Adriana Nascimento: uma vida chamada mountain bike

Embaixadora Specialized, Adriana Nascimento ganhou a primeira bike aos 15 anos e não largou mais, conquistando dezenas de pódios e centenas de alunos - Foto: Divulgação

Por Verônica Mambrini*

Compreensível que Adriana Nascimento diga sempre a seus alunos: “Destino: diversão”. Afinal, para essa campeã brasileira de mountain bike, o destino sempre foi a bicicleta. A predestinação começa na cidade onde nasceu. “Minha avó mudou para Campos do Jordão, nas montanhas do Estado de São Paulo, em 1950, quando meu pai era criança”, lembra ela, hoje com 41 anos. O pai de Adriana tinha tuberculose, e a opção pela estância de ar puro foi uma recomendação médica. “Tive muita sorte de nascer lá, foi meu grande diferencial para ser atleta. É um dos melhores lugares do Brasil para o mountain bike, pela topografia, com muita subida e descida, e trilhas de verdade”, conta a ciclista, com seu sorriso quase tímido, mas com aqueles olhos que brilham sempre que une na mesma frase as palavras bicicleta, montanhas, natureza e desafios.

Sabe aquela infância dos sonhos, brincando com a molecada na rua, correndo, andando de bike e com muito mato em volta? Assim foi a dela, brincando com os irmãos e primos, como se fosse um eterno treino-base disfarçado. “Cresci solta na rua, brincando e tendo as experiências que toda criança deveria ter. Isso me desenvolveu muito; virar atleta foi algo que aconteceu naturalmente”, conta. Talvez tenha até uma pitadinha de genética: o pai de Adriana, Floriano, pedalava muito bem – chegou ganhar várias provas. “Porém uma hora minha avó não deixou mais ele competir, queria que meu pai focasse nos estudos.” O então garoto chegou a arrumar uma equipe e fugir de casa quando era adolescente. A avó de Adriana teve que ir atrás dele no trem, com a polícia. “Ela brincava comigo falando que eu vim para realizar o sonho do meu pai, que ela não deixou que se realizasse.”

No fundo, talvez Dona Olga, a avó de Adriana, tenha lá sua boa parcela de “culpa” pela carreira esportiva dela. Em Campos do Jordão, ela gerenciava uma pousada, onde era corriqueiro atletas de competições na Serra da Mantiqueira se hospedarem. “Uma vez veio um norte-americano e eu fiquei fascinada pela bicicleta dele, uma Raleigh. Sem eu saber, minha avó propôs de ele pagar as diárias da pousada com a bike”, diz Adriana. Adriana estava com 15 anos e a bicicleta tinha quadro tamanho 19”, enorme para a garota. Ela nem ligou: grudou na bike imediatamente. Era julho, auge da alta temporada, e Campos estava fervendo. “O lançamento da Caloi Aluminum foi na cidade, e os atletas da Caloi almoçavam na minha avó.” Os ciclistas não só botaram pilha para Adriana competir na prova que iria rolar junto com o lançamento como também emprestaram luva e capacete. “Cada um emprestou uma coisa, e foi assim que participei da minha primeira competição.”

A resistência veio justamente da avó. “Ela achava que pedalar não era coisa para moça. Meu pai interviu, disse que era coisa de mulher, sim. Aí eu pude competir. Quando comecei a ganhar e ela começou a ver meu nome no jornal, passou a incentivar e ajudar”, conta Adri. Com o tempo, a avó virou uma mistura de bedel com madrinha da equipe da neta. Dona Olga inspecionava o carro da prefeitura no qual Adriana iria viajar “com um monte de moleques” e ainda fazia o almoço para a galera na volta, curtindo as histórias da viagem. “Se não pode vencê-los, junte-se a eles, né?”, diverte-se a ciclista.

Leia Mais: Henrique Avancini: MTB como missão de vida

Quando começou no ciclismo, Adriana já tinha uma base forte, do atletismo. “Eu já corria em asfalto e, em 1991, quando ganhei minha primeira bike, estava treinando para a São Silvestre. Aos 12, eu já tinha feito uma meia maratona”, conta. Mas participar de uma competição de ciclismo deu uma onda que ela não havia experimentado ainda. “Aquilo tudo me inspirou demais. Na época, a bike da Caloi era extremamente tecnológica, as roupas supercoloridas, o clima da competição e dos atletas… Naquela prova, a minha primeira, a bike passou a fazer parte do meu sonho de ser atleta. E até hoje eu amo esse mundo. Testo equipamentos novos, indico para as pessoas”, conta, com a mesma empolgação daquela menina fascinada pela Raleigh do hóspede gringo.

O apoio da família foi fundamental. Quando chegou a época do vestibular, o pai de Adriana a chamou para uma conversa séria. Não queria que a história dele se repetisse. A jovem tinha prestado vestibular para educação física, e foi aprovada. Entretanto, antes de fazer a matrícula, Floriano a aconselhou a não começar a faculdade naquele momento. “Ele falou da minha chance de ser atleta e viajar bastante. Conciliar treinamento, viagem e faculdade seria muito difícil. Eu tinha 17 anos e aceitei o conselho.” Adriana passou quatro anos competindo, conheceu 18 países, participou de Copas do Mundo, Panamericanos, com dedicação total ao esporte.

