Por Mario Mele
ANTES DE SER o cara que atualmente tenta bater um recorde mundial no ciclismo, o curitibano Evandro Portela é um ator lucrativo da “indústria de vídeos virais”. Um desses vídeos, publicado no YouTube e no Facebook em março de 2014, já está próximo de 8 milhões de visualizações.
É uma tomada de 5 minutos e sem cortes, em que Evandro prende uma GoPro na traseira de um caminhão e se filma ultrapassando carros e ônibus a mais de 120 km/h, no vácuo da carreta. A cena se passa em uma rodovia federal que corta a região metropolitana de Curitiba (PR). Ele não está usando capacete e, às vezes, em um estado alucinante de adrenalina, chega a tirar as duas mãos do guidão. No fim, com a mesma dificuldade que teria para pegar sua garrafa de água presa à bike, ele recupera a câmera com o caminhão ainda em movimento.
“Há meses em que eu ainda recebo US$ 700 por causa dessa filmagem”, diz Evandro – que negociou os direitos de imagem com um site gringo de vídeos virais – no mesmo dia em que chegou a 184 km/h de bicicleta, em julho deste ano. Agora, no entanto, pedalou na cola de um carro, em uma ação conjunta e devidamente ensaiada. Desde 2014, depois que ultrapassou a marca dos 120 km/h ao grudar sua magrela no vácuo daquele caminhão, ele começou a levar a sério o “motor-paced cycling”, uma vertente extrema do ciclismo e da qual quer se tornar um recordista mundial ainda neste ano. A modalidade consiste em pedalar no vácuo de um veículo motorizado – um carro, uma moto ou um caminhão.
O barato é ver até que velocidade uma bicicleta pode chegar sem ter a força do ar jogando contra. As variáveis, porém, são praticamente infinitas. Em 1995, por exemplo, o holandês Fred Rompelberg chegou à incrível velocidade de 268 km/h na cola de um dragster (veículo leve com motor extremamente potente, especialmente projetado para provas de arrancada) em um deserto de sal nos Estados Unidos. E, em 2013, o motociclista Guy Martin, que está acostumado com esticadas de mais de 200 km/h em competições de motovelocidade, pedalou a 180 km/h na bota de um caminhão em uma pista de concreto no País de Gales. Ambos se tornaram recordistas: Fred é até hoje o cara que já pedalou mais rápido no vácuo na história; Guy se consagrou como o britânico mais veloz sobre uma bicicleta. No entanto eles utilizaram bicicletas construídas especialmente para o feito e que, entre outras adaptações, contavam com uma relação de duas coroas, um sistema que deixa a pedalada muito mais eficiente em altas velocidades. Os dois também não saíram pedalando do zero, mas rebocados por um cabo de aço. E se soltaram quando já estavam bem embalados. Outra similaridade é que vestiam macacões de couro e capacetes fechados. Em nada se pareciam com ciclistas de estrada.
Obviamente que pedalar a 180 km/h ou a quase 270 km/h é perigoso, e qualquer erro do piloto ou falha do equipamento pode ser fatal. Portanto é compreensível que, no fim de suas respectivas tentativas, Guy estivesse com as mãos tremendo, enquanto Fred precisou confortar as filhas e a esposa, que choravam implorando para que ele nunca mais fizesse aquilo.
“A regra número 1 desses desafios é ter o domínio absoluto da bicicleta”, diz Evandro. “Faço questão de ressaltar no começo dos meus vídeos que o risco de morte é grande, por isso não recomendo a ninguém.”
Para ele, que já foi ciclista profissional nas décadas de 1990 e 2000, participando inclusive de provas importantes, como a Vuelta a España e a Volta de Portugal, o “motor-paced” deve ser um “recorde puramente ciclístico”. Diferentemente de Fred e Guy, o brasileiro não utilizará cabos de reboque e também já descartou o uso de vestimentas especiais e sistemas de transmissão que não condizem com uma bicicleta tradicional. A única alteração visível em sua bicicleta é a coroa de cem dentes, para tornar viável a cadência de pedaladas a 200 km/h. “Será um recorde inédito”, explica Evandro. “Algo parecido com o que o alemão Jean-Claude Rude e o francês José Meiffret [dois famosos adeptos do ciclismo a vácuo] tentaram fazer nos anos 1960 e 1970.” Há indícios de que José tenha chegado a 204 km/h pedalando uma bicicleta com coroa de 130 dentes atrás de uma Mercedes-Benz 300 SL, um dos carros mais velozes daqueles tempos, porém o feito nunca foi reconhecido pelo Guinness Book.
