Passos de gigante

ROLÊ SEM LIMITES: Eberton durante a travessia da Serra Fina

Por Bruno Romano

PARA QUEM CURTE AVENTURA, desafio lançado é desafio aceito. Foi assim que o paulista Eberton Aparecido Santos acabou embarcando rumo à travessia da Serra Fina, na tríplice divisa entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – e considerada a “mais difícil do Brasil”. Pouco importa se a temida descrição da trilha se sustenta; o fato é que o caminho está bem longe de ser brincadeira. Ainda mais se você precisar de muletas para se locomover, carregando a própria mochila cargueira nas costas. Ao lado dos mesmos amigos trilheiros que colocaram “pilha” na missão, Eberton cumpriu no fim de 2016 o desafio em quatro dias (feito inédito para um amputado no país). Sem pódio, troféu ou medalha na chegada, ele levou de prêmio os visuais do Pico dos Três Estados e da Pedra da Mina, quarta maior montanha do Brasil (2.798 metros) e passagem obrigatória por quem encara a Serra Fina.

PIONEIRO: Na tríplice divisa SP-MG-RJ, Eberton celebra um dos trechos expostos e exigentes da travessia da Serra Fina, uma das mais duras do país

Nascido e criado em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, Eberton completou 23 anos no começo de 2017, pouco tempo depois da travessia – e exatos dez anos após um acidente de bicicleta no qual ele acabou atropelado por um ônibus, o que lhe custou a perna direita. Da fatalidade, aos 13 anos de idade, para cá, ele acumula uma vida ativa incansável. Os trekkings e as outras aventuras ao ar livre (de surf, mergulho e canoagem a escalada e canionismo) se unem a mais um punhado de esportes os quais ele domina. Mesmo assim, é bem provável que você ainda não o conheça. Sem problemas, só não duvide de seu potencial com força suficiente para elevar o nível do esporte adaptado no país, sobretudo nas modalidades outdoor.

Até aqui, a maior parte dos desafios de Eberton foram encarados na companhia de muletas – inclua aí uma dúzia de títulos locais e nacionais de futebol para amputados e de natação, além de uma São Silvestre (15 km) e duas meias-maratonas (uma delas em trilha). A outra parte da rotina esportiva tem sido vencida sem nenhum auxílio artificial. Entram na lista vários títulos de jiu-jítsu, contra adversários sem necessidades especiais, assim como diversas escapadas na natureza, nas águas e nas rochas.

Nos últimos meses, ele tem participado do desenvolvimento de uma prótese específica para caminhadas exigentes. Idealizada pela equipe do Instituto de Prótese e Órtese (IPO), pioneiro no tema em um trabalho de 15 anos no país, ela une resistência à água e às irregularidades do piso, em três partes que se completam. O soquete, na fixação com o corpo, é feito sob medida e controla a distribuição geral do peso. A articulação principal, na altura do joelho, possui um sistema hidráulico e atua na versatilidade dos movimentos. Para fechar, a região do tornozelo conta com um rolamento e estrutura de fibra de carbono em lâmina bipartida, o que otimiza o contato com solos acidentados.

DE BOA: Eberton em visita a Vargem Bonita (MG)

Quem explica os detalhes é José André Carvalho, diretor e fundador do IPO, que cuida pessoalmente da evolução de Eberton e de uma gama de pacientes que vai de crianças com deformidades de nascimento ao alto rendimento esportivo, incluindo medalhistas paraolímpicos. Atualmente, o instituto atua desde o primeiro contato com uma prótese até o treinamento para modalidades específicas. Eberton está na fase final de adaptação de um novo modelo. Seu corpo já se adaptou com o formato da peça, inclusive com testes de campo em trilhas duras. O próximo passo é adotar uma prótese definitiva.

“Antigamente, o amputado só procurava uma prótese depois de muito tempo, e esperava-se que o resultado fosse algo ‘mágico’”, explica José, que já lida com esse universo há pelo menos 25 anos. “Na verdade, o processo real é bem diferente: após oito semanas já é possível começar um trabalho para adaptação ao corpo”, completa o fisioterapeuta, protesista e autor de três livros sobre o assunto. Um dos segredos é a ideia de tudo ser personalizado. Angulações específicas para cada pessoa aliadas a novas tecnologias de materiais têm atingido resultados surpreendentes – um caminho totalmente oposto e avesso ao tratamento em massa que domina a lógica da maior parte desse mercado.

