Por Mario Mele
“LUISÃO METE O PASSO, Luisão mete o passo!”, se esgoela Zanata, colocando meio corpo para fora do carro que, naquele momento, está emparelhado com um pelotão de 142 ciclistas que avançam pela Marginal Pinheiros, em São Paulo, a mais de 60 km/h. É a narração ao vivo do Rachão do Milão, uma corrida de bicicletas totalmente informal e cuja primeira edição aconteceu em dezembro pelas duas principais vias expressas de São Paulo: as Marginais Tietê e Pinheiros. “Luisão” é Luis Amorim, 38, pentacampeão brasileiro de ciclismo contrarrelógio e o maior vencedor da história do país na modalidade. Na hora do “pega”, ele tentava uma fuga do pelotão para se consagrar no Rachão. “Zanata” é Roberto Zanata, 38, dono de uma oficina mecânica automotiva na capital paulista e um doente por ciclismo. Natural de Aracaju, ele começou a pedalar no começo dos anos 1990, época em que competiu na Copa Norte Nordeste. Hoje é mais conhecido como o cara por trás do Rachão do Milão. Além de narrador, faz as vezes de cinegrafista e diretor de prova.
Do banco do passageiro, Zanata filma tudo com seu celular, ao mesmo tempo que anuncia as tentativas de fuga do pelotão. Sem economizar nos palavrões – que acentuam sua admiração ou revolta, dependendo da atitude de cada atleta na tentativa de vencer –, ele ainda instrui o motorista. “Cola no pelotão!”, ordena, quando o Rachão chega finalmente ao último de seus 130 km (três voltas completas nas duas Marginais). “Agora é guerra, não tem mais volta!”, quase surta.
O ritmo (ou o passo, como se diz no ciclismo de estrada) aumenta, e as primeiras colocações vão mudando em questão de segundos. O inconfundível muro do Jockey Club de São Paulo começa a passar a milhão no plano de fundo. Depois de manterem uma média de velocidade de 60 km/h, os ciclistas atingem 75 km/h no plano. Todos querem colocar a mão nos R$ 1.000 de premiação para o campeão.
Os competidores são amigos de Zanata, que chama cada um pelo nome ou pelo apelido. “Verinaldo, você está levando o Chamorro, porra!”, ele berra para alertar o primeiro sobre o vácuo sorrateiro que Francisco Chamorro, argentino radicado no Brasil e lenda viva do ciclismo paulistano, pegava colado na roda do paulista Verinaldo Vandeira (para quem não entende muito do esporte, ao se aproximar da roda traseira do ciclista da frente, o atleta “pega o vácuo”, conseguindo pedalar rápido sem fazer o mesmo esforço de quem está com a cara no vento). Em um racha de bicicletas, vale tudo. Todos ali são profissionais de elite e, em matéria de pilotagem, sabem bem o que estão fazendo – por isso se arriscam em estratégias duras e manobras muitas vezes perigosas. Em 2015, Verinaldo chegou a liderar o ranking nacional, além de conquistar a Copa Rio de Janeiro de Ciclismo. Chamorro é tetracampeão da Copa América e, em 2016, venceu provas bem disputadas no Brasil, entre elas o Rachão do Milão, a mais clandestina de todas e, ironicamente, uma das poucas com premiação em dinheiro.
Em geral, a sede de vitórias resulta em chegadas emocionantes nesse esporte. Sem exageros, a do Rachão foi tão acirrada como uma etapa plana de um Tour de France ou de um Giro d’Italia. E a narração não foi menos intensa. “Chamorro, você é o Poltergeist do sprint. Sensacional!”, Zanata dizia empolgado, tentando achar em seu vocabulário uma palavra que pudesse descrever o ataque sobrenatural do argentino, que usou da experiência como sprintista para atacar e selar a vitória nos últimos metros. Salomão Ferreira e Maurilio Alves “Pavarotti”, outros dois nomes de peso no ciclismo nacional, ficaram em segundo e terceiro, respectivamente. Antes de subir no pódio – sim, apesar de ser uma prova clandestina, o Rachão do Milão teve cerimônia de premiação –, Pavarotti cantou a bola. “Nós, ciclistas, também precisamos de dinheiro. Hoje você corre o calendário inteiro da Liga Santista de Ciclismo, por exemplo e, no final, a única coisa que leva para casa é uma medalha”, diz. Para Pavarotti, que já foi campeão paulista de montanha e, no ano passado, também venceu a Volta do ABC, essa é uma realidade que só piora a cada ano. “Vejo premiações boas em dinheiro rolando em outros esportes, mas parece que os dirigentes do ciclismo não estão nem aí para os atletas.”
ZANATA JURA QUE o Rachão do Milão surgiu como uma ideia para hastear a bandeira do ciclismo. “Foi o jeito que encontrei para divulgar esse esporte que anda a meio mastro no Brasil há algum tempo”, explica. Como faria isso, ele descobriu há menos de um ano. Coisas do destino… Depois de se submeter a uma cirurgia na mão direita para uma correção no túnel do carpo, ele teve que amargar dois meses fora da bicicleta. Na segunda semana de molho, porém, já não aguentava mais ficar em casa e resolveu acompanhar o treino do Pelotão do Jóquei do banco do passageiro do carro de apoio.
