Fundação Homestretch: como formar mais ciclistas mulheres profissionais

Por Axie Navas com fotos de Tracy L. Chandler

Fundação Homestretch
NO PELOTÃO: Kathryn Bertine lidera um grupo de ciclistas no Parque Nacional de Saguaro, no Arizona (EUA)

O PRIMEIRO ALARME toca às 5h da manhã. Anayantzi Guzman Fuerte, 30, sai de seu quarto na Fundação Homestretch e vai para a cozinha preparar o café da manhã, que será o combustível para a pedalada do dia: uma subida de 46 km no Monte Lemmon, nos arredores de Tucson, no Arizona (EUA). Uma por uma, suas cinco companheiras de casa seguirão seus passos. Às 6h30, há frango, quinoa e couve cozinhando no fogão.

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“É o mesmo cardápio de sempre”, diz Mackenzie Green, 20, uma ciclista de ciclocross de Cincinnati, Ohio (EUA). Enquanto comem, as atletas comparam as planilhas dos treinos que farão no dia, enviadas por seus respectivos técnicos.

“Ai, tenho quatro horas hoje, com uma hora de treino ritmado”, conta Meghan Grant, 34, que pedala pela equipe nacional de pista do Canadá. “Você está ferrada”, diz Mel Beale, 24, ciclista de estrada do Colorado (EUA). Assim que acabam de comer, as moças tiram as bicicletas da garagem e saem para arrasar em mais um treino.

É assim que começa um dia típico na Fundação Homestretch, uma organização sem fins lucrativos que fica em Tucson, cofundada pela ex-ciclista profissional Kathryn Bertine em novembro do ano passado. Sua missão é fornecer moradia temporária para ciclistas mulheres que estão na batalha para fazer a carreira vingar. De janeiro a maio, a fundação abriga entre seis e oito mulheres (quase todas ciclistas, ocasionalmente também há corredoras) por várias semanas de uma vez, em uma casa de 280 m² que funciona como sede. É como uma residência artística para atletas. “E se todas as atletas profissionais tivessem a oportunidade de fazer isso?”, questiona Kathryn, de 42 anos. “Digo, concentrar toda sua energia na carreira. O esporte seria alavancado.”

Considerando que as mulheres do Homestretch (que carinhosamente se apelidam de “Stretchies”) economizam apenas no aluguel, a frase de Kathryn pode soar exagerada, até pensarmos no estado crítico dos salários femininos em esportes profissionais de resistência. De acordo com Kathryn, apenas uma das mais de 30 participantes do programa já ganhou mais de US$ 10.000 por ano com o esporte. “Há muitas mulheres ciclistas com talento e ambição que não conseguiriam viver para o esporte sem uma estrutura assim”, diz Kristy Scrymgeour, ex-líder da equipe Lululemon Specialized.

A disparidade entre salários masculinos e femininos é aguda no ciclismo profissional. Apenas uma parcela minúscula do World Tour, o circuito de elite que inclui o Tour de France e o Giro d’Italia, ganha mais de US$ 100.000 por ano entre prêmios e patrocínios – a maioria recebe algo como US$ 15.000. Os homens, por outro lado, abocanham milhões, e um ciclista profissional médio embolsa cerca de US$ 80.000 por ano. Além disso, a UCI, órgão supremo do ciclismo, obriga as equipes a pagarem um salário mínimo de € 35.000 por ano aos ciclistas homens. Não há um padrão assim para as mulheres.

Para as Stretchies, muitas ainda no início de suas carreiras profissionais, os salários são ainda menores. A maioria viaja durante a temporada de competições, que dura nove meses, e a moradia é paga durante boa parte desse tempo. No resto do ano, elas se viram sozinhas, pagando o aluguel com segundos empregos ou com a ajuda de seus pais ou maridos. Meghan, a canadense, acaba de deixar o trabalho como médica de pronto-socorro para se dedicar exclusivamente ao ciclismo. Mackenzie, a atleta de ciclocross, era barista em um café. “Eu trabalhava oito horas por dia e não tinha tempo para treinar”, conta. “A Fundação Homestretch me deu um respiro.”

O objetivo de Kathryn é pressionar a UCI a exigir um salário mínimo também para mulheres. “Qs mudar o sistema”, diz. Ela acredita que, se conseguir convencer a UCI a tratar homens e mulheres da mesma maneira, os patrocinadores das equipes seguirão a tendência.

Nem todo mundo concorda. “Até o dia em que corridas femininas receberem ampla cobertura midiática, será impossível ter salários iguais”, afirma Kristy. Atualmente, qualquer coisa além de rápidas tomadas com os melhores momentos das competições femininas é uma raridade. Sem uma cobertura mais ampla, patrocinadores em potencial não se interessarão, segundo Kristy. Quando perguntei a Kathryn sobre esse assunto, ela abanou as mãos, dispensando a observação. Ela credita a falta de patrocínios a uma falta de criatividade, dizendo que as equipes precisam seduzir patrocinadores de fora do mundo do ciclismo – e aponta a própria Fundação Homestretch como um exemplo disso. Em dezembro de 2015, Tom Bailey, um executivo de biotecnologia de Seattle (EUA), contatou Kathryn para pedir ajuda no marketing de uma nova marca de bicicleta. Kathryn, por sua vez, lançou a ideia do Homestretch. Tom, que também é ciclista e tem uma filha pequena, adorou a ideia. Um ano e meio depois, ele deu o dinheiro de entrada para comprar a casa de US$ 500.000 em Tucson.

Kathryn, que mora no imóvel da Fundação Homestretch e dirige o programa, diz que seus dias são passados principalmente tentando fazer que o negócio se sustente. Ela quer levantar dinheiro suficiente para pagar pela manutenção da casa e, eventualmente, ser capaz de bancar uma mesada às Stretchies. Até agora, o único patrocinador que demonstrou interesse foi a produtora de vídeos Sufferfest, que provém de graça veículos para motorpacing (treinos em que as ciclistas são “puxadas” por motos), um médico, um quiroprata e um dentista, cada um deles oferecendo consultas com desconto.

Em setembro, a casa da Fundação Homestretch deve ganhar um apartamento-estúdio extra, tornando-se capaz de acomodar mais duas atletas, e Kathryn está pensando em comprar outra residência, em um lugar com clima mais ameno, para poder hospedar atletas durante todo o ano. O caminho à frente prossegue enevoado, mas isso não parece desencorajá-la. “A igualdade é como uma escada, e temos que continuar subindo”, acredita. “É claro que somos gratas por algumas mudanças, porém isso não é suficiente para que nós, mulheres, paremos de reivindicar.”