PARA EVANDRO, além de ter o nome consagrado, será uma digna “volta às origens”. “As primeiras corridas que ganhei no ciclismo, ainda na categoria estreante, competi com a minha Caloi Cross aro 20, que tinha uma coroa de 65 dentes.” Ele lembra de que o componente foi fabricado pelo pai de um amigo na própria garagem, em um procedimento autodidata no qual se utilizou um torno manual.
No começo dos anos 1980, as crianças no Brasil tinham duas opções: a Caloi Cross ou a Monark BMX. “A Caloi vinha com uma coroa de 44 dentes, enquanto a Monark tinha 52”, explica. Com muito mais asfalto disponível do que pistas de BMX, os pivetes preferiam pedalar veloz, em vez de decolar e aterrissar em rampas de terra. Quando a molecada descobriu que a coroa era o que fazia a diferença para a bicicleta andar mais, os donos de Caloi Cross trataram de dar um jeito de deixar os rachas no bairro mais acirrados.
“Não tenho dúvidas de que foram essas disputas que me deram toda a base para eu ingressar no ciclismo profissional”, assegura Evandro, que até os 14 anos levantava a altura do selim da sua Caloi Cross com coroa personalizada para dar pau em “speedeiro”. “Nem os pneus eu trocava. Deixava os lameiros, originais de fábrica mesmo”, completa.
Como todo ciclista, ele também descobriu cedo o “poder do vácuo”. Mas foi só em 2005, durante uma competição no interior de São Paulo, que começou a chamar a atenção para isso. “Meu pneu furou e eu perdi o pelotão”, conta. “Depois que minha equipe fez a troca, o sr. Bruno Caloi [herdeiro e então presidente da maior fábrica de bicicletas do Brasil] passou dirigindo um carro de apoio e eu aproveitei para entrar no vácuo. Seria a minha chance de buscar os primeiros colocados.”
É comprovado que quem não tem que lutar contra a resistência do ar pode poupar até 40% de energia, comparado a alguém que pedala com a cara no vento. Mas é preciso coragem e força física para manter o giro alto, mesmo com essa ajuda extra.
Bruno ficou tão impressionado com Evandro na cola de seu veículo – mesmo quando o ponteiro do velocímetro chegou a 120 km/h –, que pensou em transformar a pedalada no vácuo em uma estratégia de marketing para a sua empresa.
Segundo Evandro, seria um evento para entrar no Livro dos Recordes, e até uma marca de carros faria parte do esquema. “Eu pedalaria uma bicicleta Caloi na bota de um Chevrolet Lumina a 160 km/h”, recorda. Mas em 2006, prestes a colocar em prática a tentativa para homologar essa marca, Bruno Caloi faleceu, e a ideia acabou não saindo do papel.
Em 2014, aposentado do ciclismo profissional, porém ainda acostumado a pegar vácuo em caminhões pelas rodovias paranaenses, Evandro comprou sua primeira GoPro e gravou o vídeo que viralizou na internet – relatado no início desta reportagem. Foi no mesmo ano que conheceu o empresário Eros Deconto, para quem vendeu uma bicicleta e seu plano do recorde. “Eu costumo ter visões do que acontecerá na minha vida. Mais recentemente, vi que integraria um projeto grandioso, mas ainda não tinha ideia do que era até conhecer o Evandro”, conta Eros.
Tão importante quanto ser uma pessoa mística e acreditar que a marca perseguida por Evandro é uma história da qual também fará parte é o fato de Eros ser dono de um Subaru Impreza WRX Turbo, o potente carro que compete no Mundial de Rally. Esse seria o penúltimo item da lista do ciclista curitibano para ele voltar a sonhar com o recorde. O último seria o piloto. Eros imediatamente abraçou essa responsabilidade, como uma oportunidade para viver a premonição que tivera.
