Um dos cenários mais incríveis do planeta, a cordilheira de Huayhuash é palco de aventuras fascinantes e arriscadas no Peru, mas também terreno fértil para ciladas de todo tipo – lugar de luta por terra e abrigo de guerrilheiros que corre o risco de ser devastado pela extração de minérios. Em um trekking de altitude pelo território, vê-se de perto por que a ganância, a desordem e o caos insistem em habitar esse pedaço do paraíso.
HISTÓRIAS DE ALTA MONTANHA costumam cair no óbvio. Sair da zona de conforto. O que importa é a jornada, não o destino. Não é o medo de morrer, mas o de não ter vivido. Ou ainda, a verdadeira viagem acontece dentro de você. Os clichês são antigos. Mas será que ainda têm valor? Nesta era mais “acessível” a expedições, ainda fazem sentido? Instigado por respostas e na pilha de viver uma grande experiência outdoor, embarquei em um ritual de iniciação em alta montanha – já que não havia outro jeito de descobrir. Parti para uma das áreas mais remotas e misteriosas da América do Sul, a cordilheira de Huayhuash, no Peru. Minhas perguntas se ofuscaram diante do tamanho dos riscos e do desafio. Não demorou até me dar conta de onde estava: eu havia caído em uma maravilhosa enrascada.
Logo percebi que diversão é um conceito relativo na montanha. Não há nada glorioso em enfiar a perna em uma greta, por exemplo. Muito menos quando você já está no seu limite físico e mental, sob os efeitos cruéis da altitude. Pior ainda quando o cume que você tenta alcançar recebe o carinhoso apelido de “Diablo Mudo”. Essa alcunha traiçoeira rondou as cabeças da nossa equipe – o experiente guia brasileiro Fernando Cruz, o arrieiro local Massimo Miranda e mais três novatos no assunto, Pedro Treacher, Bianca Zuanella e este repórter – durante dez dias de trekking, com acampamentos entre 4.300 e 4.800 metros de altitude. O cume gelado do Diablo (5.233 metros) só deu as caras na manhã do nono dia. Até lá, nossa trupe circundou a enigmática cordilheira Huayhuash, encarando seus segredos sem fim.
Um dos berços do montanhismo peruano, a região também fascina escaladores de ponta de todo o mundo há pelo menos seis décadas – período em que já foi cenário de histórias clássicas como a do clássico livro de aventura Tocando o Vazio. A cordilheira em si se estende por 30 km de distância e 20 km de largura ao norte de Lima, no departamento de Ancash. Huayhuash é o lado “B” da Cordilheira Blanca, pedaço dos Andes peruanos consagrado no montanhismo sul-americano e morada do mítico Huascarán, o pico mais elevado do país, com 6.768 metros. A Blanca forma o mais imponente conjunto de montanhas tropicais do mundo, abrigando outros cumes clássicos, como o Chopicalqui (6.354 metros), o Tocllaraju (6.032 metros) e o Alpamayo (5.947 metros).
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O ponto de partida das expedições, na Blanca ou em Huayhuash, costuma ser o vilarejo de Huaráz, no Callejón de Huaylas, um vale de 80 km e 80 mil habitantes a 400 km da capital, Lima. A alta temporada de trekking acontece na seca e tem seu auge entre junho a agosto. É nessa época que montanhistas cheios de equipamentos e energia ajudam a bagunçar ainda mais o cenário, marcado pela ausência de recursos e de oportunidades. Maior centro urbano da região, Huaráz é lugar de gente simples e forte, mas cresce de forma caótica e desordenada em uma área de iminente atividade sísmica.
A realidade de Huayhuash também é repleta de armadilhas, desde os desafios naturais até as artimanhas de quem explora o turismo local. Há menos de duas décadas, a zona era refúgio de guerrilheiros do Sendero Luminoso, nome adotado pelo partido comunista peruano assim que a organização decretou luta armada contra o governo nas décadas de 1980 e 1990. Os últimos anos têm sido marcados pela retomada da mineração, que extrai ouro e outros minérios das montanhas dali. O impacto ambiental é nítido no visual da paisagem e no derretimento acelerado das geleiras. Não dá para negar que a vibração do lugar tem ficado conturbada com essa mistura de valorizados ienes japoneses (das mineradoras) com os poucos soles peruanos e os passageiros dólares dos turistas.