Quando decidiu que era hora de fazer uma faculdade, levou para a sala de aula uma bagagem enorme. “Vivi o esporte na prática, na pele. Era muito mais fácil entender a teoria da sala de aula depois daquilo. Eu já tinha vivido tudo o que a gente estava estudando em fisiologia, compreendia o metabolismo de um atleta. Foi um grande diferencial”, diz. Nessa época, ela se dividia entre o curso de educação física, as provas e os treinos, e ainda ajudava na pousada da avó. “Foram anos bem difíceis.”

E se você acha difícil encontrar informação de qualidade sobre treinamento específico para ciclismo hoje, tente imaginar como era há 20 anos. “Faculdade te dá uma base geral, porém mal havia informação e literatura sobre ciclismo. Aproveitei muito a base da educação física, psicologia, parte didática, todas as ferramentas para aprender a ensinar outras pessoas”, conta Adriana, que acha até engraçado ter virado professora, como a mãe foi. Para complementar a formação, as provas fora do Brasil e os training camps ajudaram muito. “Eu sempre buscava referência internacional. Para evoluir tem que fazer intercâmbios. A ida para a Espanha para fazer a Vuelta a Catalunia, com quatro etapas, foi isso: buscar conhecimento, ritmo. Se você quer ser um atleta profissional, tem que ir para fora e conhecer tanto as competições quanto os ambientes de treinamento de outros países.”

A ciclista pegou um cenário nascente no Brasil, com tudo de bom e de ruim que isso implica. As categorias femininas eram minguadas, e a diferença de inscritos e inscritas era ainda maior que hoje. “Meu treino era alcançar os meninos. Se eles passavam uma descida técnica, eu voava junto, nem parava para pensar na dificuldade. Como eram poucas meninas, teve uma época que eu ganhava todas as provas”, lembra. “Às vezes eram umas dez inscritas. Cheguei a correr uma prova na categoria junior masculina porque não tinha categoria feminina. Conforme foi aumentando o número de mulheres, surgiram mais categorias e, aos poucos, as marcas começaram a lançar produtos específicos para nós. Era muito difícil encontrar um quadro pequeno. A minha primeira bike era tamanho 19”, quando na realidade meu tamanho correto é 15””, lembra.

Hoje Adriana divide-se entre Campos do Jordão e São Paulo, cidade que adotou em 2002, depois de casar, e que manteve ao se separar, após oito anos de união. Foi na capital que ela criou a assessoria esportiva que leva seu nome e que já tem 14 anos. “Não tenho ideia de quantas pessoas eu treinei, devem ser centenas. No treinamento de mountain bike, acabei sendo uma das pioneiras.” Parar de competir e se dedicar ao treinamento de alunos de forma mais plena foi intenso. “Senti muito a transição, é outra história. O foco não sou eu mais, são os outros”, diz.

A rotina de treinadora – chamada de “mestra” por seus pupilos (muitos bem mais velhos que ela) – mistura experiência de atleta, paciência e método de educadora, sensibilidade e escuta atenta de psicóloga e faro de detetive, já que ela sempre está caçando trilhas e lugares para mostrar aos alunos. “Tem propriedades que bloqueiam a passagem. Preciso achar alternativas e soluções toda hora. Como eu sempre tive essa visão de que para evoluir é preciso ‘sair da caixa’, principalmente para crescer na parte técnica, sempre arrastei meu alunos para as trilhas”, conta. Inclusive foi dessa experiência que nasceram seus disputados training camps, formato no qual ela foi uma das primeiras no Brasil a adotar. “Com o interesse crescente pelas ultramaratonas, se tornou uma necessidade para os alunos ganharem experiência mais ampla e darem conta de pedalar três ou mais dias seguidos.” Em seus training camps, muitos dos quais fora do Brasil, a relação mestra-alunos fica ainda mais intensa e completa, e todo o esforço vale a pena ao desbravarem, juntos, trilhas em regiões como Utah, nos EUA.

Ver os “filhos ursos”, como ela chama alunos, ganharem provas é uma das grandes alegrias de Adriana. “É gratificante ensinar e ver que o trabalho fez diferença. Minha sensação de ajudar um aluno a conseguir subir no pódio é a mesma que tenho quando eu própria consigo boas colocações. Eu vivi tudo que os alunos estão vivendo até a prova, a expectativa é a mesma. E no fracasso é igual também”, afirma.

Adriana acaba garantindo para si só o pilates durante a semana, porque a cota de pedal vai para seus ursos. “Eu não tenho planilha para mim, mas continuo pedalando com os alunos. Preciso cuidar do descanso, porque começo 5h30 com eles, e o dia muitas vezes vai até umas 20h30.” No fim de semana, dá-lhe Adri nas estradas ou trilhas com seus pupilos, às vezes de bike, às vezes de carro, acompanhando-os bem de perto. Para “descansar” dessa rotina intensa, ela está se programando para uma ultramaratona na Nova Zelândia, com o namorado, também ciclista. “Será uma oportunidade incrível de conhecer um novo lugar, em uma prova difícil. E aí vou ser obrigada a treinar pelo compromisso.” O que, para Adriana, é transformar o destino em pura diversão – ou, em outras palavras, em bicicleta.

*Reportagem publicada na edição nº 149 da Revista Go Outside, março de 2018.