A brasileira Daniela Genovesi, ex-campeã mundial de jiu-jitsu, luta para se tornar tricampeã mundial de ciclismo de ultradistância
Por Mario Mele
Fotos: Chico Cerchiaro
“AGORA VOCÊ VAI MANTER 80 RPM durante um minuto”, diz do outro lado linha a ciclista carioca Daniela Genovesi, enquanto a entrevisto por telefone. Claro que o pedido não era para mim. Aos 48 anos, a maior ciclista de longa distância do Brasil é também professora de educação física e proprietária da Girus Bike, centro de treinamento de ciclismo equipado com bicicletas indoor de alta performance, no Rio de Janeiro. “Temos ciclistas de todos os níveis aqui”, explica. “Neste momento, estou orientando um menino de 15 anos que pedala por saúde, mas também treino atletas de ponta, que seguem planilhas e competem.” Também é na Girus onde Dani pedala forte nas horas vagas para seguir em busca de seu próximo objetivo: tornar-se tricampeã mundial de ciclismo de ultradistância – título oficializado pela Associação de Ciclismo de UltraMaratona (UMCA) e que já foi conquistado por ela nos anos de 2011 e 2015.
Para isso, ela precisa terminar o ano com cerca de 250 pontos, a somatória que um campeão mundial dessa modalidade costuma conseguir no fim de uma temporada. São quase cem eventos anuais, que acontecem nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e em países da Europa, como Espanha, Reino Unido, Polônia e Itália. Cada competidor monta sua própria agenda, levando em conta o peso de cada prova, que pode variar entre 15 pontos (para desafios de 12 horas) e 150 pontos (bonificação para quem vence provas mais longas, como a Race Across America ou a Race Across Europe). Neste ano, Dani quer o tricampeonato conseguindo boas colocações em desafios de 24 horas e em provas de até 800 km.
A meta é algo bem diferente do que ela realizou em 2009, quando viu sua carreira deslanchar ao vencer a Race Across America (RAAM), a mais famosa e temida ultramaratona ciclística do mundo – são 4.800 km non-stop, entre as costas oeste e leste dos Estados Unidos, com carro de apoio. Fazia dois anos que uma mulher não completava a prova (sendo que, em 2006, apenas a norte-americana Shanna Armstrong havia cruzado a linha de chegada na categoria solo feminina). No ano em que se consagrou, Shanna pedalou durante 11 dias, 22 horas e 16 minutos, enquanto Dani terminou, em 2009, em 11 dias, 17 horas e 41 minutos. Apesar de as condições climáticas e os percursos da RAAM não serem idênticos todo ano, o fato é que a brasileira se tornou a primeira mulher latino-americana a vencer o desafio – e até hoje é a única. “Foi uma vitória muito marcante para mim, de enorme aprendizado”, relembra.
Na época, Dani tinha patrocínio de uma marca de cimento, e por isso conseguia trabalhar menos. Hoje, inacreditavelmente, mesmo com dois títulos mundiais e sendo a principal atleta do ciclismo de longa distância do país, ela toca a carreira basicamente por conta própria. “Tenho alguns apoios em equipamentos, peças, mecânica e suplementos”, minimiza. “Mas o fato de eu não ter patrocínio é um pouco também por desorganização da minha parte. Sou meio bicho do mato, ainda não montei um projeto para correr atrás disso”, confessa, na boa.
Ultraciclistas não costumam mesmo reclamar. Vide a própria RAAM, que chega a cobrar até US$ 4 mil de inscrição, porém não dá um centavo de premiação em dinheiro. Fora que, na categoria solo, o atleta tem que arcar com todo o transporte e o custo da equipe de apoio, uma brincadeira que não sai por menos de US$ 20 mil.
Vencer a “Volta à Irlanda”, como Dani se refere à Race Around Ireland, uma ultramaratona ciclística que cobre 2.150 km desse país europeu, é outra de suas conquistas históricas. Fazia cinco anos que uma mulher não completava a prova, até que, em 2015, a brasileira quebrou o jejum depois de um pedal ininterrupto de 120 horas e 20 minutos. “Eu estava com medo de não conseguir terminar”, admite. “É uma competição com ingredientes perfeitos para você desistir: muita chuva, terreno ruim, ladeiras inclinadíssimas”, enumera.
ULTRAMARATONAS DE BIKE são bem mais complexas do que parecem. Tratam-se de provas podem durar de um dia a uma semana – isso quando não se tratam de projetos especiais como o do norte-americano Kurt Searvogel, que não parou de pedalar durante um ano inteiro (leia mais abaixo). Nesses desafios, o tempo corre em outro ritmo, e as estratégias são chave para se cruzar a linha de chegada. “Provas de até 800 km são como um tiro para mim”, compara Dani. “Quando durmo, é apenas um cochilo de cinco minutos, e a minha alimentação é totalmente à base de shakes.” Já o plano para desafios que duram a partir de três dias – e que facilmente passam dos 1.200 km – é manter os pedais girando na boa até a metade da prova. Uma questão de sobrevivência. “Depois disso, acelero e entro em ritmo de ataque.” O período pré-prova é parecido, porém ela só lima algumas “brincadeiras”, como competir em um Big Biker , tradicional maratona de mountain bike que acontece no interior de São Paulo.
