Por Bruno Romano
O CANAL HAVAIANO DE KA’IWI SEPARA AS ILHAS de Molokai e Oahu em quase 50 km de mar aberto. O jeito mais divertido de atravessar de um lado para o outro é aproveitar o embalo de uma tradicional competição anual, a Molokai 2 Oahu. Ela reúne em um mesmo destino a nata mundial de esportes como paddleboard e stand-up paddle. A última edição da prova, em julho de 2016, também marcou a realização do sonho do multiatleta brasileiro Jonas Letieri, 31, cinco anos depois de um acidente quase fatal, que lhe deixou sem os dois antebraços. Pelas águas havaianas, enquanto a maioria dos atletas não via a hora de chegar, Jonas pensava exatamente o oposto: “Não queria que aquela remada acabasse nunca, eu ficaria ali para sempre”.
Surfista desde criança e amante de vários esportes, do skate e bicicleta ao kung fu e a capoeira, Jonas quase perdeu a vida em uma bobeira. Durante um trabalho voluntário, instalando uma placa para a igreja que frequenta, não percebeu a proximidade da fiação de alta tensão e sofreu um poderoso choque de 13.800 volts. Sobreviver ao acidente o levou a um intenso processo que culminou em uma rotina ativa e inspiradora. Hoje, ele é capaz de cumprir desafios como domar seu SUP e remar por seis horas sem parar na arriscada travessia havaiana, que recebe o carinhoso apelido de “canal dos ossos”.
Sua remada em Molokai começou pra valer há pouco mais de três anos, na Battle of the Paddle, uma importante competição da cena que desembarcou pelo Brasil no fim de 2013. Era apenas a segunda prova de SUP da vida de Jonas, na modalidade race, mas ele já arrancou um vice-campeonato na sua categoria. O feito chamou atenção de Candice Appleby, norte-americana campeã mundial de SUP race em 2015. Candice decidiu conferir tudo mais de perto, conversou com Jonas e, logo depois, já ligou para Anthony Vela, seu antigo treinador e atual mentor de Jonas, compartilhando o que tinha visto. A presença dos gringos trouxe um empurrão fundamental. Outro apaixonado pelo esporte, Mark Pikard, dono do complexo aquático Kelly’s Whitewater Park, em Idaho (EUA), também se encantou com a história, a ponto de bancar a ida de Jonas para o Payette River Games, um festival esportivo que inclui provas de SUP em corredeiras, onde o brasileiro marcou seu território de vez.
Durante uma bateria acirrada do Payette, contra atletas muito mais experientes e sem nenhuma “deficiência”, uma enxurrada d’água em uma curva derrubou a todos, menos Jonas. O público foi ao delírio. Dentre eles, Jim Terrell, competidor de canoagem pelos Estados Unidos em quatro Olimpíadas e dono da Quickblade Paddles, marca referência mundial na fabricação de remos – um verdadeiro figurão do esporte, tão focado no que faz quanto brincalhão, que atualmente costuma chorar quando fala de Jonas. Resumindo, poucos meses depois de Jonas decidir construir um bizarro remo artesanal no quintal de casa, ele passou a ter uma gigante do assunto desenvolvendo algo inovador e específico para ele, sem falar em um novo incentivador que ajudaria a bancar seus futuros projetos, como a prova em Molokai.
Jim mergulhou realmente fundo na história. Ele próprio decidiu imitar os movimentos de Jonas no centro de treinamento da Quickblade, na Califórnia (EUA), onde uma inovadora piscina com uma estrutura fixa central faz uma avaliação precisa de técnicas de remadas. Foi Jim que desenvolveu um protótipo dois meses depois do primeiro encontro com Jonas. “Na verdade, ele me ajudou muito mais do que eu ajudei ele”, diz Jim, emocionado. “Só ao ver o que ele faz em um dia normal inspira qualquer um: a sua força de vontade e as suas habilidades mandam para os ares a sua suposta deficiência”, conclui.
É uma boa hora para trazer à história o incentivador inicial de tudo isso. Luiz Roberto de Góes Ramos criou o filho Jonas sobre as ondas, arte da qual dominava. “Quando conheci o surf sabia que era isso que queria fazer para minha vida, foi uma paixão que já nasceu arrebatadora”, revela seu pupilo. Criado na infância em Santos, Jonas seguia uma rotina itinerante, mudando de cidades graças ao trabalho do pai de representante comercial. Da adolescência em Salvador (BA), a família rumou para Cabo Frio (RJ) onde se estabeleceu há cerca de dez anos. Além de Jonas, as outras herdeiras de Luiz, Kalyana e Shayane também remam e surfam, assim como a matriarca da família, Gisele Letieri. E foi no próprio quintal da nova casa, no litoral fluminense, que Jonas decidiu dar a volta por cima tentando surfar de novo depois do acidente.
Surf no pé não faltava, o problema era dropar. Depois de um ano inteiro de batalha e tentativas frustadas, veio um click. “Eu estava andando em casa e achei um pedaço de cano quebrado”, lembra. “Decidi montar um remo adaptado e saí pedindo dinheiro para todo mundo que conhecia pra comprar um SUP, sem nem mesmo saber se aquilo ia dar certo”, relembra, rindo. A ideia maluca tinha sentido. Jonas voltou a pegar onda com um stand-up e carimbou assim seu novo passaporte para o mundo.