É CLARO QUE EU NÃO tinha ideia de tudo isso quando terminamos nossa aclimatação nos arredores de Huaráz e finalmente chegamos ao primeiro acampamento, em Quartelhuian. Massimo Miranda, com seu cavalo e cinco burros, já nos esperava. Ele veste sapatos de couro surrados, um chapéu marrom de abas longas e um conjunto de calça e agasalho esportivo velho sobre uma malha de lã. Aos 47 anos, Massimo viveu a maior parte deles em Pocpa, um pequeno povoado a poucos quilômetros dali, onde cultiva os alimentos da família e se sustenta com muito pouco. Os nativos do pedaço ainda se comunicam em uma mistura de espanhol e quéchua, vestígio das civilizações pré-colonização.
Somos escancaradamente forasteiros, com nossos corta-ventos e botas tecnológicas. Porém Massimo já está acostumado com o tipo. O trabalho de arrieiro, que consiste em carregar parte das tralhas (ou a totalidade delas em expedições “vip”) de um acampamento a outro, cai em boa hora para caras como ele. A época de trekking, na seca, casa com o fim da colheita, oportunidade para levantar um dinheiro extra. Mesmo assim, a realidade se choca de forma alarmante com o ouro tragado das máquinas a poucos quilômetros dali. Nos meses secos, os agricultores dos pequenos vilarejos locais também aproveitam para levar o gado para pastar. O território é dividido em comunidades, e cada uma impõe seus costumes e leis.
Massimo nos recebe com um sorriso aberto e um aperto de mão ainda tímido. Sua parceira e companheirismo seriam vitais no sucesso da viagem. Ainda que esse primeiro contato tenha parecido mais com um encontro tribal – com cada um medindo a realidade do outro. Mas acabamos ficando tão próximos que ele costumava rir, sem dó, do nosso estado no fim dos dias mais pesados de caminhada, quando o encontrávamos no acampamento em uma mistura de relaxamento e apreensão pela nossa chegada. Andar por mais de dez horas e atravessar passos de montanha acima dos 5 mil metros é bem comum em Huayhuash. Em trekkings de alta montanha, o ritmo é completamente diferente. A falta de oxigênio bagunça até as coisas mais simples. E os efeitos da altitude dão a sensação de que a mente e os olhos estão filmando em câmera lenta.
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Graças à mochila nas costas, sol forte e vento gelado, as caminhadas lentas são como peregrinações. É normal entrar em um estado de transe. Muitas vezes, pensar e agir se tornam rivais e simplesmente perdem a sintonia. Quando o corpo enfim se adapta à nova realidade, transforma-se em uma máquina poderosa. O ritmo do grupo também começa a se encaixar. A combinação da cafeína da manhã, dos chás de coca da tarde, do ar rarefeito e da endorfina liberada se transforma em um coquetel potente. Ele nos ajuda a andar dezenas de quilômetros – e muitas vezes nos leva a gargalhadas. Sofrer junto pode ser bem divertido. E olha que estamos bem fora da chamada zona de conforto, calculo.
Os dias sem banho são de longe o menor dos problemas. Na prática, naturalmente se estabelece uma involuntária conexão com um lado mais primitivo, sensorial e intuitivo – e, quando preciso, ativa-se um adormecido instinto de sobrevivência. Sair do conforto nada mais é do que uma premissa para estar ali, não uma habilidade a ser descoberta ou conquistada. Apesar de importante, para deixar bem claro o quão pouco precisamos para viver, sair da zona por si só não garante o aprendizado. É a conexão pessoal com esse outro lado da moeda (longe das comodidades e facilidades da cidade) e a experiência de viver isso intensamente por vários dias que valem de fato.