Apesar de estar mergulhada no ultraciclismo de estrada, com o foco no tricampeonato mundial, Dani gosta de testar sua resistência e pilotagem em trilhas técnicas, e inclusive pretende correr a Brasil Ride, na Chapada Diamantina (BA), pela quarta vez – em 2012, ela e Adriana Nascimento, nove vezes campeã brasileira de MTB, venceram na categoria dupla feminina. “Só não vou neste ano porque meu filho resolveu casar em outubro, bem no mês da competição”, justifica ela, que é mãe de três. Mesmo se considerando uma “pregona” na terra, foi o mountain bike que a fez tomar gosto pelos esportes de endurance, isso lá pelo fim dos anos 1990. Na época, ela se dividia entre as corridas de bicicleta e o jiu-jitsu, esporte em que é faixa-preta e no qual, em 2000, consagrou-se campeã mundial. Hoje sua luta é totalmente dedicada ao ciclismo, e Dani recorre ao mountain bike para variar um pouco os treinos solitários na estrada. É também uma forma de não ficar bitolada no dilema que cerca seu esporte: a modalidade, apesar de heroica, revela-se bem arriscada. “É uma faca de dois gumes”, considera. “Como atleta e treinadora, quero promover o ciclismo de longa distância, inspirar novos atletas, mas sei também que posso estar, assim, colocando a vida dessas pessoas em perigo.”
Em janeiro, o santista Claudio Clarindo, “finisher” de cinco edições da RAAM e considerado até então um dos dez melhores do mundo no ultraciclismo, morreu atropelado em uma rodovia em São Paulo durante um treino. E a vasta experiência que ele tinha só comprova a vulnerabilidade desses atletas que, quando menos esperam, se veem à mercê de motoristas imprudentes. “É impossível não ficar tensa quando vou com um aluno para a estrada, e por isso prefiro assumir esse risco sozinha”, diz Dani.
É possível entender, portanto, que desde 2009 – ano de sua épica vitória RAAM – até hoje o crescimento do ultraciclismo feminino no Brasil praticamente não existiu, exceto pelo aumento em popularidade das provas de Audax, que são pedais de longa distância, mas sem caráter competitivo. Atualmente prestes a se tornar tricampeão mundial de ultraciclismo através de Daniela Genovesi, o Brasil não tem uma nova geração atacando, um calendário de eventos se configurando e muito menos uma federação para unificar os interesses da modalidade, como já acontece lá fora. “As pessoas aqui ficam até espantadas quando eu falo que passo 24 horas pedalando; elas não têm ideia de como isso é possível.” Uma mentalidade bem diferente da de países como Estados Unidos, Itália e Áustria, onde as provas se multiplicaram na última década e houve até formação de rankings nacionais.
Durante o ano, Dani compete em três eventos internacionais, em média. São provas chanceladas pela UMCA, a associação mundial do ultraciclismo, cujos pesos diferentes dependem da fama e do seu grau de desafio. Em 2014, apesar de não estar focada no título mundial, Dani venceu a Ultracycling Dolomitica, na Itália, com intermináveis subidas de até 20 km.
No ano passado, ela foi bicampeã mundial depois de faturar a National 24 Hour Challenge (em Michigan, Estados Unidos), a Race Around Ireland e a Race Across Italy, um desafio de pouco mais de 800 km entre os mares Tirreno e Adriático. Esta última, pela segunda vez, aliás. A carioca ainda tinha na manga outra prova que aconteceria em novembro, mas que pôde descartar porque sua pontuação, àquela altura, já era inalcançável pelas adversárias.
A temporada 2016 também promete: Dani levou a primeira etapa do calendário, a 24 Horas de Sebring, na Flórida (EUA), garantindo seus primeiros 30 pontos. A meta agora é competir provas de até 800 km até chegar a uns 220 pontos. Ela tem foco, mas não pressa: não pensa em se aposentar tão cedo porque sabe que, em cima da bike, uma semana pode significar uma vida – e em total movimento.
Ultraglicemia
Com alimentação bizarra, ciclista norte-americano bate recorde de maior distância pedalada em um ano
No dia 4 de janeiro deste ano, a bordo de uma bike de estrada Cervélo P2, o norte-americano Kurt Searvogel bateu o recorde de maior distância já pedalada durante um ano inteiro: 122.432 km. Durante 365 dias ininterruptos de pedal, Kurt girou o equivalente a mais de três vezes ao redor mundo, superarando uma marca que tinha sido estabelecida há 76 anos (em 1939, o inglês Tommy Godwin cobriu a distância de 120.805 km no mesmo período). Kurt pedalou uma media diária de 335 km (cerca de 5 km a mais que Tommy), porém o que mais impressionou foi o cardápio do bruto ciclista e empresário do ramo de computadores, que não economizou no consumo de donuts e batatas fritas para atingir seu objetivo.
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* Matéria publicada originalmente na Go Outside 128, de abril/2016