Heroína improvável

Do dia pra noite, Lael Wilcox, uma desconhecida ciclista amadora do Alasca, passou a dominar o imprevisível mundo das provas extremas de bike

Por Bruno Romano

A VIDA DA MAIS nova rainha do ciclismo de longa distância passa muitos quilômetros longe do glamour. Há quase uma década, a norte-americana Lael Wilcox não tem residência fixa nem trabalho estável. Durante seis meses, esta nativa do Alasca de 29 anos faz bicos para juntar grana para a próxima aventura, junto de seu namorado e parceiro de pedal, Nick. Na outra metade do ano, quando transforma sua bike em casa itinerante, ela não costuma ter a mínima ideia de onde e como vai dormir ou quando será o próximo banho quente. Sua rotina errante alimenta a essência de sua alma aventureira, mas não é exatamente a vida regrada que costumamos encontrar em atletas vencedores.

Desde que Lael conseguiu transportar sua experiência de vida para algumas das provas mais extensas e insanas sobre duas rodas, ninguém parece capaz de detê-la. “Quanto mais tempo estou sozinha na estrada, mais confortável passo a ficar nesta situação”, comenta Lael sobre sua recente entrada no cenário competitivo. Depois de duas experiências difíceis, quando encarou como única mulher uma prova de 1.400 km pelo Oriente Médio ou quando ficou doente em meio à travessia de semelhante distância pela Arizona Trail (tema do filme “Fast Forward”, selecionado para a VI edição do Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit), Lael encontrou a relação perfeita para seguir milhares de quilômetros e ser a primeira a cruzar a linha de chegada.

Em 2015, após uma longa temporada de cicloviagens, ela decidiu pedalar quase 2.500 km do Alasca a Banff, no Canadá, para largar na tradicionalíssima Tour Divide, que segue ao extremo sul dos EUA. Resultado: primeiro lugar entre as mulheres e novo recorde feminino da prova, batendo o anterior por cerca de dois dias (além do sexto lugar geral entre 150 participantes, em plena estreia). No último mês de junho, Lael deixou claro que não foi sorte nem trapaça. Ela superou 65 ciclistas e conquistou o primeiro lugar da Trans Am, uma prova autossuficiente de 4.400 milhas (cerca de 7 mil km) atravessando dez estados dos EUA de oeste a leste.

Seu tempo de prova – 18 dias e 10 minutos – é a segunda melhor marca em três anos de evento. Explicando de outra forma, ela não apenas superou todos os homens, como também bateu o recorde feminino do percurso em dois dias e meio. Lael pedalou uma média de 380 km diários, dormindo poucas horas em um saco bivac e comendo o que encontrava no caminho. Para desvendar esta trajetória meteórica, falamos com a nova heroína da modalidade, tentando entender como funciona a cabeça (as pernas e o coração) desta jovem desbravadora que parece só ter começado sua jornada.

PRAZER, BIKE
“Há dez anos meu namorado Nick me deu uma bicicleta para que eu pudesse pedalar por 6 km até o trabalho. Não demorou muito para esticarmos, juntos, esta distância pela cidade. Lembro bem quando decidi visitar minha irmã a 80 km de onde morávamos, pedalando, claro. Foi neste dia que decidimos pegar a estrada e girar lado a lado pelos Estados Unidos. Economizamos dinheiro e partimos da divisa do Alasca até a Flórida. Trabalhamos por três meses no local da chegada para levantar mais grana e voltamos de bike para casa. Estamos nessa desde então. Já foram mais de 150 mil quilômetros pedalados em 30 países.”

VIDA NÔMADE
“Nós costumamos procurar trabalho para juntar o dinheiro necessário para a próxima viagem. Normalmente, acho emprego em restaurantes e o Nick em bicicletarias. Não temos mais casa nem carro, e há apenas uma ou outra despesa pequena para arcar. Acampamos na maior parte do ano. Eu me sinto totalmente realizada só pelo fato de perseguir meus sonhos.”

NOVATA CAMPEÃ
“O lance de competir mesmo só começou em abril de 2015, quando me inscrevi no Holyland Challenge, uma prova de 1.400 km conectando Israel de norte a sul. Todo mundo achou que eu estava brincando quando apareci na largada com tênis, camiseta e bermuda, sendo a única mulher da prova. Quase riram de mim. Só que, no fim do primeiro dia, eu já estava quase 40 km na frente do primeiro cara. Naquela hora decidi que, assim que acabasse a prova, eu voltaria para o Alasca, compraria uma nova bike e pedalaria até Banff para competir no Tour Divide – alguns meses depois eu estava quebrando o novo recorde feminino da prova em quase dois dias.”

ESPAÇO PARA O ACASO
“Passei três meses pedalando recentemente com meu parceiro pelo México, investigando um novo circuito de 3.000 km que apelidamos de Baja Divide. Vamos lançá-lo em janeiro de 2017 e estamos convidando quem quiser se juntar para a primeira travessia. Foi nesta viagem de busca que decidi encarar a Trans Am. Em março desde ano, voltamos para o Alaska e pedalamos em fat bikes. Em abril, eu montei minha nova bicicleta para a prova. Em maio, saí com ela rumo a largada e, 2.500 km depois, cheguei a Banff, onde descansei por duas semanas, acertando os últimos detalhes de equipamentos para finalmente zarpar no começo de junho.”

