Por Mario Mele*
HÁ MAIS DE 20 ANOS visitando periodicamente a Antártida em missões de pesquisas, o montanhista paulista Nelson Barretta é doutor na arte de reverter situações desfavoráveis. Acostumado a conviver de perto com avalanches e a participar de resgates em lugares extremos, ele já tinha tentado chegar ao Cabo Froward, o ponto mais ao sul da América do Sul continental, por três vezes. “A primeira foi em 1998”, lembra. Em novembro de 2017, em sua quarta tentativa (a primeira solo), Barretta finalmente conseguiu pisar no mítico lugar. “Mas não consegui ficar mais do que dois minutos ali”, diz. “Tirei quatro fotos, gravei um filminho rápido e dei meiavolta. Além de fazer frio, ventava e nevava muito.
Hoje com 47 anos, ele está mais consciente do que nunca sobre suas escolhas. “Não é fácil fazer alguém trocar a rotina diária pelo convite de uma caminhada no extremo sul do continente só para ver onde ‘o mundo acaba’”, diz justificando a decisão de ir sozinho. Todo o conhecimento adquirido em matéria de sobrevivência serviu para, no fim da empreitada, ele dar um conselho categórico: “Não vá! Eu não recomendaria esse trekking a ninguém”.
A palavra em inglês froward significa “hostil”. Foi o nome mais apropriado que o navegador inglês Thomas Cavendish encontrou quando avistou essa zona de convergência entre o Atlântico e o Pacífico, em 1587. Por terra, para chegar ao Froward, são necessários entre três e cinco dias de caminhada. Há poucas referências sobre o lugar, e a trilha quase não tem demarcação, além de ser costeira na maior parte dos seus 32 km.
Uma tábua de marés é um equipa – mento útil, mas nada por ali é garantia de segurança. Barretta pegou dias de mar ressacado. Segundo ele, parecia que os dois oceanos tentavam atravessar, em sentidos opostos, um tubo de meia polegada de diâmetro. “Era porrada de todo o lado”, relembra. “O costão desapareceu, o que me obrigou, algumas vezes, a ter que esperar até meia hora para conseguir dar alguns passos.”
Para Barretta, é fácil se enganar pelas fotos lindas do lugar. Nem toda a experiência em ambientes inóspitos serviu para aliviar a aspereza do Froward. Ainda com a voz trêmula, porém feliz como alguém que acaba de ganhar uma segunda chance, ele falou sobre suas estratégias para pisar na última pedrinha do nosso continente e também revelou como conseguiu sair de lá vivo.
“Montanha plana”
Depois de todas as minhas tentativas para pisar no extremo sul do continente sul-americano, passei a chamar o Cabo Froward de “montanha plana”. Quase não há desnível, a não ser uma pequena elevação no começo, de uns 200 metros. No fim há a Cruz de Los Mares, de 30 metros de altura, posta ali por questões religiosas [em homenagem ao Papa João Paulo II por sua visita ao Chile, em 1987]. Mas não é um local turístico. Há poucas referências e ninguém mora lá. Acho muito mais selvagem do que aventureiros como o brasileiro Guilherme Cavallari, por exemplo, já tentaram colocar em palavras.
Aventura raiz
O Froward tem uma energia forte: é um lugar que protege pássaros ameaçados de extinção e é o hábitat de raposas e árvores típicas da Patagônia. O legal é que o lugar atrai também quem tem o espírito de aventura aflorado, não importa se é um cara mais das antigas, como eu, ou alguém que tem um bom casaco de GoreTex e um fogareiro Jetboil. Independentemente disso, o Froward possui alma e deve ser respeitado por isso. Você sente a vida selvagem pulsando a todo o momento.
Ameaça do asfalto
Se for construída uma estrada ligando Punta Arenas e o Cabo Froward, como previsto, ele perderá completamente o sentido. Seria algo como aconteceu com a antiga trilha entre Campos do Jordão e Pindamonhangaba (SP), que na década de 1980 era um caminho ermo e hoje as terras em volta estão ocupadas por sítios, chácaras, condomínios… O Froward continuará existindo, mas atrairá turistas que vão querer chegar de carro para uma foto do lugar e depois voltar rápido para a civilização.
A trilha
É uma caminhada duríssima. Você está o tempo todo sendo consumido pelo vento e pela baixa temperatura. O céu é realmente cinzento. O vento perturba o juízo e chega a tirar o discernimento. Mesmo de dentro da barraca, você ouve o barulho infernal que faz na copa das árvores. É uma caminhada psicologicamente muito desafiadora, que exige planejamento. Você pode ter a sorte de pegar cinco dias de sol e sem vento na Patagônia, algo bastante raro. De qualquer forma, precisa se preparar. Tem que ficar esperto com comida e hidratação, porque, quando chove muito, a água dos rios fica turva, imprópria para o consumo.
Momentos de tensão
Fiz a caminhada em cinco dias, mas dá para fazer em três se você tiver experiência nesse trekking. No dia em que fui até a cruz e voltei (20 km), não parou de chover e ventar nem por um minuto. Na volta, enquanto eu tentava atravessar a boca de um rio, fui tragado pelo mar. Fui puxado para baixo d’água e minha mochila desapareceu. Mesmo sem sensibilidade nos pés, consegui pisar nos últimos dois metros de terra que ainda restavam e me impulsionei de volta à superfície. Quando me dei conta, estava sem roupa e sem nenhum equipamento na Patagônia. No meio da tempestade, em pé na costeira e sem ter ninguém por perto, tive que manter a calma para recuperar minha mochila e poder sair de lá vivo. Ainda estou digerindo tudo o que aconteceu. É doído, mas, depois que você volta, se sente bem!
*Reportagem publicada na edição nº 148 da revista Go Outside, janeiro e fevereiro de 2018.