Divido essa minha primeira “teoria” confabulada durante alguma viagem profunda no meio do dia com nosso guia. Estamos terminando de ajeitar as barracas, enquanto os fogareiros esquentam água, já com a noite chegando. Nossas casas temporárias foram armadas na beira da lagoa Carhuacocha, um dos cartões-postais de Huayhuash e local de descanso do segundo dia. Há poucos minutos estávamos calados observando as últimas luzes deixarem de vez o reflexo da água e se despedirem por trás da camada de gelo do Jirishanca (6.126 metros) e do Yerupajá (6.635 metros), os imponentes gigantes brancos a nossa frente – que me acordariam no meio da noite com distantes e estrondosas avalanches.
Ouvindo quem conhece muito mais do que eu sobre o assunto, vejo que sair da zona de conforto não foi exatamente o que fez nosso guia Fernando largar um bom emprego no mercado financeiro em São Paulo para viver como guia de montanha. Ele conta que, em 2001, vendeu o carro e meia dúzia de ternos, encheu duas duffel bags com roupas e equipamentos e levantou âncora da cidade. Logo de cara, passou seis meses no Nepal, pois “só as férias não eram mais suficientes”. Nos últimos 15 anos, o guia tem se embrenhado e se especializado em picos ícones sul-americanos, como o Aconcágua, na Argentina.
Fernando descobriu Huayhuash logo no fim do seu primeiro ano de vida nova. Fez grande parte do rolê que estamos encarando sozinho. Escutar gente da montanha em seu “habitat natural” faz toda a diferença. Eu nunca teria entendido sua vivência se estivéssemos falando do mesmo assunto durante uma pedalada (ele usa longos pedais para preparação), em uma mesa de bar ou em seu apartamento em São Paulo, onde planejamos por vários dias a expedição.
COMO ESPERADO, ENCONTRAMOS em Huayhuash todo tipo de aventureiro. Do alpinista sofisticados a trekkeiros de primeira viagem. Sujeitos experientes fazendo investidas ousadas ou treinando para missões ainda maiores pelo planeta. E também clientes de roteiros “de luxo”, com direito a cozinheiro, time de carregadores, mesas e cadeiras para a hora de comer. Norte-americanos, europeus e asiáticos se misturam muitas vezes à paisagem, na maior parte do tempo erma e silenciosa. Entretanto a combinação de turistas com dinheiro no bolso e um lugar com leis próprias abre caminho para os trambiques.
A desorganização do uso do espaço e a falta de critérios definidos para as expedições é um terreno fértil para as armadilhas. Guias “piratas” vendendo gato por lebre, empresas caça-níquel e aclimatações malfeitas – que fazem algumas expedições acabarem antes da hora, enquanto as empresas ganham o valor cheio mesmo assim –, são constantes na área. Resultado: o turismo tem diminuído nos últimos anos. Mesmo com vocação para ser uma verdadeira Meca do montanhismo na América do Sul, a região não se desenvolve como poderia.
Na rotina de trekking, as comunidades que habitam os arredores da cordilheira de Huayhuash recolhem pedágios pelos acampamentos. Alguns locais chegam a proibir barracas em determinadas áreas, alegando proteção ambiental, quando na verdade só querem facilitar as distâncias para cobrar o tal pedágio. Nenhum viajante, mesmo os mais independentes, escapam da sabatina pelas manhas nos campings. As tentativas de desenrolar e evitar o pagamento costumam não dar certo. O dinheiro sempre acaba no bolso dos cobradores. Mas já foi pior. Há relatos de viajantes surpreendidos no alto dos passos mais árduos cerca de dez anos atrás. Caíam fácil na arapuca. Com a ajuda de cavalos, assaltantes não tinham trabalho para abordar os caminhantes cansados. Hoje o “roubo” permanece, só foi formalizado. Invocar com os nativos não é uma opção.
Huayhuash é conhecida como uma terra de gente bruta e forte. A presença de ladrões de gado e de pessoas armadas é comum. Na época mais pesada da presença do Sendero Luminoso, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, guerrilheiros se misturavam às comunidades, “disfarçados” de agricultores. Até hoje, o tema é tabu por ali. Ninguém fala, ninguém sabe, ninguém viu. O mesmo acontece com algumas suspeitas rotas de narcotráfico, que funcionam na calada da noite, aproveitando a falta de qualquer tipo de fiscalização. A tal hora do pedágio e as estranhas caravanas noturnas destoam completamente do clima diário de descobertas, desafios e contemplação do lugar. Como já estávamos alertas de que isso poderia acontecer, apenas registramos e entramos no jogo. Até porque, na alta montanha, não há tempo a perder.