O ingrediente que completa o sucesso é totalmente humano. Tanto no tratamento do paciente, com uma prótese sob medida, como na relação do amputado com a novidade. “O objetivo não é apenas vender próteses, mas cuidar da reabilitação, focando na pessoa e em sua reinserção na vida diária e no que ela mais gosta de fazer”, diz José.

DISPOSIÇÃO SEM FIM: O multiatleta de Mogi das Cruzes (SP) se aventurando na escalada na Serra Fina

O sentimento de proporcionar alívio e independência aos outros já cativou o próprio Eberton. Ele está alcançando a metade do curso superior de fisioterapia, atividade a que se dedica em meio aos treinos e as expedições. “Quero poder colaborar com casos parecidos ao meu”, conta. Para quem tem visto sua dedicação de perto, o horizonte parece apontar mesmo para um bom rumo. “O Eberton tem sido colaborativo desde o início, sempre com garra e vontade, fazendo coisas que muita gente não consegue. Para mim, ele é um exemplo verdadeiro de superação”, afirma José.

HÁ DEZ ANOS, próximo a sua casa, Eberton pedalava em um trajeto que estava acostumado a fazer de bike. De repente, um ônibus cruzou seu caminho. Em um segundo, o estrago estava feito. O resgate salvou sua vida, ainda que a amputação de uma das pernas se fez necessária no próprio local do acidente. Mas não demorou muito para ele se reerguer. “Pouco tempo depois, já retomei a bike e os esportes”, lembra Eberton. “Eu já era muito ativo, mas nunca havia sido competitivo até então”, diz.

Nascia naquela época uma relação íntima e especial com a atividade física. Daí para frente, a coisa simplesmente andou sem nenhuma dificuldade. Nesse embalo, ele até aproveitou para criar um novo nome: Eberton “Life”, uma alusão à vida que ele diz “sentir de sobra”. A paixão pela montanha só foi despertada depois, no Rio de Janeiro. Novas amizades o levaram a locais antes desconhecidos. Ao notarem sua enorme disposição, os amigos incentivavam cada vez mais rolês pelo mato. “Meu objetivo hoje já não é competir com ninguém, mas, sim, me descobrir melhor a cada dia”, conta Eberton. Nos próximos planos, estão o desenvolvimento de uma segunda prótese, que ele pretende usar em corridas, no asfalto e nas montanhas, e uma investida no triathlon, agora esporte firmado nas Paraolimpíadas, um novo sonho pessoal.

DETERMINADO: Eberton durante o trekking pela Serra Fina

Para 2017, roteiros cascudos de trekking também estão entre as prioridades, como o monte Roraima, com mínimo de nove dias previstos na aventura. Seu foco em percursos do tipo, para fortalecer o corpo e o espírito, tem crescido. Desde que aceitou a ideia de atravessar a Serra Fina, por exemplo, ele se preparou em trilhas paulistas e cariocas mais pesadas. Gente experiente no assunto, como Rodolfo Guedes, guia local da Mantiqueira e especialista em travessias de grupos na região, tiram o chapéu para o feito de Eberton. Os dois se cruzaram rapidamente no fim da temporada de 2016, quando Rodolfo já levantava acampamento e o jovem se aproximava do vale do Ruah, ponto de parada no trajeto, antes de atacar o alto do Pico dos Três Estados.

“Percebi a chegada de um grupo e reparei entre eles um menino com cara de bem novo. Como ele vinha de muletas, aquilo nos surpreendeu”, recorda Rodolfo. “Para estar ali, ainda mais com tanto peso nas costas, ele já tinha superado a subida do Capim Amarelo, além de vários trechos duros de ‘escalaminhada’. Logo deu pra ver que era um atleta completo”, relata.

TREMENDO VISUAL: Eberton curtindo a vista da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro

Não foi apenas o guia que notou a passagem de Eberton pelo pedaço. No segundo dia de trajeto de Serra Fina – expedição que ele considera até agora a mais desgastante de sua vida –, a trupe que o acompanhava topou com outro punhado de gente no caminho inverso. Uma possível “surra” da montanha levara aquelas pessoas a desistirem da travessia, voltando ao ponto inicial (a essa altura, mais perto do que a chegada). O simples fato de Eberton estar ali, no entanto, mudou tudo.

Ao vê-lo se negar a ir para trás, o tal grupo se sensibilizou. Tocados pela experiência, decidiram ajustar de novo a rota. Eles se uniram e passaram a caminhar juntos. O que aconteceu com Eberton, você já sabe. E o destino dos novos companheiros também já deve imaginar. Todos completaram a travessia. E concretizaram um sonho com um gosto especial de superação.