Por Bruno Romano
UM CALOR INFERNAL toma conta do interior de Minas Gerais. O ar chega quente e a terra ferve. O suor já domina o corpo dos atletas, antes mesmo de a prova começar. Na linha de largada, mountain bikers sedentos pelos 54 km de trilha que têm pela frente tentam ignorar o bafo, como quem dá de ombros ao sofrimento das próximas horas. Thiago “Brou” Drews é um dos alucinados que largam mordendo os dentes e avançam babando no primeiro pelotão. Sobe e desce piramba. Desvia, freia, acelera e pula sobre pedras e mata-burros. Tudo vai bem, dentro do roteiro perfeito de armadilhas e superações típicos do esporte, até um estalo quebrar com o viciante barulho dos pneus comendo barro. O salto mal calculado destrói a roda traseira de Thiago. Ainda faltam 32 km. Desistir nem passa por sua lista de possibilidades. Na verdade, depois do susto, surge ali uma chance perfeita de encarnar “Bruto”, um curioso, divertido e intrigante personagem de carne e osso – o alter ego fiel desse entusiasmado multiatleta amador mineiro.
Modo bruto acionado. Enquanto carrega a bike pelas trilhas próximas a Governador Valadares (MG) do jeito que dá, ele recebe palavras de incentivo, depara com gente oferecendo ajuda e até com competidores dispostos a lhe darem suas próprias rodas. Brou recusa, agradece e respira fundo. Quando a situação ultrapassa o limite do desconfortável (e o calor da largada já se multiplica), ele decide inventar uma espécie de mala com um pneu para carregar a magrela. Faltando 7 km, um motoqueiro da organização do evento lhe aplica um xeque-mate, anunciando o fim da linha. O esforço é notável, mas é hora de subir na moto e ir em segurança para a chegada. Ordem direta da organização. “Nem pensar!”, ouve de volta. O enviado motorizado se comove com a cena e acata a decisão do mártir, mesmo sem ter a mínima ideia do motivo de aquele sujeito insistir em carregar tamanha cruz. A resposta veio algumas horas depois. Na chegada, atletas, torcedores, adultos e crianças o esperavam para celebrar o feito a seu lado. “Você é bruto mesmo!”, gritavam para o ídolo improvável.
“Aquela foi uma experiência incrível e transformadora na minha vida”, conta Thiago, aos 39 anos, dois a mais que na época do perrengue no interior mineiro, quando logo percebeu que sua atitude havia influenciado até mesmo o vencedor da prova. Devido à alta temperatura, o líder da competição estava decidido a abandonar o percurso. Mas aquele mesmo motoqueiro o avisou, em determinado momento, que um maluco vinha carregando a bike quebrada lá nas costas, há horas. Assim o futuro campeão logo decidiu seguir em frente. Daquele dia para cá, a fama de Thiago não parou de crescer, seguindo o ritmo das loucuras do “bruto” Brou. O determinado ciclista amador, dono de uma academia e de uma farmácia em Belo Horizonte (MG), educador físico, especialista em nutrição esportiva e agora palestrante e organizador de provas é também um novo fenômeno da internet. Nos últimos tempos, vem criando uma legião de fãs dispostos a seguir, apoiar e compartilhar, na vida virtual e real, as suas aventuras.
São imagens tremidas, gravadas à mão pelo celular, que dão vida aos espontâneos registros de Brou em um perfil de Facebook que quebrou a marca de 86 mil seguidores no último mês de fevereiro. As cenas também são postadas em um canal no You Tube e em uma conta de Instagram com cerca de 47 mil pessoas de audiência. Os números de visualizações e a velocidade com que tudo se espalha impressiona – ele jura nunca ter colocado grana. “Não fico pensando muito antes gravar, as coisas vêm na hora”, conta Brou. “Se 10% dos meus seguidores conseguirem captar a mensagem de positividade que quero passar, para mim já está bom.”
Os vídeos de fato são divertidos. Pelo menos essa é a opinião da maioria das pessoas. Mas seu sucesso-relâmpago, em tempos de explosão de blogueiros ligados a temas de saúde com conhecimento, no mínimo, questionável, também levanta várias perguntas. Quem é esse cara, e o que ele quer com isso? É tudo verdade mesmo, ou não passa de puro marketing pessoal? Ou ainda: será que uma febre das redes sociais pode realmente tirar milhares de pessoas do sedentarismo para viver uma vida mais saudável?