SERIA PERDA DE TEMPO tentar descrever o nascer do sol do terceiro dia de expedição. Huayhuash é daqueles lugares que fazem você acreditar que acabou de ver a cena mais fascinante de sua vida – a cada uma ou duas horas mais ou menos. Em tempos pré-hispânicos, essas montanhas eram consideradas moradas de deuses, para quem os locais ofereciam sacrifícios e presentes. O fascínio mais aventureiro e atual esquentou depois que uma expedição alemã-austríaca chegou ao topo do Huascarán, em 1932. Nos anos seguintes, os primeiros mapas da região começaram a ser desenhados.
As décadas de 1950 e 1960 marcaram a chegada de grupos europeus e norte-americanos ali, e as primeiras “conquistas” de picos técnicos, como o Alpamayo e o cume oeste do Huandoy. Na década seguinte, um terremoto de 7.7 graus na escala Richter deixou 50 mil mortos e devastou os principais pontos de apoio de expedições, como Huaráz. Até então, não existiam ainda montanhistas e guias nativos. Toda a exploração era feita por estrangeiros, com ajuda de alguns carregadores selecionados nos vilarejos.
A história mudou quando o peruano Selio Villon, hoje com 64 anos, partiu para um estágio em hotelaria na Europa, quando ainda tinha 25, e ficou amigo de um guia de montanha suíço. A dupla juntou dinheiro para comprar equipamentos de escalada em gelo para 20 pessoas, levou tudo para o Peru e montou o primeiro curso especializado do país. “A ideia era grande, por isso espalhamos a notícia por todos os lados, como Cusco e Arequipa”, lembra Selio, natural de Chacas, do outro lado da cordilheira Blanca.
Até cinco anos atrás ele ainda trabalhava como guia, e atualmente organiza expedições em Huaráz. “Muita gente tinha medo dessa história de aventura na montanha”, diz. Mas 40 jovens destemidos, entre eles Selio, aceitaram a primeira missão. Divididos em dois grupos, partiram para expedições de 20 dias nos picos gelados. Nascia ali, em 1978, a Associação de Guias de Montanha do Peru (AGMP), presidida por Selio nos 20 anos seguintes.
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Peruanos e suíços estreitaram seus laços. Os garotos que se destacavam na América do Sul ganhavam cursos de técnicas avançadas em rocha e gelo na Europa e voltavam com certificados internacionais. “Depois disso foi fácil juntar gente, já que todos queriam ir para a Suíça (risos)”, diverte-se Selio. No segundo ano de associação, 25 vagas foram abertas, e 100 jovens de todo o país se apresentaram para o novo ofício. O trabalho pioneiro no continente segue até hoje. Em Huaráz, a Casa de Guias é o ponto de encontro de cursos, atividades e informações sobre o montanhismo local.
Tento recriar na minha cabeça as aventuras pioneiras enquanto observo a lua cheia acendendo os picos nevados de Huayhuash, refletindo em suas lagoas e iluminando os imensos vales. Na medida em que os dias vão passando, percebo que é comum o corpo estar presente e a mente sair para um passeio. Nessa altura da jornada, já cruzamos mais quatro dias de trekking, passando por Laguna Viconga, Huanacpatay e Huayllapa. Começo a tentar decifrar outra máxima aventureira, que diz que a verdadeira viagem é a interna.
Acontece que, na alta montanha, tudo tem timing e função. É o agir com o agora na sua versão mais extrema. Pensar no todo é um caminho tortuoso. A transformação interna dificilmente será percebida naquele ambiente, muito menos sozinho. A mudança é lenta, no ritmo da caminhada de altitude. Só o contato com outras pessoas, depois, confirma se algo de fato se alterou. Selio me ajuda a decifrar mais esse enigma.
