Calmaria no caos

O treinamento de apneia que ajudou Adriano de Souza a conquistar o título mundial de surf

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HOMEM-PEIXE: Exercício de apneia em mar aberto, no Havaí (Foto: Leonardo Neves)

Por Bruno Romano

O MAR DE WAIMEA BAY implorava para ser surfado no último mês de dezembro no Havaí. As ondas estavam bombando quando o brasileiro Ricardo Taveira remou na primeira da série, mas logo abortou a tentativa. A segunda onda veio na sequência, impiedosa. Ricardo não conseguiu ultrapassá-la remando, teve de se livrar da prancha e acabou caindo lá do alto, bem em cima dela, fraturando a costela. O cenário paradisíaco de Waimea mostrou rapidamente seu lado mais apavorante. Um liquidificador apertado e escuro, girando em potência máxima, batendo água, espuma, corais e ossos trincados. A experiência poderia acabar bem mal, entretanto o surfista manteve o controle e tirou tudo de letra. Em janeiro, já estava surfando de novo e fazendo o que sabe de melhor: ensinar outros apaixonados pelo mar a sair ainda mais vivos de perrengues como esses.

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CAMPEÃO MUNDIAL: Mineirinho treinando com Taveira (Foto: Leonardo Neves)

Instrutor de mergulho de alto nível, Ricardo percebeu que as técnicas de respiração e apneia que aprendera com a modalidade poderiam ser úteis no surf, sobretudo em ondas grandes. Decidiu desenvolver um treinamento pioneiro, que já ganhou a atenção e o respeito de lendas do North Shore havaiano, região da ilha de Oahu que reúne alguns dos picos mais cobiçados por surfistas de todo o mundo. Seu curso de apneia também chamou a atenção de atletas top do Brasil, como o atual campeão mundial de surf, Adriano de Souza, o Mineiro, e um dos destaques da última temporada profissional da modalidade, Felipe Toledo, o Filipinho. Seja para profissionais ou amadores, Ricardo defende que a capacidade de suportar a apneia pode turbinar performances e, claro, salvar vidas. “Nosso limite lá embaixo d’água é muito maior de que a gente imagina: o segredo está no conhecimento mental e corporal”, garante.

Antes da disputa do Pipe Masters, última e decisiva etapa do campeonato mundial de surf de 2015, Mineiro procurou Ricardo para um curso particular. Os dois trabalharam juntos técnicas de respiração e exercícios de apneia, inclusive simulando uma queda brusca no mar. Também conversaram muito sobre controle de pânico e ansiedade. Mineiro reconheceu a evolução depois do título inédito. “Conversei com ele logo depois do mundial e perguntei se conseguiu usar as técnicas”, lembra Ricardo. A resposta foi bem positiva. Com o peso do mundo todo em suas costas, Mineiro estava no outside focado em sua respiração. “É comum os surfistas ficarem ‘trocando ideia’ enquanto esperam as ondas, mas se fizerem exercícios para oxigenar a corrente sanguínea terão mais gás para remar. E caso rolar uma ‘vaca’ contarão com muito mais ar para aguentar o tempo lá no fundo”, explica Ricardo.

No surf competitivo – e na adrenalina de uma sessão livre de ondas grandes –, controlar os nervos é fundamental. É por isso que os cursos também têm atraído e ajudado gente de peso como os big riders brasileiros Felipe Cesarano e Carlos Burle e as feras gringas Nathan Fletcher e Trevor Carlson, destaques na cena atual. A velha guarda também aderiu. É o caso do surfista e shaper havaiano Denis Pang, de 62 anos, competidor do Eddie Aikau (lendária disputa havaiana em mares imensos, só para convidados) na década de 1960 e que fez o treino com Ricardo há quatro meses.

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NA PRÁTICA: Taveira dropa uma bomba em Jaws, Havaí (Foto: Arquivo pessoal)

Outras lendas do surf local, como Chris Owens, que frequenta os principais picos desde os anos 1970, acredita que o curso deveria ser obrigatório para profissionais que lidam com resgates no mar. De fato, salvas-vidas do North Shore e free surfrs de Waimea também têm sido presença constante nos treinamentos. Enquanto isso, o havaiano Ian Masterson, que leciona práticas de tow-in (surf em que o atleta é levado para a onda com o auxílio de jet ski) em uma universidade local, já estuda com Ricardo como integrar esses ensinamentos no currículo de seus alunos.

