Em 2005, o paulistano Marco Scallabrine, 38, foi pela primeira vez para a cidade de El Chaltén, na Patagônia argentina. Sem nem imaginar que ainda teria grandes responsabilidades no resgate em montanha, “Kinho”, como é conhecido, viajou até lá com o mesmo objetivo da maioria dos forasteiros: explorar os paredões rochosos locais. “Escalo desde os 18 anos e já tinha ouvido falar muito daquelas montanhas, famosas pelos picos como o Fitz Roy e o Cerro Torre”, conta.
+ Quando e como você deve solicitar resgate
+ Resgate em montanha: Michel Ferrada, o homem que viu demais
Era o começo de uma história de amor que dura até hoje. O escalador começou a visitar El Chaltén com regularidade, ficando sempre por um ou dois meses, escalando o máximo possível e topando qualquer negócio para estender a estadia. “Em 2013, fui mais uma vez e acabei ficando”, diz ele, que mora lá desde então.
Além da escalada, a grande realização pessoal da vida de Marco é participar do grupo local de resgate em montanha, a Brigada Voluntária de Resgate da Comissão de Auxílio de El Chaltén, uma parceria entre o Centro Andino de El Chaltén, o hospital local, a gendarmeria (como é chamado o Exército argentino), voluntários treinados, os moradores do lugar e o Parque Nacional Los Glaciares, que realiza resgates de escaladores e turistas nas montanhas. O resgate em montanha, que, assim como a cidade, conta com mais gente no verão que no inverno, organiza e realiza operações para salvar a vida dos que se metem em enrascadas. A seguir, Marco conta um pouco sobre sua rotina:
IMPRUDÊNCIA NO FITZ
São dois os problemas mais comuns nas montanhas de El Chaltén: alguém cair em uma greta e o parceiro não conseguir retirar; e a pessoa se machucar durante uma escalada ou caminhada. No Fitz Roy, existe uma via chamada Supercanaleta, uma das mais “fáceis” e que divide a face oeste da montanha. É bem acessível: uma rampa de gelo seguida por 200 ou 300 metros de ascensão para alcançar o cume, por isso muito visitada. Como é uma escalada relativamente fácil, as pessoas não costumam andar encordadas ou com o auxílio de outros equipos de segurança. Há diversos casos de imprudência –muitos turistas não querem saber se o tempo está bom ou ruim para ir lá. É um lugar perigoso, pois tudo o que cai do alto do Fitz Roy afunila por ali. Cai pedra, tem avalanche. Houve uma temporada, há alguns anos, em que aconteceram três acidentes na Supercanaleta. É muito trampo pro resgate em montanha tirar as pessoas dali.
TERRENO CABULOSO
O acesso até o pé do Fitz é complicado: há uma subida grande, de uns 3 km, com uns 70 graus de inclinação. Você sobe dois passos, desce um. Tem muita pedra solta, com terreno horrível, especialmente na hora de descer com uma maca nos ombros. Quando o resgate em montanha é acionado, trabalhamos com 200 metros de corda prendendo a maca, para ir de um ponto a outro. É superpesado, um processo complexo, trabalhoso e desgastante. Às vezes, quando a pessoa tem seguro, ela aciona o helicóptero, mas quem decide se vai até lá ou não é o piloto.
MOMENTOS MARCANTES
Há uns três anos resgatamos duas escaladoras suecas no Fitz Roy em uma situação grave. Elas estavam fazendo escalada em gelo quando uma pedra despencou do alto e derrubou uma delas – como estavam encordadas, a outra veio junto. As duas chegaram ao chão totalmente quebradas, com os olhos inchados, cheias de cortes pelo corpo devido aos golpes de piqueta que receberam durante a queda. Uma delas tinha fraturas expostas, a outra também havia quebrado ossos e perfurado o pulmão. Outro resgate em montanha que me marcou foi buscar o corpo de um amigo. A mulher que estava escalando ao seu lado desceu para buscar ajuda, mas sabíamos que ele já havia morrido quando saímos para resgatá-lo.
SEM SALÁRIO
Eu sou voluntário, como muitos outros que trabalham com resgate por lá. Ficamos à disposição e, geralmente, somos contatados por rádio – o sinal de celular só chegou a El Chaltén faz dois anos. O lugar onde mais acontecem acidentes fica a uns 30 km do centro da cidade, em uma região onde se faz a chamada “volta ao gelo”, em Piedra del Fraile, atrás do Fitz Roy. Quando acontece um acidente, a cidade inteira se mobiliza, muitos doam comida e, juntos, organizamos tudo. Os equipamentos usados são doados, na maioria das vezes, pela Kong, uma marca italiana de escalada. Eles produzem muitos equipamentos específicos para esse tipo de resgate em montanha.
AMOR AO OFÍCIO
Tanto o lado físico como o emocional se desgastam após um resgate em montanha. O físico, você só sente tempos depois – fico pelo menos um dia de molho ao voltar da montanha. Sinto sempre aquela energia estranha de um momento difícil. Mas faz parte. Gosto porque estou ajudando, adoraria que fossem me tirar de lá se eu estivesse em uma enrascada, então faço com muito prazer. Acho que não conseguiria aceitar essa profissão por dinheiro, pois isso muda totalmente o objetivo e o foco. Já misturei escalada com dinheiro, e não é uma receita que eu curta. Você perde um pouco o tesão. Eu resgato as pessoas com amor, vou por conta própria, não tem ninguém me ligando e me cobrando. Já recusei resgates também, por condições físicas que me impossibilitavam, por estar cansado. Lá na montanha é preciso ter muita vontade para enfrentar o perigo e carregar peso, como macas e equipamentos.