“A vida mudou demais, as pessoas têm mais acesso a imagens e visuais, ao mesmo tempo em que estão mais protegidas e em menos contato com a natureza. Daí a maior dificuldade em se adaptar a ambientes extremos”, reflete. “O perfil das pessoas que vêm aqui também não é o mesmo: antes eram mais fortes, comprometidas e identificadas com a montanha. Hoje fazem isso por hobby ou esporte”, diz. Por trás na nebulosa visão que tinha de um trekking de altitude, começo a enxergar as coisas com mais nitidez. De que vale subir uma montanha e bater no peito mostrando o feito se o que realmente importa por ali são desafios bem mais sérios? Embarque na sua viagem interna, ela é saudável e fundamental, mas preste atenção no que realmente está rolando.
Huayhuash costuma abrigar cerca de 40 incríveis lagos, formados basicamente pelo derretimento de gelo, em um cenário que muda constantemente com as estações do ano e as condições do clima. Atualmente várias montanhas ícones do pedaço não recebem gente em seus cumes há várias temporadas, tamanha a encrenca que se tornaram. O derretimento acelerado do gelo mudou tudo. O risco em algumas escaladas mais técnicas transforma as tentativas em quase sinônimo de suicídio. Não há necessidade de estudos científicos para dizer o que está acontecendo. “Mudou bastante, existe muito menos neve nas montanhas”, conta Massimo, durante um dos jantares compartilhados no acampamento. “Algumas geleiras recuaram de 200 a 300 metros, e a espessura do gelo diminuiu consideravelmente”, confirma Selio, após a expedição, em Huaráz.
Recentemente o governo peruano abriu caminho para a mineração, porém deixou a cargo das comunidades locais fazerem acordos com os responsáveis. Na maioria delas, a grana falou mais alto. Em outras, o povo não aceitou (ou recuou em um segundo momento) as ofertas, impedindo o avanço das máquinas. “A mineradora não alterou apenas a paisagem, mudou as pessoas também”, diz Selio. “Trata-se de uma área com mais dinheiro que o turismo, claro, mas que não consegue comprar todos. Muitos tem se decepcionado com as promessas. A mineradora pode trazer dinheiro agora, mas o turismo é para várias gerações”, completa o peruano.
Guias, empresários e profissionais do turismo local tentam fortalecer a proposta de transformar Huayhuash em um parque nacional – na cordilheira Blanca, por exemplo, já existe o Parque Nacional Huascarán –, no entanto eles concordam que o tema depende de uma política maior de estado e que, talvez, não vingue em um futuro próximo.
Tomara que até lá o estrago não seja tão grande para riscar do mapa todas as cenas que vimos nos caminhos de Cutacambo e Gashgapampa, nos dias finais da expedição, antes de encarar o Diablo Mudo e partir para Jahuacocha. Logo me vem à cabeça mais uma máxima da montanha: é a jornada, não o destino. A jornada engrandece, não há dúvidas, mas o destino pauta as decisões e tem o poder de mexer com os hábitos e os comportamentos. Ele também é caprichoso. Quando se está bem, te enche de energia. Quando vive um momento de cansaço e dúvida, te amedronta. Trocaria a máxima em desafios extremos por algo como aproveite e viva a jornada, porém nunca perca o foco e o respeito pelo destino. Até porque, nem sempre o final é feliz.
Que o diga Abel Colana, único montanhista da primeira equipe de guias peruanos que segue na ativa. Parceiro de Selio Villon no time inicial, que montou as bases dos últimos 40 anos para a respeitada formação de guias locais, Abel é hoje o nome forte quando o assunto é resgate de montanha nas cordilheiras da região. Aos 61 anos, ele chefia expedições arriscadas em busca de sobreviventes.
A temporada de 2015, quando completamos nossa travessia, ficou marcada pela morte de um grupo de montanhistas do leste europeu no Tocllaraju e pelo falecimento de três equatorianos no Huascarán. “Parece que eles não tinham uma técnica boa, a noite os pegou lá em cima, já cansados, imagino”, diz Abel sobre o trio do Equador. Ele subiu ao pico na companhia de um aspirante e encontrou o local exato do acidente. Retornou para a Casa de Guias em Huaráz e armou todo o resgate.