MUITA GENTE JÁ CONTOU A TRAJETÓRIA DE JONAS, que brilhou em programas de TV aberta divindo suas façanhas. Todos falam, com razão, sobre a sua enorme superação pessoal e a sensação geral de recompensa quando corremos atrás do que queremos. Um reconhecimento mais do que merecido. Faltou apenas dizer que ele é mesmo um super atleta. Se ainda duvida, basta ouvir Anthony Vela, experiente waterman norte-americano que decidiu abraçar a causa e treinar Jonas na Califórnia como parte da equipe Performance Paddling.
Foi por ali que o brasileiro se preparou para a Molokai 2 Oahu, treinando duro e competindo em provas durante o ano passado – e é para lá que ele parte novamente, em abril, para uma nova e intensa temporada. “Muito mais do que um treinador, ele é hoje um dos meus grandes parceiros e amigos. Viramos irmãos”, fala Jonas sobre Anthony. A recíproca vem em dobro. “Ele não apenas vive a vida: ele celebra cada dia e curte muito tudo o que se propõe a fazer”, conta Anthony. “Quem passa por coisas assim e dá a volta por cima tende a ser uma pessoa realmente extraordinária, e Jonas segue essa linha rara de indivíduos”, reflete.
Quem cruza com Jonas no mar também costuma concordar com Anthony. “Cara, eu estava muito triste hoje, mas só de te ver surfando, passou”, ouviu Jonas de uma mulher em Cabo Frio. “Perder hoje me mostrou como tenho que treinar mais, foi uma honra”, escutou de um competidor em Ibiraquera (SC), em uma das etapas do brasileiro de SUP race de 2016, no qual Jonas fechou a temporada na quinta colocação geral da categoria open, entre 80 atletas. “Como foi bom perder pra você. E como é bom estar aqui”, declamou outro competidor durante o The Columbia Gorge Paddle Challenge, um desafio no Oregon (EUA), onde Jonas é o atual campeão da open – as provas não costumam ter classes exclusivas para atletas com necessidades especiais.
“Para ser bem sincero, também tiveram vários dias nessa trajetória que não foram nada fáceis, mas de alguma forma aprendi a transformar isso em incentivo”, conta, sobre a dificuldade em conseguir apoios e patrocínios. Hoje, além da Quickblade, conta com a marca Mistral e o Kelly’s Whitewater Park, e ainda segue fazendo trabalhos pontuais de design gráfico, sua profissão original. “Já recebi muitos tapinhas nas costas antes de chegar até aqui”, desabafa. “Às vezes eu desanimava, mas todo esse entusiasmo está no meu coração, e eu sempre comprei a minha briga, não ia desistir de jeito nenhum até dar certo”.
Uma reviravolta e tanto, que começou em um período bastante sombrio. Quando suas mãos grudaram à estrutura metálica que ele segurava e literalmente pegaram fogo em 2011, Jonas pediu exatamente por mais uma chance para viver tudo isso – enquanto você lê essas linhas, ele finaliza uma biografia, “Segunda Chance”, escrita e ilustrada por ele mesmo. Lá atrás, no momento do choque, ele não perdeu a consciência e focou os pensamentos na tal segunda chance. De volta à vida normal, no entanto, nada foi simples.
“Eu me sentia um inútil por não conseguir fazer coisas básicas sozinho, e a depressão me pegou em cheio”, recorda. Dois meses depois da alta no hospital, partiu para o topo de dunas perto da sua casa em Cabo Frio para pensar na vida e acabou desabando no choro. “Depois de chorar muito, vi um pôr-do-sol incrível na minha frente, aquelas dunas, toda a natureza ao meu redor, e algo mudou em mim: eu simplesmente não podia desperdiçar aquilo”, conta. Daí em diante, passou a levar a vida que sempre quis ter. Descendo das dunas, se inscreveu imediatamente em provas e se tornou de vez um atleta.
Na rotina atual, Jonas usa próteses biônicas que facilitaram muito a vida. Um esforço que começou com rifas de um real e ganhou corpo chegando a somar apoio de personalidades do esporte como o jogador de futebol Romário e o lutador de MMA Anderson Silva. Sobre usar próteses também na remada, a ideia por hora está descartada. Os testes mostram que Jonas é capaz de criar tração e potência. “A gente rema com o corpo, não exatamente com as mãos”, explica. “Eu posso não ter o mesmo ângulo de remada, claro, mas consigo gerar a mesma explosão”, segue.
Em outras palavras, o que muita gente achava impossível há pouco tempo, hoje é o ponto de partida de uma jornada bem maior. Além da travessia em Molokai, Jonas também completou a exigente 11 Cities, clássica prova de SUP por etapas em canas fluviais da Holanda, experiência de 2016 com cerca de 220 km que ele chama de “dolorida”. Tudo tem servido de preparação para a grande empreitada, em 2018, a Yukon River Quest, uma insana competição autossificiente (a mais longa do mundo na categoria SUP Race), também dividida em trechos, que se espalha por 715 km no noroeste canadensa, na divisa com o Alasca.
Não para por aí. Já está na agenda cair no mar de Maui, no Havaí, para surfar ondas grandes do naipe da temida Jaws, desafio para qual o brasileiro já se prepara há três anos. Locais do pedaço aprovam a ideia, como o waterman havaiano Kai Lenny, uma das maiores referências da água salgada – de travessias de SUP a ondas gigantes passando por rolês de kitesurf em tempestades. Na última visita a Molokai, Jonas remou ao lado de Kai e outras feras do assunto e pegou algumas dicas valiosas. “Senti que os caras me recebem como um atleta e não como um coitadinho”, conta, provando que ninguém mais duvida de seus planos, muito menos ele. “Até por que, se derem mole, vão acabar ficando pra trás”, se diverte.