Eles são cínicos, sujos e breacos. Exercitam não só o corpo, mas principalmente a arte de tomar cerveja e rir uns dos outros. Conheça os Hash House Harriers, o grupo de corrida menos politicamente correto do planeta Em um domingo de outono em São Paulo, um pequeno grupo começa a se formar na avenida Paulista. Concentrados, preparam-se para uma corrida pelas calçadas do bairro do Paraíso. De longe, nenhum deles parece ter nada em comum: o menino de óculos que aparenta 20 e poucos anos, a mulher miúda e tímida perto dos 40, a moça recém-formada, a líder do grupo falando inglês. O mais velho, um japonês que logo trocou o jeans e a pochete por um shorts, é também o único que se pode chamar de “atleta”: já correu seis maratonas. Todos aguardam uma tal de Gypsy Rose Lee, alemã típica, alta e rosada, às vésperas de se despedir da temporada no Brasil. Apelidobizarro, aliás, é o que não falta por ali – Aline Crappy Strappy, Caitlin MaBouche, Thomas Fuck Edson e Toni Canzilla são alguns dos nomes de guerra nesta versão local dos Hash House Harriers (HHH), um grupo com ramificações no mundo todo que mistura corrida, gincana e muita cerveja, numa espécie de irmandade que se reúne mensalmente em cerca de 200 cidades.
Em praticamente todos os continentes, eles seguem as tradições da brincadeira inventada pelo inglês expatriado Albert Stephen Ignatius Gispert durante sua passagem por Kuala Lumpur, na Malásia, em 1938. “G”, como Albert foi apelidado, batizou a sede de seu clube de corrida sui generis de Hash House, que significa, em inglês, uma casa meio desleixada. O nome foi inspirado na “hash food” servida nos encontros, uma gororoba com carne em cubinhos muito comum nos tempos magros da Segunda Guerra. Junte britânicos entediados, picadinho requentado e um pega-pega de infância chamado hares and hounds (lebre e cachorros). Agora derrame galões de cerveja por cima dessa mistura e acrescente uma leve pitada de atividade física, e o que se tem é um clube de bebedores com uma queda pela corrida, ou “drinkers with a running problem”, como costumam se autodenominar seus membros na língua que os une globalmente – sim, todos os participantes se comunicam em inglês, até mesmo os brasucas paulistanos do Paraíso.
De Kala Lumpur, o grupo se multiplicou e ganhou o mundo. “Somos que nem a Al Qaeda: não temos um chefe, mas estamos conectados em quase todos os países”, explica a escocesa MaBouche, que adquiriu o hábito do “hashing” em Paris e procurou uma sede do HHH assim que desembarcou em São Paulo, há pouco mais de um ano. Acabou se tornando a religious advisor (líder espiritual, ironicamente falando, claro) da turma, o que significa dizer que assumiu as responsabilidades de organizar os hashings e passar adiante as tradições transmitidas há 70 anos.
As regras, manias e cerimoniais começam logo na recepção de um novo membro, como a tal moça miúda Fátima, que no seu primeiro dia é logo chamada de Just Fátima, ou “só Fátima”. Qualquer um pode aparecer, sem restrições quanto à origem social, aparência física, profissão, gênero, preferência sexual – desde que traga consigo a quantia estabelecida para pagar as cervejas e o lanche (no Brasil, R$10). Em geral, não se sabe o que o parceiro de hashing faz da vida e quase sempre o nome verdadeiro também é sumariamente esquecido assim que o apelido “pega”. “Às vezes, o cara é cônsul e não quer ser ‘descoberto’ pelas idiotices que faz nos encontros. Não importa o que cada um é fora daqui. Nos encontros, podemos ter outra personalidade”, esclarece MaBouche, defensora das piadas sujas e do mau comportamento, posturas mais que aceitas – até mesmo incentivadas – de um autêntico hasher.
