Sem as pernas, Felipe Nunes reinventa a arte de andar de skate

Felipe Nunes em um rolê em Curitiba, sua cidade natal - Foto: Rodrigo Leal

Por Bruno Romano*

O MELHOR LUGAR do mundo é em cima de um skate. É isso que Felipe Nunes descobriu assim que deu os primeiros rolês em Curitiba (PR), sua cidade natal, aos 13 anos. Foi a solução mais prática e divertida que ele encontrou na época para superar um trágico acidente – aos 6 anos, fora atropelado por um trem perto de sua casa, o que culminou na perda das duas pernas. O skate lhe permitiu uma nova dinâmica e perspectiva diante dos obstáculos da vida, além de um meio independente de se locomover por aí. Mais do que isso: nas mãos de Felipe (agora com 18 anos), shapes, trucks, rolamentos e rodinhas parecem entrar em sintonia perfeita, deslizando em um arsenal de manobras que deixa até skatistas profissionais de queixo caído.

“Ele tem um nível técnico altíssimo e consegue manobras complicadas para skatistas com duas pernas”, relata Renan Castagnaro, videomaker especializado no esporte, que tem acompanhado a trajetória recente de Felipe após conhecê-lo por meio do skatista paulista Rodrigo Leal “Maizena”. Instigados pelo talento do jovem (mesmo com tão poucos recursos financeiros), Renan e Rodrigo formaram uma dupla eficaz em prol de novos voos do curitibano. Aliás, se por acaso você ainda não viu Felipe mostrando o que ele faz de melhor, segure a leitura por aqui. Basta dar uma olhada em qualquer um dos vídeos de seu Instagram (@felipenunesskate) para entender do que estamos falando. Conferiu? Pronto, podemos seguir.

“Quando você topa com o Felipe andando de skate, fica com orgulho, não com dó”, resume Maizena, 34, natural de Osasco (SP) e atuante na cena desde 1999. Seu radar se manteve ligado desde o primeiro dia junto de Felipe em um evento em Brusque (SC). “Ele me chamou a atenção logo de cara, e não demorou para eu perceber seu outro dom: o alto astral”, completa Maizena, que se tornou uma espécie de “padrinho” de Felipe a partir dali. O skatista paulista já havia dividido pistas no Brasil e no exterior com Ítalo Romano, conterrâneo de Felipe e com uma história bastante semelhante – após perder as pernas em um acidente, Ítalo tem trilhado um caminho de destaque no esporte. Por essas e outras, Maizena não se intimidou na hora de puxar assunto com o “piá” de Curitiba nem mesmo para convidá- lo a visitar sua casa em Barueri (SP) no ano passado, o que marcaria o início de uma jornada transformadora.

Depois de somar alguns bons resultados em competições locais, já com seu foco total no skate, Felipe juntou dinheiro para ir à edição 2017 do Matriz, um tradicional evento de profissionais em Porto Alegre (RS). Sua intenção era mostrar as caras e revelar seus truques em um ambiente repleto de gente mais experiente, com possíveis patrocinadores. Maizena ficou sabendo e recomendou que ele guardasse a grana para um plano melhor. Não tardou muito para uma ideia sair da cartola. Junto de Renan, na parceira responsável pelo canal do YouTube batizado de Vida de 1 Skatista, deu-se início a uma campanha para levar Felipe ao TAMPA AM, o maior campeonato amador de skate do planeta, realizado anualmente na Flórida (EUA).

Felipe Nunes esbanja talento durante o TAMPA AM – FOTO: Gibran Lucas

A ousadia ganhou força com o apoio de outro skatista e youtuber, Raul Motta, que embarcou na causa por meio do seu canal Um Flip na Vida. O plano era ambicioso. E relativamente caro. A verba esperada (R$ 40 mil) não saiu. Mas o arrecadado (pouco mais de R$ 1.500) ajudou com as primeiras necessidades, como tirar o visto de Felipe para os EUA. De uma forma ou de outra, toda a energia movimentada acabou gerando frutos. Um vídeo de Felipe postado durante o período de promoção da viagem chamou a atenção de Tony Hawk, 49, norteamericano multicampeão de skate vertical e verdadeira lenda mundial no assunto, que compartilhou as manobras de Felipe em sua conta do Instagram. Faltando poucos dias para o TAMPA, no fim de 2017, era hora de colocar o plano B em ação: mandar um direct para Tony!