Na prática, o atual curso consiste em dois dias intensos de aprendizado. São quatro horas de teoria, explicando as reações do corpo em apneia, seis horas de piscina e outras seis horas em mar aberto, incluindo um arsenal de exercícios de apneia estáticos, dinâmicos e sob estresse, os três pilares do programa. Ao completar as tarefas, a capacidade de suportar tempo embaixo da água costuma impressionar até mesmo surfistas com longa experiência. A ideia, no entanto, é sempre seguir trabalhando os exercícios, mantendo a evolução e estendendo os limites pessoais.

Outro “segredo” ensinado são destrezas específicas para melhorar a respiração. O objetivo é fortalecer o diafragma e as paredes dos pulmões, gerando mais resistência e flexibilidade na região do tórax, segundo o instrutor. Assim fica mais fácil aguentar a pressão quando as coisas complicam na água. Também são passadas técnicas de resgates para o ambiente salgado. Desde como trazer um corpo para a superfície – consciente ou não – até como realizar uma reanimação cardiopulmonar.

Aos 39 anos, Ricardo não apenas foca nos ensinamentos como dedica sua vida ao surf de ondas grandes. Ele divide o tempo entre a busca pelos swells havaianos e o trabalho como dono da empresa Hawaii Eco Divers, com vista para Sunset, um consagrado pico de surf. Além dos treinos de apneia, o instrutor ministra cursos de mergulho, faz coaching de surf, na base de filmes e aulas práticas, e ainda ajuda brasileiros a estruturarem viagens pela terra que escolheu para viver.

Ao lecionar o que aprendeu nos últimos anos, Ricardo acaba naturalmente treinando e se aperfeiçoando a cada novo curso. “Sabia que o surf profissional não era para mim, pois comecei tarde”, conta. “Mas minha devoção pelo oceano é enorme, e hoje posso realizar o sonho de juntar trabalho, mergulho e minha paixão, o surf.” A vocação no mar fez o surfista acompanhar uma trupe com vários atletas tops do Brasil há dois anos no Havaí, quando o curso de apneia se consolidava. Depois do treino, todos ficaram alucinados com a capacidade de aguentar até três minutos submersos, lembra Ricardo.

Por coincidência (ou não), assim que o curso acabou rolou uma ondulação clássica em Jaws, na ilha havaiana de Maui, e todos decidiram ir para o pico surfar e colocar o treinamento em prática. “Todo mundo pegou altas ondas e desafiou seus limites naquele dia. Eu mesmo surfei uma das maiores bombas da minha vida”, recorda. “Foi maravilhoso ver como o treino influenciou a confiança da galera, mesmo falando de gente muito experiente. Mas também é legal perceber como ele tem ajudado pessoas em geral, não apenas atletas de ponta.” Até por que, lá embaixo, no turbilhão da onda, a natureza não diferencia ninguém. E é bom estar preparado.

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ORIENTAÇÃO: Aula de apneia na piscina (Foto: Leonardo Dale)

Treine esta arma secreta
Exercícios para melhor a capacidade respiratória e o controle de ansiedade

1. Respiração pelo diafragma
> Coloque a mão esquerda em cima do estômago e a mão
direita sobre o peito;
> Puxe o ar com a barriga (pelo diafragma);
> A mão esquerda irá se movimentar até a parte inferior encher por completo;
> Quando o ar passar a subir para a parte superior, a mão direita se moverá;
> Pare e expire, deixando o ar sair dos pulmões naturalmente;
> Pratique por 3 minutos.

2. Apneia estática
> Respire apenas pelo diafragma, oxigenando o corpo por três minutos;
> Durante o processo, mantenha o corpo relaxado, focando na respiração;
> Após três minutos, encha os pulmões por completo;
> Inicie pela parte frontal e lateral do diafragma, suba para o peito e expanda ao máximo a caixa torácica;
> Segure a respiração pelo máximo tempo possível.

3. Apneia sob estresse
> Nade na piscina o mais rápido que puder, oxigenando o corpo durante o exercício.
> Na extremidade, expire o Co2 e inspire por completo pelo diafragma, enchendo os pulmões;
> Entre em apneia estática;
> Uma segunda pessoa te rodará de maneira brusca, simulando uma “vaca” no surf;
> Tente permanecer calmo, suportando o máximo que puder;
> Sempre combine sinais de comunicação caso precise subir para respirar.

OBS: Nunca treine apneia na água sozinho. Há risco de desmaio.

VAI LÁ:
Curso de apneia Hawaii Eco Divers
Aulas teóricas e práticas
>> São Paulo (SP): 21 e 22 de maio
>> Rio de Janeiro (RJ): 28 e 29 de maio
Informações em: hawaiiecodivers.com