TREINAMENTO
“Não sigo nenhuma planilha. Ouço meu corpo e sigo meus instintos. É tudo na base do feeling. Nos últimos seis meses estive na maior parte do tempo pedalando em estradas de terra com uma mountain bike. Dormia em um lugar diferente a cada dia. Além das pedaladas, costumo deixar a bike de lado e correr diariamente por uma hora, simplesmente porque amo fazer isso. Também salto corda para fortalecer meus tornozelos e faço exercícios de core para prevenir lesões.”

COMBUSTÍVEL
“Quando estou competindo, faço de tudo para passar a maior parte do tempo pedalando. Minimizo minhas paradas. Diminuo as horas de sono. E me alimento sempre em cima da bike. Durante a Trans Am, bebi bastante leite, comi sanduíches e mandei pra dentro todo tipo de petiscos. Em corridas como esta, basicamente você come o tempo inteiro. Durante o resto do ano, quando não estou em competições, me alimento de frutas e vegetais. Acredito que isso me mantenha saudável e me ajude nos períodos extremos, quando abuso do meu corpo.”

PERRENGUES SEM FIM
“É preciso manter o espírito elevado e lidar com desafios assim que eles aparecem. Durante a última Trans Am, tive problemas mecânicos, perdi dois pneus e meu canote de selim quebrou. Todo mundo está sujeito a diferentes situações em provas tão longas. Mas meu grande desafio na competição, na verdade, foi pedalar no plano. Como passo muito tempo nas montanhas, subir é natural para mim. Manter o ritmo certo nas retas foi bem complicado, e me tomou muito tempo para descobrir que eu estava fazendo tudo errado. Eu também nunca havia pedalado tanto tempo em bikes de estrada. Fiquei surpresa o quão difícil foi e quão diferente é em relação as experiências em montanhas.”

OCUPANDO A MENTE
“Quando as coisas dão errado eu confio que, eventualmente, tudo vai melhorar, por isso simplesmente pedalo até essa hora chegar. O mais importante em pedaladas longas é seguir em frente, não importa o que estiver acontecendo. Assim que começo a me sentir mal por algum motivo, lembro de quão sortuda sou por ter a simples oportunidade de competir. Também penso que não vou parar muito menos desistir e me esforço para deixar claro para mim mesma que, se eu não fizer o meu melhor, vou me arrepender depois. Isso me mantém motivada a tirar o meu máximo.”

NATUREZA COMPETITIVA
“Só fui alcançar o líder da Trans Am [o grego Steffen Streich] nos últimos 200 km. Foi bizarro: pela falta de horas dormidas e algum erro de cálculo, ele estava pedalando o último trecho no sentido contrário. Nos encontramos no susto, no meio da noite. Percebi que ele era um competidor e perguntei seu nome. Quando percebi que era o cara que eu estava perseguindo há duas semanas, disparei em um sprint. Ele encostou e sugeriu que chegássemos juntos. ‘Sem chance!’, falei. ‘Isso é uma corrida.’ Aquela era a minha hora. Sabia que eu não ia conseguir manter um sprint por 200 km, mas acelerei o quanto pude até deixá-lo para trás. Nunca mais o vi.”

SEGREDOS DA VITÓRIA
“Há muitas fortalezas e fraquezas para se trabalhar em longas pedaladas. A coisa não se resume à força bruta. Muito do sucesso tem base em recuperação, estratégia e capacidade mental. Acho que me dou bem neste esporte pois consigo manter uma atitude positiva, meu corpo se recupera rápido e tenho força psicológica para lidar com adversidades. Os desafios são imprevisíveis. Ganha quem consegue superá-los sempre seguindo em frente.”

PODER FEMININO
“Não fiquei nem um pouco surpresa que uma mulher ganhou a Trans Am. A única coisa que me surpreendeu é que esta mulher era eu. Há tantas habilidades colocadas à prova em eventos como este que eu acho que a coisa acaba ficando nivelada entre homens e mulheres. O fato é que ninguém deve te dizer que você é capaz ou não de fazer. Você precisa ir lá e fazer. Sou a primeira mulher a ganhar uma prova autossuficiente de bike desta magnitude, o que não significa que sou a única com capacidade para fazer isso. Simplesmente fui a pioneira. O caminho agora está aberto.”

MOTIVAÇÃO EM ALTA
“Não tenho grandes planos competitivos para o futuro, mas estou sempre pronta para um bom desafio. A melhor dica para quem quer seguir um caminho semelhante é pedalar em lugares reais. Comece da sua casa, escolha um destino e vá adiante. Você vai aprender muito com isso, sobretudo em cima das coisas das quais realmente precisa e do que é irrelevante. Nunca me esqueço de um primeiro pedal longo quando peguei um trem, sozinha, e depois pedalei 220 km de volta para casa. Foi tão difícil e fiquei totalmente quebrada. Mas, ao mesmo tempo, cumprir meu objetivo me encheu de orgulho e motivação. Ganhei confiança e preparo físico e mental para estabelecer novos desafios. Pedalar distâncias ainda maiores é a mesma coisa. Só é mais longe. No fim, tudo se resume a mover os pedais e seguir adiante.”

(Reportagem publicada na revista Go Outside de setembro/ 2016 – nº 133)