“Joguei uma sementinha no deserto.” É assim que o paulistano Eduardo Soares, 37, define o sucesso da sua aventura até o cume do Kilimanjaro, a montanha mais alta da África (5.895 metros de altitude), no fim de 2017. Além da humildade, uma característica desse dedicado atleta, educador físico e massoterapeuta, é a imensurável força de vontade determinante para expandir as fronteiras do esporte adaptado. Eduardo é o primeiro deficiente visual sul-americano a realizar o feito, apenas três semanas depois de outra grande façanha: alcançar o topo do Elbrus (5.642 metros), o ponto mais alto da Europa, na Rússia.
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As ascensões fazem parte do projeto Montanhismo Sensorial, no qual Eduardo pretende completar seis expedições em alta montanha (os Sete Cumes, menos o Denali, no Alasca) fazendo uma alusão aos cinco sentidos – mais o sexto, o da intuição. Sua determinação, junto das pessoas que ele tem cruzado no caminho, também nos convidam a refletir sobre a própria forma como pensamos a inclusão. A seguir, ele mesmo conta sua história, ao lado de duas parcerias essenciais nas recentes aventuras.
Eduardo Soares, corredor de aventura e de asfalto e o primeiro sul-americano deficiente visual a pisar nos cumes do Elbrus e do Kilimanjaro
“Já nasci deficiente visual, e logo percebi como a sociedade é implacável. Mas o esporte tem me mostrado como superar isso. No começo foi o judô, e, há 15 anos, conheci a corrida de aventura, pela qual me apaixonei. Terminei minha primeira prova depois de vários tombos (e alguns cochilos na lama). Estava todo arrebentado quando pensei: é isso o que quero para minha vida. Conheci o montanhismo depois e aprendi a respeitar outro ritmo, menos dinâmico e mais paciente. É uma oportunidade de viver o mundo – porrada por porrada, eu prefiro experimentar e me arriscar. O silêncio da montanha é algo acolhedor para mim. Outras vezes, torna-se assustador também. Mas penso sempre no objetivo a seguir. O próximo passo. O acampamento seguinte. O cume. Isso me instiga e me move para ir adiante.”
Carlos Santalena, guia de alta montanha da agência Grade 6, já esteve nos Sete Cumes e até hoje é o mais jovem brasileiro a subir o Everest
“Muita gente subestima o Kilimanjaro. As pessoas acham que a jornada é simples, mas não se dão conta de como a aclimatação é agressiva nessa montanha, que merece enorme respeito. Principalmente pelo desnível muito alto que é conquistado a cada dia – no ataque ao cume, essa diferença é de quase 1.200 metros. No fim de 2017, lideramos um grupo pela rota Marangu. A grande novidade para mim seria guiar, na maior parte da subida, o Eduardo Soares, o Edu, ou o “Morcego Selvagem”, como ele mesmo se apresenta. Com a ajuda de uma barra direcional que nos unia, eu me conectei com uma pessoa e uma história fantástica. A verdade é que, entre brincadeiras saudáveis e desafios transformadores, ele nos deu uma enorme lição de respeito e superação.”
Ana Borges, montanhista e fundadora do projeto social Expedições Inclusivas
“Quem vive ao ar livre sabe que o meio outdoor é naturalmente inclusivo. Um lugar sem juízos e preconceitos. Mas, na prática, grande parte da verdadeira inclusão é feita por quem não tem deficiência. É o que chamo de ‘inclusão inversa’. Ou seja, tocar o entorno por meio de experiências pessoais para quebrar preconceitos e mudar visões antes condicionadas. Minha missão é difundir essa consciência inclusiva, trabalhando com o desenvolvimento humano. Focada nisso desde 2012, entendi que a acessibilidade vem da atitude, sobretudo de quem está em volta, criando condições para isso.”
Eduardo: “Eu não costumo negar desafios, mas, depois que aceito, fico me perguntando: ‘O que eu fui fazer?’ (risos). Só quando coloquei o pé no gelo do Elbrus eu me dei conta. Foi emocionante! E eu sabia que a partir dali não teria mais volta. O mesmo aconteceu quando senti que estava na África e que iria subir o ‘Kili’.”
Carlos: “Criamos uma empatia mútua. Nossa amizade se deu rapidamente, até por ele ser brincalhão como eu. Essa também foi a primeira oportunidade de guiar um deficiente visual. A proposta do grupo, no entanto, era que todos os demais pudessem viver isso por um tempo ao lado do Eduardo, o que foi ótimo.”
Ana: “Aventura significa lidar com limitações e superá-las. As pessoas acabam percebendo que abrir um espaço de inclusão é mais simples do que imaginavam. Até porque não é a deficiência ou uma limitação que define alguém. Na mesma expedição, teve gente que não alcançou o cume do Kilimanjaro, por exemplo.”
Carlos: “Algumas pessoas ficaram receosas a princípio. Surgiu uma dúvida. Mas esse paradigma foi totalmente quebrado na prática. O preconceito era uma ilusão. Todos foram impactados e, com certeza, essa experiência mudou suas vidas— eu me incluo nisso.”
Ana : “A convivência é poderosa. A noção de ‘coitadinho’ desaparece bem rápido. Além de atleta, Eduardo tem uma sensibilidade muito grande para ver as pessoas. Sinto que, dessa forma, ele tira até mesmo mais aprendizado da montanha. No fim, todos aprendem e se transformam.”
Eduardo : “As pessoas f cam travadas na imaginação: ‘Nossa, deve ser muito difícil para ele’. Quando peço uma companhia para correr, acham que vão precisar me carregar, mas não é assim. É esse pensamento que destrói a sociedade.”
Ana : “Ao lado do Edu no Elbrus, até esqueci de que eu mesma estava subindo pela primeira vez. Aquilo comprovou de vez, para mim, a teoria de que, quando se promove alegria, você também a recebe em dobro (ou até em quantidade maior).”
Eduardo : “Em cada dificuldade no Kilimanjaro eu buscava forças lembrando de que eu estava representando todas as pessoas com deficiência. Eu levava todas elas comigo.”
Ana: “A chave é promover a integração. Ao criar grupos específicos de deficientes, você naturalmente os ‘encaixota’. Muitos operadores turísticos ainda têm medo ou receio, mas estamos quebrando essa barreira. Precisamos promover a real integração. Só ao contagiar o entorno seremos inclusivos.”
*Parte da reportagem #5 Atitudes Positivas Para 2018, publicada na edição nº 148 da Go Outside, jan/fev de 2018.