Brou acabava de concluir um treino insano por trilhas mineiras, nos arredores da capital, e estava se preparando para o segundo turno de atividades em sua academia quando atendeu a reportagem da Go Outside, para ajudar a desvendar essas e outras questões. “Só minha mãe me chama de Thiago”, começa, contando que o apelido, junto de toda essa onda de “bruto” e “brutalidade”, dois de seus jargões preferidos, vem da época em que ele mesmo usava o termo para falar com a galera que curtia puxar ferro. Aos 20 anos, bastante magro, ele decidiu focar na musculação. Os anos seguintes ficaram marcados por uma legítima fase de “marombeiro”. Os quilos de músculos acumulados, no entanto, o afastaram de uma antiga paixão de criança: a bike. “Foi naquela época que tomei a maior e mais sábia decisão da minha vida, abrindo mão da vaidade e do que achava ter conquistado em anos de academia”, lembra.
Em um canto esquecido de casa, Thiago resgatou uma bicicleta empoeirada e aceitou o convite de um amigo dos velhos tempos para encarar uma prova. O resultado foi um fracasso, exatamente o contrário do que seu suposto físico de superatleta indicava. Ele logo culpou a bike antiga pela má performance. Vendeu uma moto, juntou uma grana e investiu em um modelo top para encarar um novo desafio. Mesmo assim, acabou em último lugar em sua categoria. Mércio Dias, 40, o tal amigo das antigas, lembra bem daqueles tempos. “Começamos a andar juntos todos os fins de semana, e eu o incentivava, pois via que ele levava jeito. Sem falar que era ótima companhia, aquela diversão garantida sempre soltando frases engraçadas com jeito carismático, emotivo e criativo que é só dele”, conta o parceiro de 25 anos, da época em que a dupla encarava com bikes de aro 20 a mítica Perdidas, uma trilha casca grossa local. “Ele sofria para andar comigo na época, mas sempre foi raçudo, e cada vez mais foi mudando o estilo de vida em função da bike”, diz Mércio, três dias depois de a dupla ter se reunido novamente para 14 horas de giro pela Serra do Cipó (MG), com uma única parada.
Longas distâncias é realmente o estilo de pedal que mais combina com o seu jeito “bruto” de ser. É o caso de uma recente ultra de MTB na França, de 120 km, com uma soma absurda de desnível, da qual Brou se consagrou campeão. Assim como as “clássicas” nacionais MTB 6h (dois títulos), MTB 12h (mais dois troféus) e MTB 24h, onde ele acumula três vice-campeonatos seguidos, que moralmente valem quase como títulos também, já que o campeão acabou sendo punido e afastado da modalidade na última edição por uso de doping. “Gosto dessas provas porque me lembram das coisas simples da vida, como agradecer por ter saúde ou simplesmente se deliciar com um prato de macarrão”, diz Brou.
Na anual ultramaratona de mountain bike por etapas Brasil Ride, prova referência em grandes desafios no Brasil e no mundo, Brou se sente em casa. Na luta por um top 10 que bateu na trave na edição 2016, ele dividiu com Geraldo Rodrigues, seu amigo “Geraldin”, de 34 anos, os perrengues nas trilhas da Bahia. “São momentos únicos e eternos”, afirma o parceiro de pedal. “Dividir essa magia, como gosto de chamar, é algo de muito valor na minha vida, e a energia que o Brou passa é espetacular e nos faz muito bem”, continua. “Acho que esse é o segredo de ele estar conquistando tanta gente: passar a mensagem que a boa saúde de uma pessoa só depende dela, como a capacidade de cada um de realizar coisas antes inacreditáveis”, conclui Geraldo.
“BRUTALIDADE AFLORADA. Sem fingimento. Bora treinar, porque ‘tá’ todo mundo treinando. Ninguém quer ser feio!” Se você entendeu alguma das últimas frases, é porque já domina o “brutoguês”, o idioma típico de Brou. Caso contrário, basta assistir a alguns dos seus vídeos para sacar do que se trata e, quem sabe, participar do que ele chama de “brutalidade compartilhada”. É claro que a brincadeira pode não contagiar a todos. Mas a tal brutalidade está longe de ser da boca para fora. No fim de 2016, por exemplo, para agradecer ao nascimento de sua filha com saúde, Brou pedalou 526 km ininterruptos de Belo Horizonte (MG) até Aparecida (SP), em pouco mais de 20 horas. Detalhe número 1: sem desclipar as sapatilhas dos pedais, se alimentando em movimento ou em rápidas pausas, ainda sobre a bike. Detalhe número 2: na verdade, essa se tratava da repetição de uma viagem idêntica que ele mesmo já havia feito antes do nascimento da pequena Letícia.