A conversa andou mais do que bem, a ponto de Tony Hawk fazer o que ninguém imaginava. Nas vésperas do torneio, ele comprou as passagens de Felipe, Maizena e Renan. “Foi uma lição de persistência e foco, rodeada de boas pessoas com ótimas intenções”, celebra Renan, que também atua como gerente de marketing da marca de shapes TIP Technology e que acionou seus contatos no meio do skate para bancar hospedagens e parte dos custos nos EUA, esforço também realizado por Maizena. A viagem, enfim, estava confirmada. Era hora de Felipe se apresentar para o mundo.

“Minha ficha só caiu quando entrei na pista”, conta Felipe, com seu sotaque típico curitibano, ainda tímido em entrevistas. Aos poucos, ele vai se soltando: “Senti a pressão na hora, mas também usei a ‘vibe’ das pessoas me motivando. Era como se todo o skate brasileiro estivesse ali comigo”, completa. Estamos falando da 24ª edição de um evento realizado na pista mais tradicional do skate mundial: o Skatepark of Tampa. É o palco do cobiçado TAMPA PRO, exclusivo para profissionais de destaque, e o TAMPA AM, reunindo talentosos amadores de todo o planeta, que passam por um crivo inicial da organização para estar ali – o campeão entre os amadores vai direto para a Street League, atualmente o torneio mais midiático e bem remunerado do skate street.

Felipe Nunes durante a semi final do TAMPA AM:

DE VOLTA À PELE do novato Felipe. É sua vez de voar. Ele rema com fúria para cima de cada rampa e obstáculo. Desliza sobre um corrimão com estilo, faz manobras nas bordas, aproveita a extensão da pista e se lança em saltos de onde ninguém imagina. O jeito fluido com que gira e manobra seu skate faz tudo parecer fácil. Entre alguns tombos inevitáveis e algumas manobras perfeitas, sua linha congela o tempo quente de Tampa. O público fica vidrado em uma mistura de curiosidade, apreensão e êxtase. No fim da sua volta, toda a galera presente faz barulho e aplaude Felipe por mais de um minuto sem parar. “Não estavam batendo palma porque ele não tinha pernas, mas porque Felipe ‘quebrou’ de verdade”, comemora Maizena, que viu tudo de perto.

O “piá” mesmo quase não consegue descrever as sensações em palavras. Mas ele respira fundo e tenta. “Mano, nunca vou me esquecer desse dia”, diz. “Tive uma visão de onde posso chegar, de que eu consigo ir ainda mais longe”, arrisca, antes de se lembrar de um breve “detalhe”. “O Tony Hawk não foi ao campeonato, ou seja, ele não queria aparecer, quis me ajudar mesmo”, finaliza, emocionado.

“Não foi apenas na pista que ele impressionou”, ressalta Renan. O skatepark fica em um subúrbio da cidade de Tampa, a sudoeste de Orlando, cercado de construções abandonadas e moradores de rua. Nas andanças pelo bairro, Felipe (sempre de skate, claro) ganhava admiração de quem cruzava seu caminho. No fim da experiência, sua performance no torneio também lhe rendeu o G for Effort, prêmio de US$ 1.000 oferecido por um patrocinador ao skatista que mais se esforçou no evento. Dos 280 amadores inscritos – nenhum outro skatista era deficiente –, Felipe terminou no excelente 14º lugar geral.

Em uma passagem pelos EUA, Felipe se diverte ao lado de Renan Castagnaro e Rodrigo Leal “Maizena” – FOTO: Gibran Lucas

“O skate é para todos, mas nem todos ‘são’ para o skate”, costuma-se falar nas ruas entre os mais experientes. “Se parar para pensar, ele não tinha nada para ser skatista, mas, graças a muita força de vontade, ele se tornou um”, observa Maizena. “Felipe colocou toda a energia dele nisso e está começando a colher os frutos, em plena evolução e no caminho certo.” Dedicação, esforço e muita repetição são mesmo ingredientes básicos de um bom skatista. Porém, para Felipe, a grande motivação é outra. “Sempre andei por amor. Cada dia querendo mais”, fala. Isso significa praticar skate diariamente. Se não está chovendo, Felipe já chega na remada, em um percurso de no máximo dez minutos rumo à pista Parigot de Souza, no bairro Sítio Cercado, próximo à sua casa no extremo sul de Curitiba.

NÃO FOI MUITO longe dali que, aos 6 anos, ele decidiu escapar da escola com os amigos e ir em direção a uma linha de trem. No embalo de um desafio entre crianças, Felipe esticou a mão durante a passagem de um vagão. Sua lembrança termina aí. Minutos depois, ele se recorda de acordar tonto e de enxergar vultos dos amigos correndo desesperados. Ainda zonzo, ele tentou se levantar e se deu conta do que havia acontecido com suas pernas. Por sorte, um caseiro que morava na área chamou o resgate. Novo apagão. Felipe só acordou um dia depois, com os médicos e sua família em volta dele já no hospital.

