegetais e o macarrão que havia comido há pouco não tinham sido totalmente absorvidos e eu não parava de pensar naquela cenoura voltando pelo meu nariz. Entre os PCs eu me alimentava a base de gel – como sempre faço em todas as maratonas –, no entanto, quando chegava a eles, acabava comendo o que visse pela frente (biscoitos, carboidratos e muita Coca-Cola), tamanha fome e fraqueza. Um dos momentos mais desconfortáveis aconteceu nessa estrada, onde eu mal conseguia respirar por causa do enjôo, da poeira e do resquício do resfriado que eu havia curado (mal) uma semana antes. Nesse momento eu não podia entrar em pânico ou desmaiaria ali mesmo, no escuro e no frio. Então, passei a inspirar lenta e profundamente, tragando todo o ar que podia e expirando lentamente entre meus lábios. Mesmo passando mal, em nenhum momento perdi minha consciência. Eu sabia que se isso acontecesse estaria tudo acabado.
Após atravessar o trecho crítico chamado Virgina Pass, fui surpreendido por outra parede de neve no meio da noite. Dessa vez a neve estava praticamente em estado de gelo, o que dificultou a subida. Qualquer escorregão me carregaria para baixo diretamente para as pedras na base da montanha gelada. Era preciso escalar usando as cordas e pinos presos ao paredão até chegar ao próximo PC. Chegando lá, mais um daqueles momentos que justificam estar ali. A 3.962 metros de altitude, me deparo com dois mexicanos sentados embaixo de sombreros, enrolados em ponchos, iluminados por lampiões e acompanhados de uma boa tequila mexicana. É claro que considerei tomar um shot da tequila para me esquentar, mas estava tão esfomeado que a única coisa que queria naquele momento era devorar um suculento peito de peru acompanhado de um delicioso e energético copo de café – e foi o que fiz. Segui caminho e cheguei a Telluride, praticamente sem ar, onde encontrei minha namorada, Kelly. A altitude acabou com minha resistência e parecia que algo bloqueava minha respiração. Nunca havia me sentido daquela maneira e nada me fazia melhorar daquele mal-estar. Meio tonto, ainda lembro de ouvi-la falar: “Vejo você em Silverton”. Não respondi. Calado, admiti para mim mesmo: isso não é um esporte, é um teste de sobrevivência.
Nesse ponto já haviam se passado 24 horas. Ainda estava escuro e eu esperava finalizar a prova até o final daquele segundo dia de corrida. Aquela estava sendo a competição mais longa e cansativa que eu já havia feito e nada me faria desistir. Comecei a encarar a corrida como um teste de resistência física e mental. Amanhecia e novamente eu andava em espessos blocos de neve. O sol esquentava minha pele e a neve amortecia a dor no meu pé. O resto do meu corpo, no entanto, não gostava muito daquele contraste de temperatura. O tempo foi passando e iluminado agora pela forte luz e o calor do sol, me senti um pouco mais confortável. Ao me aproximar da última grande montanha, cercada por lagos e paisagens impressionantes, agradeci a Deus por estar ali. Logo avistei dois corredores com grande vantagem em relação a mim. Mas como em qualquer maratona, concorrentes são o que a gente precisa para alimentar nosso espírito competitivo numa hora dessas.
PARECIA QUE ESTAVA ESCALANDO A LUA, subindo uma trilha instável de pedras desniveladas, misturadas com neve e terra. Chegando perto do topo, o vento entrou, baixando drasticamente a temperatura em mais de 10 ºC. Ainda bem que tinha levado um agasalho extra, que me protegeu do vento e do frio absurdo. Nesse momento voltei a pensar que aquela corrida estava sendo algo fora do normal, um desafio quase desumano. E enquanto eu pensava, o sol caía, o frio aumentava e a frustração tomava conta de mim. Sabia que a partir dali eu teria somente descida pela frente, mas estava com receio de me perder novamente no meio da noite – a má sinalização dessa prova é um outro desafio para os corredores.
A três quilômetros da linha de chegada me deparei com um rio muito gelado que eu deveria atravessar tateando pedras e segurando numa corda elástica que servia para nos guiar. Nesse momento, desnorteado pelo cansaço, eu já não enxergava um palmo a minha frente, mas conseguia ouvir Kelly gritando que todos haviam atravessado o mesmo rio e que eu não tinha outra alternativa. A água, resultado do descongelamento da neve nos picos, chegava perto do meu peito. Me desesperei e comecei a ter palpitações, seguida de falta de ar. Naquele momento, a poucos metros do final, só conseguia me imaginar caindo naquele rio congelante e morrendo instantaneamente de hipotermia. Ao chegar do outro lado, tremendo mais que avião em turbulência, me coloquei na posição fetal, quase pedindo por minha mãe. Não conseguia me levantar, muito menos andar, e recebi ajuda para cruzar a linha de chegada. Assim que concluí a prova, me colocaram numa banheira de água morna onde praticamente desmaiei.