No caminho, Brou recebia o apoio e o incentivo de gente que sabia do desafio pela internet e decidia acompanhá-lo por alguns quilômetros – cena que tem se repetido nos últimos tempos. Momentos como esses são o ápice de uma vida, digamos, “normal” de um sujeito que se desdobra entre os desafios da rotina. Se preferir a mesma explicação em “brutoguês”, Brou diria algo como: “Grandes brutalidades exigem grandes responsabilidades”. Isso significa acordar por volta das 5h30 da manhã e ir dormir lá pelas 23h. Tomar conta de uma academia, dos treinos pessoais e de alguns alunos particulares, além de um segundo negócio e, claro, da própria família. No fim do dia, independentemente de quanto tenha pedalado (às vezes são longões na terra de cinco horas), ele puxa um treino de spinning, atividade que faz há 17 anos.
“Como eu incentivo todos a darem seu melhor e a praticar o bem, preciso estar sempre bem também, não só fisicamente”, conta. “Mas há dias, claro, em que eu acordo cansado ou mal humorado, e aí preciso mudar isso na minha postura, não só como atleta, mas principalmente como pessoa.” Ao que parece, toda a magia da “brutalidade”, que Brou jura ter criado e popularizado de forma espontânea, também se volta contra o feiticeiro. E aí a cobrança vem em dobro. Sua mulher há dez anos, Carol também tem uma vida atarefada. Trabalhando com comércio, enfrenta longas jornadas e plantões de fins de semana. “É claro que preciso abdicar de muita coisa pelo esporte, e é óbvio que sinto saudades quando estou fora competindo, mas faz parte da rotina que escolhi para mim. Por isso me desdobro para honrar todos os lados da história”, conta Thiago.
A família próxima é completada com dois irmãos, José Elias Neto, 37, seu maior parceiro de aventuras, e o caçula Felipe, que quer seguir os passos de Brou e ser educador físico. Disputando lado a lado uma prova multiesportiva anual no Canadá, a Raid Internacional Gaspésie, Brou e Zé foram atrás do titulo em 2016 depois de um terceiro e um segundo lugar nas últimas duas tentativas. “Treinamos demais, porém muita coisa deu errado no dia e a galera estava bem forte, logo acabamos em sexto”, lembra Zé. “Mas a gente evoluiu tanto e deu tanta risada que mostramos um para o outro que podemos ser felizes independentemente da disputa, só pela cumplicidade”, diz o irmão, que há 13 anos também é seu sócio na academia, montada no bairro da Glória, em BH. Zé recorda que na última Olimpíada, no Rio, eles levaram duas horas para sair do percurso de mountain bike porque todo mundo queria falar com Brou. “Eu não conseguiria viver com isso, mas ele gosta e dá atenção a todos.”
Mais do que os perrengues em família, o que une Brou e Zé é a influência do pai, “Vavá”, que moldou o estilo aventureiro da dupla ainda na infância. Vavá buscava os dois na escola, pendurava Brou na traseira de uma moto e levava Zé na parte da frente. O trio partia com uma barraca simples para o meio do mato na Serra do Cipó, onde os pequenos passavam dias soltos na natureza. Outras vezes, Vavá levava os filhos para as trilhas. Ele subia uma longa ladeira na frente, motorizado, e esperava as crias lá no alto, que vinham pedalando em bicicletas de marcha única, com uma laranja descascada de prêmio. “Meu pai é a verdadeira origem da brutalidade”, resume Brou, que lamenta sua perda abrupta há quatro anos, com ótima saúde aparente, após um aneurisma cerebral, um dia depois de terem combinado um pedal juntos. “O que ficou foi o legado, essa doutrina que eu trago comigo e que já tirou muita gente do sofá”, conta.
SEIS DA MANHÃ, 12 de outubro de 2016, dia das crianças. Brou anuncia um desafio em seus perfis sociais e parte de bike rumo à Praça Sete, no centro de BH, com um rolo de ciclismo pendurado nas costas. Cumprindo uma promessa, pedala sem parar por 12 horas, das 6h às 18h, com a missão de reunir brinquedos para crianças carentes. “Foi um sacrifício. E se é para se sacrificar, tem que ser direito”, diz. Resultado da ação? Ao todo, 72 bicicletas e 1.500 brinquedos doados. Uma mulher do Pará, ao ver um post na internet, desceu do aeroporto de Confins, a 60 km dali, pegou um táxi em meio a uma conexão e fez sua contribuição, na cena que mais mexeu com Brou durante o duro dia em cima da bike parada.
Em outras ocasiões, como na prova multiesportiva canadense, o carisma de Brou o fez virar embaixador do evento. Na última edição, ele teve de subir ao palco, pois o organizador queria agradecer seu entusiasmo, que, segundo ele, havia inspirado pessoas da região a aderirem o esporte e a mudarem de vida. “Foi emocionante, mas o problema é que eu ainda não sei adaptar o ‘brutoguês’ para o inglês”, ri. Nessa onda, mensagens como “Brou, sou se fã, você não tem ideia de como seus vídeos me motivam” pipocam na internet.