Apesar dos traumas iniciais, Felipe ergueu a cabeça e mirou longe. Com o tempo, sua conduta foi formando um cara obstinado e, muitas vezes, implacável. Há cerca de dois anos, por exemplo, ele partiu para a pista do bairro para treinar focado em um campeonato. Era uma terça- feira comum, e um skatista do pedaço estava mandando uma manobra que o instigou. Felipe tirou de letra e começou a acertar o mesmo movimento. Quando foi mostrar ao amigo, errou na aterrissagem e quebrou um osso abaixo do quadril. Foi preciso passar por cirurgia e colocar pino, o que não o impediu de, no sábado seguinte, ir à pista treinar. No domingo, ele correu um campeonato. E ganhou.

Quando cada remada ou tentativa de manobra já são motivos suficientes para se inspirar, é difícil precisar de mais motivação. Ainda assim, Felipe tinha um bom exemplo para mirar – por sorte, bem perto de casa. Com uma amiga em comum, não foi difícil localizar Ítalo Romano, começar a trocar ideias e a marcar rolês juntos. “Eu aprendi flip por causa dele”, lembra Felipe. “Assisti a um vídeo do Ítalo e saquei o jeitinho que ele fazia com a mão, aí comecei a tentar no colchão da cama”, diverte-se, sobre a influência do novo parceiro de pista que, entre seus feitos, tem como destaque drops insanos e pioneiros na Mega Rampa.

O curitibano compete no TAMPA AM, que rendeu o prêmio de maior esforço – FOTO: Gibran Lucas

Quem anda ao lado de Felipe com mais frequência garante que ele não quer ajuda para fazer nada. Prefere sujar a mão a ter de pedir para que outros o carreguem. Em vez de reclamar, é mais fácil vê-lo fazendo uma piada do tipo: “Ei, me empresta um tênis que eu esqueci o meu”, ou então “estou com uma coceira no dedão do pé, me ajuda aqui…”. “Ele nos dá lições de superação todo dia, de uma forma simples e pura, por isso é muito gratificante conviver ao seu lado”, fala Renan. “Já aconteceu várias vezes de todo mundo parar de andar para ficar olhando o que eu estou fazendo na pista; para falar a verdade, eu me sinto até constrangido”, comenta Felipe. “Mas aí a galera me fala que está admirando o rolê, porque nunca ninguém ‘colou’ por lá assim, e daí começam novas amizades”, descreve o curitibano, que se sente parte de uma grande família no skate, na qual diz nunca ter sofrido discriminação.

Depois da experiência no TAMPA, na primeira vez em que percebeu a real dimensão do esporte, suas expectativas também cresceram – lado a lado com o tamanho dos desafios. “Nesta fase de busca por se tornar profissional, é comum mandar bem em um evento e achar que as marcas vão vir atrás de você, mas não é bem assim”, alerta Maizena. “Fazendo uma comparação com a música, as marcas de skate não querem um cantor de um sucesso só, tem que se manter no nível”, explica Maizena, fazendo um paralelo com sua própria história de batalha pessoal após anos “sobrevivendo” do esporte para, enfim, “viver” dele, como define. Por sentir na pele como cada pequena ajuda pode fazer uma enorme diferença, ele incluiu Felipe nos seus planos futuros – quando for correr a edição do TAMPA PRO de 2018, por exemplo, quer levar o “pupilo” junto.

Na visão de quem já está há mais tempo na remada, a aparição de sucesso no TAMPA de 2017 foi só um aperitivo para Felipe. “Ele mesmo caiu na real de que o skate não é tão fácil: se quiser viver de patrocínio, tem que se esforçar muito, já que as pessoas não vão ter dó. Será preciso mostrar qualidade, sempre”, defende Renan, que o incentiva a terminar os estudos e a aprender outros idiomas. “O skate já mudou totalmente meu jeito de pensar e de olhar para mim mesmo”, revela Felipe. Longe de ser uma fuga da realidade, o skate tem se mostrado uma forma corajosa de enfrentá-la. O deslizar pelas ruas e a passagem crucial por Tampa podem ter mesmo transformado Felipe para sempre. Mas algumas coisas não devem mudar tão cedo. Para Felipe, o melhor lugar do mundo ainda é em cima de um skate.

*Reportagem publicada na edição nº 149 da Revista Go Outside, março de 2018.