Os nomes de guerra têm sempre origem em situações divertidas que acontecem no meio dos percursos.“Na maioria das vezes, os apelidos são ofensivos e fazem referência a alguma característica física ou aspecto da personalidade”, explica Aline Crappy Strappy, algo como Aline “Fitinha Tosca”, assim chamada por ter roubado certa vez um daqueles coletes de sinalização usados por corredores urbanos. A cada encontro, o trajeto é demarcado por um hasher diferente com um enorme pedaço de giz, de modo a orientar – e desorientar – o grupo. Traços contínuos e setas indicam o caminho certo. Enquanto trotam ou correm, os hashers mais adiantados gritam “on on!” quando estão na rota correta. Se de repente surge um círculo, é preciso adivinhar a melhor direção a ser tomada, correndo-se o risco de seguir alguns metros em vão até cair em uma cruz avisando que se está fora do trajeto. Riscadas no chão, as siglas HP, HV e BSsignificam, respectivamente, hash photo (pausa para foto), hash view (pausa para olhar alguma vista ou monumento) e beer stop (pausa para a cerveja). Esta última pode acontecer na frente de um carro da “organização” cheio de latinhas de breja ou em algum boteco na rua. “Correr e beber não faz o menor sentido, e a graça é essa mesmo, ser nonsense”, explica Thomas Fuck Edson (nesse caso, não perguntamos a razão do apelido). Logo no início do encontro, ele admitira que, se tivesse juízo, estaria na serra treinando para uma corrida “séria” de 24 quilômetros que aconteceria em Minas Gerais em poucos dias. “Mas eu preferi tomar cerveja num percurso de 2 quilômetros”, confessa, rindo.
O menos importante na brincadeira é quem chega primeiro. Durante o percurso, os hashers aproveitam para curtir os caminhos, provocar uns aos outros e encher a lata. Correr mais rápido ou mais devagar é a última preocupação de um legítimo hasher. Antes disso, vem o interesse em conhecer pessoas de um jeito divertido.
O empresário Gustavo Albuquerque, 33, é corredor dos bons e confessa que a parte que mais aprecia no hashing é mesmo a brincadeira ao longo do percurso. Descobriu a existência do HHH nos primeiros 30 quilômetros da ultramaratona de Bear Mountain, em Nova York, no ano passado, conversando com um norte-americano que corria ao lado dele. Fizeram a prova inteira juntos e, quando concluíram os 80 quilômetros, foram tomar uma cerveja. O americano era Marcus Schodorf, que há 10 anos é membro do HHH de Nova York, um dos maiores do mundo, com hashings semanais. Em outra ocasião em que Gustavo passou por Manhattan a trabalho, aproveitou para ver de perto o que era um típico hashing. “Fiquei impressionado com a organização e com o tempo que eles dedicam para compor os trajetos, que passam dentro do metrô, atravessam lobbies de hotéis, cruzam linhas de trem, seguem por trilhas de terra”, conta.
Uma das líderes do HHH da cidade do Cairo, no Egito, Flora Lurpak Svensson, aderiu ao hashing em 1992 e reforça o papel socializador e despretensioso dos grupos. “Eu acredito que o crescimento de adeptos pelo mundo está relacionado ao atual cansaço das pessoas em ter tantos compromissos sérios. Elas têm buscado mais oportunidades de sair um pouco do comum, de simplesmente relaxar das cobranças sociais”, avalia Flora, que organiza encontros de cerca de 200 pessoas em solo egípcio.
À semelhança de Gustavo, Gypsy Rose Lee e MaBouche, muitas gente aproveita passagens-relâmpago durante viagens de trabalho para encontrar um grupo de HHH, melhorar o inglês e conhecer as cidades pelo ponto de vista de quem é local. Com sorte, dá até para participar de algum dos grandes eventos do grupo, como a Red Dress Run, onde homens e mulheres correm vestidos de vermelho da cabeça aos pés para homenagem uma hasher desavisada que apareceu em seu primeiro HHH não com roupas surradas de corredor (traje obrigatório), mas com um vestido de festa vermelho. A tiração de sarro foi levada tão a sério que hoje a Red Dress Run é a corrida mais esperada do ano, com edições em diversas cidades do mundo, chegando a reunir 8 mil pessoas em Nova Orleans, nos EUA, em 2010. Além desse, os grupos do HHH promovem encontros, nacionais, internacionais e transcontinentais, sempre com a missão de botar o maior número possível de pessoas debochadas e com sede de cerveja, para correr. “O hashing é um estado de espírito, uma fraternidade reunida pelo simples desejo de reviver a infância, aliviar as tensões da vida cotidiana e ser estúpido diante de pessoas que não vão julgar nada, a não ser o seu senso de humor”, diz a líder da versão egípcia.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2011)
Por Maria Clara Vergueiro
LITTLE RED DRESS: Os harriers de NY se divertem de vestidinho vermelho
Ser Hash Harrier é…
>> Livrar-se das ressacas do fim de semana bebendo nos hashings
>> Saciar a sede com cerveja
>> Portar-se mal, falar palavrões e contar piadas sujas
>> Nunca apontar para a trilha com o dedo indicador, mas com os cotovelos
>> Nunca usar tênis ou roupas novas nos hashings
>> Manter o verdadeiro nome em segredo
>> Promover a atividade física entre os membros do grupo