Por Bruno Romano, de Florianópolis
“VAMOS APOSTAR UMA CORRIDA?”. Acabo de ser desafiado por um menino de no máximo cinco anos. Estou correndo na areia, enquanto ele domina sua pequena bike. “Vamos! Está preparado? 1, 2, 3 e já!”, respondo, acelerando. Perco por duas mini bicicletas de distância. Saúdo o legítimo campeão e sigo adiante, levando comigo um pouco do seu sorriso. Não consigo imaginar um jeito mais puro e divertido de começar a minha corrida de verdade.
Eu já sonhava com este momento há algumas semanas, quando aceitei o convite (e o desafio) de encarar o trecho número 16 do 23º Revezamento Volta à Ilha, prova disputada por equipes com total de 140 km.
Meu trajeto de 16,4 km liga a praia dos Açores, no extremo sul da ilha de Santa Catarina, em seu lado leste, de mar aberto, ao bairro da Tapera, no lado totalmente oposto, cruzando o Ribeirão da Ilha pelo seu sertão. Graças a quantidade de trilha e de desnível, a organização classifica o percurso em uma categoria a parte: “o mais difícil”. Perfeito. Era a motivação que eu precisava.
Quando eu finalmente assumi o bastão do time para me lançar na missão – por volta das 14h30 de um lindo sábado (7/4) quente e ensolarado – minha equipe já havia dado duro desde as 7h da manhã, correndo 15 trechos. Um esforço que incluiu atravessar areia fofa e costões, vencer sobes e desces em asfalto e até fazer uma travessia de barco. Posso sentir a energia coletiva presente quando me encontro, enfim, sozinho no meio do mato.
Apostei na parte psicológica do meu treino (leia-se: “vou sofrer, mas vou chegar… já passei por coisa pior”) e fiz apenas o suficiente no aspecto físico, misturando algo de fortalecimento com corridas em terrenos irregulares. Uma dedicação honesta, mas nem perto do que os corredores mais bem treinados tinham feito – o que explica por que, a esta altura, eles me passam com facilidade.
No modo devagar e sempre, me sintonizo com o ambiente e com meu próprio corpo, excluindo da mente qualquer possibilidade de competição externa ou de pensamento duvidoso.
A esta altura do dia, os primeiros colocados da prova já começavam chegar. O octeto da Companhia dos Cavalos (RS) foi o mais rápido, cravando incríveis 8h34min07s. A dupla mais veloz, Ernani de Souza e Elson Alex Gracioli (também membros da mesma equipe gaúcha), dividiram os 140 km da competição em dois, completando o percurso em 10h21min49s.
Demais times, de duplas a grupos de 12 pessoas, seguiam puxando seus limites em um evento de exige sincronia e trabalho em equipe. Uma tarefa que começa desde a escolha dos trechos e vai até a logística de largadas e reposicionamentos no dia da prova, percorrendo quase toda extensão da ilha.
Nesta edição de 2018, estamos falando de cerca de 4 mil participantes, um número máximo estipulado pela organização – há mais procura do que espaço para competir. As regras para garantir vaga seguem uma lista complexa de fatores. Em resumo, participantes mais antigos têm preferência na inscrição, e uma sequência de sorteios e regras determinam os demais participantes.
Deste ponto de vista, sou um sortudo de estar a mais de meia hora testando os músculos das pernas na tão temida sequência de pirambas do sertão – a descida abrupta, logo depois, seria equivalente e bem mais dolorida. Apesar de nunca ter encarado este trajeto de forma competitiva, ele não era desconhecido para mim, o que me ajudou a vencer cada obstáculo.
Quando parto para o sertão em um dia de passeio, normalmente de bike, costumo brincar com quem está comigo que iremos visitar Floripa, Minas Gerais e Paraty no mesmo dia. É só um jeito de explicar a marcante mudança de ambiente, saindo das praias mais isoladas do sul, passando por uma zona rural praticamente inabitada em área de parque municipal, e chegando ao Ribeirão da Ilha, esta charmosa vila de pescadores que mescla simplicidade com um roteiro turístico de alta gastronomia local. Em resumo, um caminho por alguns dos pedaços mais encantadores da ilha.
DE VOLTA AO CALOR DA PROVA, começo a cruzar com mais gente empenhada. Ainda que muitos sigam em ritmo mais forte do que eu, consigo alcançar outros que julgaram mal as subidas mais cedo. Se as minhas pernas não respondem tão bem como a de corredores visivelmente mais rodados, pelo menos tenho a paciência e as experiências em duros trekkings com peso nas costas a meu favor. Nesta hora, acredite, tudo conta.
Em meio a este delicioso sofrimento, a conexão com meu time – aquele incentivo que usei no começo do percurso – já começa a ficar distante. Crio naturalmente uma nova interação com todos ao meu entorno. Estamos vivendo a mesma encrenca e, aparentemente, buscando jogos mentais parecidos. Não é de se estranhar a razão desta poderosa energia emanar uma espécie de onda, que se dissipa no ar e nos embala a seguir em frente.
Aciono uma nova tática: absorvo de cada um que vejo algo que pode me ajudar. A boa postura daquele cara que acaba de me passar. O sorriso no rosto do senhor que não se entrega. O passar ritmado de uma mulher que aposta em avanços curtos e constantes. E, quando me sobra fôlego, procuro incentivar alguém, assim como outros fazem comigo.
Duas horas depois da largada na praia, com direito a aposta relâmpago com o pequeno guri, ainda tenho algo desta energia coletiva para passar adiante para nosso próximo representante. Ele já está pronto e ansioso para acelerar durante os 15,2 km que o esperam, no penúltimo trecho da Volta à Ilha.
Depois de o sol se pôr, todo o restante da equipe já está reunida próxima a chegada dividindo cervejas e histórias. Ainda vamos passar juntos pelo pórtico para fechar de vez a competição.
Nos relatos felizes e aliviados que ouço dentro do nosso time (e de alguns dos milhares de corredores que se espalham agora pelo trapiche da Beira-Mar) me vem à mente as tantas voltas que a ilha deu em um mesmo dia. Pode ser só coisa da minha cabeça, mas, ao percorrer seus caminhos desta forma, é impossível vê-los novamente do mesmo jeito.
Naquele momento, todos os empenhos pessoais e os desafios coletivos – de tirar uma prova desta do papel ao esforço da logística das equipes e a dedicação de quem veio de longe – parecem convergir em um sentimento único e com potencial transformador.
Vai além do “ufa, conseguimos!” para algo que põe em cheque nossos próprios limites individuais e a nossa capacidade de evoluir em grupo. Bom, acho que só vivendo isso de perto para sentir. E aí, “vamos apostar uma corrida?”