Como todo mundo que fica famoso nas redes sociais, Brou não está isento de críticas. Há quem prefira comentar falando da repetição cansativa de jargões. “Para que tanta autopromoção?”, reclamam. “No começo, isso me abalava bastante”, confessa Brou. “Agora respondo da melhor forma, pois não divulgo uma ação para me promover, o que quero é buscar esse mesmo espírito nas outras pessoas.” Nem precisaria: seus fãs já fazem o papel de defensores. E, mais uma vez, seus feitos reais embalam e dão força à onda do discurso virtual. Para quem não acompanha ou nunca viu essa história rolando nas redes (mas mesmo assim chegou até aqui no texto), talvez seja uma boa hora de dizer que Brou acumula quase 20 marcas entre patrocínios e apoios. Entre elas estão empresas como a fabricante de bikes Cannondale e a especialista em artigos outdoor Kailash. Além da óbvia visibilidade de suas postagens, Brou parece conseguir conversar de forma íntima e contagiante com amadores, sobretudo novos praticantes e, de certo modo, consumidores de esportes outdoor em potencial.
“Isso também mexeu bastante comigo: será que consegui tudo isso por ser ‘famosinho’ na internet?”, indaga, no melhor estilo mineiro. “Aí fui surpreendido ao conhecer, olho no olho, as pessoas por trás das marcas que hoje me ajudam”, diz. “Essas pessoas não apenas vêem em mim a chance de mostrar suas marcas; na verdade, elas visualizam o crescimento do esporte outdoor no Brasil”, diz. De fato, Brou sequer é um atleta de altíssima performance. Se enquadra mais no estilo “amador de elite”, unindo longa experiência e conhecimento durante os anos em meio a uma enorme bagagem de desafios e competições. É claro que ele próprio já percebeu seu potencial independente. Ao agitar uma inédita prova de mountain bike no Mato Grosso do Sul, por exemplo, fechou em cinco dias 500 inscrições. A expectativa é cravar mil pessoas na linha de largada no próximo mês de maio.
“Com certeza sempre haverá gente falando mal, dizendo que ele faz tudo isso para ganhar dinheiro, mas não é bem assim”, defende o irmão Zé Elias. “Brou está colhendo o que plantou ao longo de sua vida sendo honesto, incentivador, tendo raça e amor ao esporte”, diz Mércio. “Por várias vezes já o vi pagando passagem, inscrição ou conserto de bike para quem precisa, o que acaba até o complicando depois quanto à grana”, conta o amigo de infância. Brou fala das críticas com humor: “Alguns chamam de ‘positivismo em excesso’, já eu acho isso contagiante. A felicidade, está comprovado, te previne de várias doenças.”
Alguns casos que motivam Brou a seguir adiante sequer entram no mundo das mídias sociais. Em uma edição recente da Brasil Ride, o mountain biker português Luís Leão Pinto, multicampeão da modalidade, se aproximou de Brou após a chegada junto do seu parceiro de pedal, o conterrâneo Tiago Ferreira, atual campeão mundial de MTB maratona. Thiago lhe deu de presente a camisa de campeão do mundo. Luís ofereceu sua própria bike como um agradecimento por Brou ter incentivado várias pessoas a pedalar. Brou acabou doando a bicicleta. E não divulgou a ação no Facebook ou Instagram.
“Tem gente que acaba confundindo as coisas, acha que eu fiquei rico e vem me pedir ajuda, só que não é caso”, diz. “Apenas tento mostrar que o caminho da felicidade, assim como a ideia de praticar o bem, é mais simples e fácil de ser encontrado do que se imagina”, explica. Se, no futuro, toda essa visibilidade vai trazer propostas tentadoras, não se sabe. Ele só sabe dizer que isso o faria entrar em mais uma das balanças da vida – como aquela que o tirou da academia e o levou para o mountain bike lá atrás. “Não posso ajudar a vender o que não tem a ver comigo, senão precisaria mudar meu estilo de vida, e isso não faria sentido”, afirma. “Prefiro ser feliz com o que tenho hoje, afinal sou um ‘trilhardário’, um amante das trilhas, preciso mais do quê?”. De nada, Brou, só mesmo seguir bancando o que diz. Mesmo que isso signifique, algumas vezes, levar nas costas uma bike quebrada por mais de 30 km no calor insano de Governador Valadares.
* Matéria publicada originalmente na Go Outside 138, de janeiro/fevereiro 2017.