Meu tempo? 41 horas e 59 minutos. A prova mais longa da minha vida e também a mais emocionante. Depois de tantos anos de experiência em corridas, posso dizer sem vergonha alguma que a Hardrock 100 foi a única prova em que achei que pudesse morrer. Despencar de um precipício, escorregar de uma montanha de neve no meio da noite, morrer de hipotermia por causa do frio – qualquer vacilo poderia ser fatal. Mas fui mais forte do que qualquer pensamento negativo e a única coisa que me levou até a linha de chegada foi a beleza e a força (sobre)natural do lugar. Talvez mais do que isso. Acho que foi o foco no desafio pessoal de tentar ser tão forte quanto aqueles elementos da natureza. Cada passo foi especial. Cada montanha, cada rio, trilha, pedaço de neve. E se o propósito era sobreviver, venci. Agora, em casa, observando os sinais da corrida no meu corpo e me sentindo bem, só sei de uma coisa: ano que vem Wasatch vai ser como roubar pirulito de criança.
A MAIS DURA DAS CORRIDAS
Imagine correr do nível do mar até o cume do Monte Everest. Nas montanhas de San Juan, no Colorado, Estados Unidos, uma mesma prova reúne todo esse desnível, fora avalanches, exposição ao sol, animais selvagens, tempestades, deslizamentos de pedras, rios congelados… É a Hardrock 100, considerada a corrida mais casca grossa do planeta
Realizada anualmente desde 1992 no sul do Estado do Colorado, a Hardrock 100 acontece no meio de uma beleza natural abundante, selvagem e privilegiada que atrai os corredores mais experientes e “experimentais” do mundo. Extremamente dura, é o tipo de prova onde a boa forma mental rege a física, e estar 100% condicionado é o mínimo que você precisa para começar essa brincadeira de gente grande. São 160,9 quilômetros enfrentando altitudes que vão de 2.133 metros a 4.267 metros (do nível do mar) entre as mais instáveis e selvagens trilhas. Em função da altitude e das diferenças climáticas, a temperatura pode mudar drasticamente. A mesma brisa que refrescava os quase 30 ºC no asfalto pode se transformar num vento gélido e intenso no topo da montanha ao cair da noite, levando a temperatura para perto da casa dos negativos.
Este ano, a prova, que aconteceu no início de julho, contou com 125 inscritos. Desses, somente 71 (57%) dos participantes conseguiram finalizar a prova. Nessa corrida, não ganha o atleta mais jovem e sim, o mais experiente, o mais preparado para ultrapassar o limite da natureza humana. A idade média dos corredores (homens e mulheres) é de 37,5 anos e o corredor mais jovem a participar tinha 27 anos de idade. Na edição de 2005, o campeão foi Karl Meltzer, 37 (vencedor pela 3a vez), com o tempo de 28h50 e na categoria feminina, a campeã foi a americana Sue Johnston (32h07), de 39 anos de idade.
Organizada pela mesma família há 10 anos, a prova se estende por duas semanas de eventos. São jantares de apresentação, familiarização com o percurso, sinalização e confraternização entre os competidores até o dia em que as montanhas se transformam em pista de corrida. Os corredores têm até 48 horas para finalizar o percurso que dá uma volta nas onze Montanhas San Juan, e inclui as cidades de Silverton (largada e chegada), Lake City, Ouray and Telluride, somando 10.058 metros de subidas e descidas no total. Este ano, a prova foi realizada no sentido anti-horário, o que dificultou a vida dos competidores. “Nesse sentido a inclinação das montanhas e das estradas é pior”, diz Sue Johnston. “Fica mais difícil correr e a maioria das subidas tem que ser feitas caminhando por causa da neve, chuva e outros fatores. Nesse sentido a prova fica muito mais pesada e demorada para todos nós”.
O grau de dificuldade é grande e progressivo – quando você pensa que acabou a pior parte, aparece uma montanha maior pela frente, e assim por diante. Segundo o organizador da prova, Dale Garlend, o ditado da Hardrock é: “Se divirta com você mesmo”. No entanto, após ler este testemunhal, você vai ter lá suas duvidas…
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2005)
ENFIM: David Terry chegou mal, mas conseguiu beijar a pedra
DESESPERO: David Terry passa com dificuldade pela neve
CONGELANTE: Competidores atravessam o último rio antes da chegada