“Nossa sincronia é total”, diz Eros no dia em que atingiram a inédita marca de 184 km/h, cinco meses antes da tentativa oficial. “Estou sempre olhando no retrovisor e no velocímetro. Uma balançadinha de cabeça do Portela e eu já sei que é para eu acelerar.”
JÁ SÃO TRÊS anos de invenções e ajustes. No começo, a carenagem de acrílico montada atrás do Subaru para proteger o ciclista do vento era mais comprida. “Mas percebemos que o Evandro poderia ir um pouco para o lado e bater naquela lateral a mais, o que causaria um acidente”, explica Eros.
Eles recorreram a engenheiros e à tecnologia para evoluir como equipe – calculam que já gastaram em torno de R$ 100 mil no projeto. Além do desenvolvimento da carenagem de acrílico e da coroa gigante (que já está em sua terceira versão, feita em aço), também pensaram em outras condições que pudessem ajudar em termos de aerodinâmica, ganho de velocidade e segurança.
Evandro enumera: “Todos os rolamentos da bicicleta são de cerâmica, que não têm atrito e suportam velocidades maiores. A roda da frente é de alumínio, mais pesada e, portanto, mais estável do que uma de carbono. Os raios da roda traseira são achatados e oferecem pouca resistência com o ar”.
Até a roupa que o ciclista usa, desenvolvida pela marca nacional Mauro Ribeiro Sports, foi pensada para cortar o vento, proporcionando um ganho de 4 km/h. Os pneus utilizados são o Grand Prix 4-Season, da Continental, que possuem camadas intercaladas de borracha e kevlar e são a última palavra em matéria de segurança. “Você pode passar por cima de cacos de vidro e de pedras que eles não furam”, diz Evandro, que aos 39 anos de idade ainda segue o treinamento regrado de um ciclista profissional, fazendo séries para pernas na academia e girando centenas de quilômetros por semana.
Em novembro, quando os juízes do Guinness Book estiverem presentes, o trânsito de veículos na rodovia ficará suspenso por 20 minutos. É o tempo que Evandro e Eros terão para acelerar suas respectivas máquinas até 200 km/h – ou um pouco mais. Por enquanto, os treinos práticos em alta velocidade têm sido com a estrada aberta, durante os primeiros raios de sol. Nessas ocasiões, eles contam com motociclistas batedores para garantir a pista da esquerda livre.
Pelo menos Evandro não precisa mais andar grudado em carretas. Agora ele também usa um capacete e não tira as mãos do guidão. Está focado. Quem o conhece bem, como o mineiro Cassio de Paiva Freitas – dono de um dos maiores currículos no ciclismo brasileiro de todos os tempos e com quem Evandro competiu na Europa –, sabe de seu potencial para acelerar em cima da bike. “Acho que pedalar no vácuo é uma manobra que exige muito cuidado, mas Evandro tem plena consciência do que está fazendo”, diz Cassio.
Nada que impeça, porém, o curitibano de receber uma avalanche de comentários negativos cada vez que um de seus filmes vai ao ar. “Isso não é ciclismo, mas uma imprudência que nem deveria ser divulgada”, costumam dizer os que desaprovam sua atitude.
No dia em que pedalou a 184 km/h, havia amigos presentes, que filmaram e, em seguida, compartilharam o vídeo nas redes sociais. Poucas horas depois, enquanto almoçávamos em um restaurante em Curitiba, Evandro sacou o celular do bolso e entrou no Facebook. “Já são quase 200 mil visualizações!”, constatou rindo, quase não acreditando.
“Acho que nem o cara mais treta do Tour de France da atualidade tem essa audiência”, exagera. “Quando tivermos em mãos um papel carimbado pelo Guinness Book, até a Red Bull vai querer falar comigo. Pode ser que eles me peçam para bater novamente esse recorde na pista do aeroporto de Dubai”, sonha. Talvez Evandro já estivesse pensando como um ator que assina seu primeiro contrato milionário em Hollywood.