O Pelotão do Jóquei é um tradicionalíssimo grupo de ciclistas calejados que gira forte todo domingo pelas Marginais paulistanas. Trata-se de um treino de alto nível, muitas vezes com escapadas e atmosfera de prova, que rola há pelo menos 30 anos. Quando ciclistas se juntam, por mais amigos que sejam e por mais velada que a disputa pareça, o lado competitivo sempre se aflora – e não é raro um rachão começar do nada. No futebol, seria algo compatível ao “coletivo”, ou o jogo que acontece religiosamente depois de cada treino. “Para nós, profissionais, esses rachões são interessantes porque simulam uma corrida de fato”, diz o paulista Jean Carlo Coloca, 42, que por inúmeras vezes liderou o ranking nacional de ciclismo e competiu no Rachão do Milão. “Ainda mais atualmente, que estamos carentes de provas”, completa.
Enquanto aguardava a liberação do departamento médico, Zanata achou que acompanhar o pelotão de perto, mesmo que de dentro de um carro, seria uma boa chance de absorver um pouco da experiência de ciclistas como Coloca, Chamorro e Luisão, que costumam andar na frente. “A princípio, peguei emprestado uma câmera profissional para tirar umas fotos, mas acabei sacando meu celular para filmar e a narrar o que via”, lembra. Ao postar os divertidos vídeos nas redes sociais, ele não esperava receber tantos elogios. Quando voltou a pedalar nos treinos longos nas Marginais, passou a ser requisitado. “Os ciclistas me escalavam: ‘Pedala a primeira volta porque na segunda você vai só filmar’”, conta.
De repente, seu celular e sua voz viraram a faca e o queijo, e ele só precisou ligar os pontos: ciclistas amam corridas, ainda mais as sem limites de idade. E os ciclistas do Pelotão do Jóquei, além de serem seus amigos, estão entre os melhores do Brasil. Portanto transformar esses treinos em uma disputa valendo grana significaria inventar um jogo onde ninguém gostaria de sair perdendo. Em outras palavras, o dinheiro seria a lenha para acender um emocionante combate travado metro a metro, roda a roda. “Também vejo isso como uma forma de protesto, de ir na contramão de eventos que cobram uma fortuna de inscrição, mas que não dão um centavo de premiação”, diz Zanata, indignado.
Foram três meses de preparação. Para mostrar que estava determinado, decidiu colocar R$ 1.000 do próprio bolso. Mas não demorou em travar parceria com os empresários Arthur Audi e Vera Regina Lang, amigos do ciclismo que pensam como ele e que entraram com mais uma parte em dinheiro, além de ajudar a bancar os troféus. “Fiz as contas e decidi aumentar a premiação: R$ 1.000 para o campeão, R$ 300 para o vice e R$ 200 para o terceiro colocado.”
O NOME “RACHÃO DO MILÃO” é um trocadilho com a brasileira “Corrida do Milhão”, o GP com premiação especial da Stock Car que acontece todo ano, desde 2008. Outra semelhança é a participação de somente atletas de elite. Não importa a idade, mas tem que ser ciclista de ponta. “O ‘farrapeiro’ [gíria para atletas pouco experientes] é um problema: ele cai, derruba os outros e destrói o pelotão”, justifica Zanata, referindo-se àqueles que pedalam casualmente e não têm tanta manha em andar em alta velocidade em um pelotão. Outra preocupação era manter o caráter “rachão”. Se decidisse formalizar uma competição, teria que arcar com uma lista de procedimentos, como seguro-atleta e fechamento prévio das vias. “O Rachão do Milão é um pedal entre amigos, e não um evento federado, homologado pela UCI, apesar de todos ali serem ciclistas prós. É só para Talibã”, defende Zanata.
Toda a logística ficou a cargo de outros ciclistas e amigos, que trabalharam voluntariamente. Ao todo, seis carros de apoio e cinco motos cuidaram da segurança, defendendo o pelotão durante as 2h50 que durou o Rachão. “Na chegada, eles ainda conseguiram fechar todas as faixas da Marginal, impedindo que um motorista desavisado pudesse cruzar a rota dos ciclistas e causar um acidente”, diz Luis Amorim, o atleta descrito no início desta reportagem. Segundo ele, que terminou o Rachão do Milão em quinto lugar, é importante haver mais eventos desse tipo no Brasil. “De 2009 para cá, venho testemunhando o enfraquecimento do ciclismo em nosso país: as competições estão desaparecendo do calendário e as premiações em dinheiro se tornaram cada vez mais raras.”
Embora essa “brincadeira insana do ciclismo” (como o próprio Zanata define os rachões) venha ganhando cada vez mais audiência de público e adesão dos melhores atletas do Brasil, sua aceitação está longe de ser unânime. “Fico admirada com tamanha irresponsabilidade desses eventos”, diz Luisa Jucá, diretora de provas como o GFNY Brasil (que acontecerá pela primeira vez em agosto), a Copa Rio de Ciclismo e o Desafio Tour do Rio – este último, que rolou em novembro de 2016, premiou o campeão da categoria elite com R$ 1.200. Ela segue: “Considero essa postura inadmissível para um esporte de alto risco como o ciclismo. Ciclistas lutam por educação e respeito no trânsito, portanto seria como aceitar que carros invadissem as ciclofaixas e ciclovias.”
Recentemente, Zanata foi convidado para ser o narrador oficial da Volta do Ceará, marcada para março. A prova conta pontos no ranking brasileiro de ciclismo de estrada. Ele acredita que, em 2016, nenhuma corrida de bicicletas no Brasil tenha sido tão disputada quanto o Rachão do Milão, e que neste ano não será diferente. Confortável na posição de “fora-da-lei”, ele corre para conceber a segunda edição de sua corrida clandestina, a qual, ao que tudo indica, deve acontecer em junho. “É uma janela boa do calendário competitivo. Já estamos em contato com lojas e bicicletarias, gente que viu o Rachão na mídia e agora quer fazer parte de alguma forma”, garante. O apoio mais importante ele ainda tem em peso: o do pelotão.