Os corpos estavam dentro uma greta de mais de 30 metros de profundidade por 20 metros de largura. Abel levou ao Huascarán os guias mais experientes disponíveis. Juntou material e gente forte e contou com apoio de um helicóptero de polícia. Resgatar é sempre arriscado, pois pode gerar mais mortes. Foi preciso trabalhar à noite, já que, com o sol, o risco de acidentes e avalanches seria maior. Ao todo, quatro dias foram dedicados para a missão. “Para mim é uma responsabilidade enorme. Minha preocupação é que nada aconteça com a equipe, penso nisso todo momento. Escolho as pessoas a dedo, para ficar mais tranquilo. Confio nelas”, conta Abel.
“Só os guias vão às áreas críticas. Os policiais de resgate ficam em um lugar mais seguro”, explica. “Eles levam câmeras de foto e filmagem e depois chegam à cidade contando história como se fossem heróis. Nunca falam que, na verdade, foram os guias que tiraram os corpos dali”, afirma Abel. É com ele que discuto mais um dito comum no mundo da aventura: não é o medo de morrer, mas o de não ter vivido. É um ditado dúbio, pois esconde riscos de terceiros. Não há nada heróico e grandioso em arriscar a vida de mais gente. Todos nós queremos ultrapassar limites, só que é bom fazer isso com inteligência e responsabilidade. Alta montanha definitivamente é uma seleção natural. Até o dia de cume, eu ainda não tinha certeza se aquilo era pra mim.
Na véspera da escalada, recebemos um segundo guia, o local Perci, para fortalecer a encordada no gelo e dar mais segurança ao time de novatos. Ele chega com histórias bem frescas de uma recente (e bem-sucedida) subida ao topo do Huascarán ao lado de um cliente. E também nos traz a triste notícia dos equatorianos. Enquanto ele fala, cachorros selvagens rondam nosso acampamento. Burros e cavalos também fazem barulho na noite gelada. Consigo ouvir um rio à distância. Como algo. Relaxo. E finalmente pego no sono. Acordo várias vezes no meio da noite, antes da saída para o ataque ao cume às três da manhã. Lembro dos últimos oito dias de montanha, das histórias de resgate, dos equipamentos, dos animais. Já confundo sonhos com realidade.
“PRECISO QUE VOCÊ CONFIE EM MIM”, grita Perci, enquanto faz segurança para eu rapelar uma parede exposta de gelo. Com um passo em falso minha perna direita acaba dentro de uma greta que se estende profunda para baixo, sabe-se lá por quantos metros. Já estou completamente exausto – e ainda nem chegamos ao cume do Diablo Mudo, a metade do caminho até a volta para a barraca. Meu corpo, que esbravejava forte e confiante há dois dias, parece entrar em colapso. Eu me pergunto o quanto disso é físico, por estarmos encarando a parte mais dura da expedição, onde não há espaço para qualquer vacilo, e o quanto é psicológico, pois já estou há dias me expondo a uma situação totalmente nova e, por mais bonita que seja, assustadora.
Respiro fundo e, passo a passo, vejo que não há atalhos para o topo, como também não existe nenhuma outra saída. Basicamente, encarar todo o caminho até o cume é também o jeito mais rápido de escapar dali. Lido com o desconforto das botas duplas, a falta de ar, a noite mal dormida e a dúvida de estar ou não fazendo as coisas certas. No auge do cansaço, começo a me divertir com cada porrada de piolet e crampon que encaixa bem na neve. É um jeito maravilhoso de sofrer. Uma divagação passa rasante pela cabeça. Será que isso realmente compensa, engrandece e fortalece? Ou é só um escape de gala da vida urbana? A cada passo, recalculo distâncias e limites.
Entro em estado bruto, agindo por intuição. Espaço e tempo já não interagem mais. Aqui e agora são totalmente relativos. Descubro uma reserva no tanque que nem suspeitava que existia. Esqueço de tudo – lagoas, pedágios, burros, mineradora, resgates, cachorros selvagens, máximas da montanha – e alcanço o cume. Sete horas depois, a barraca. Faz menos 20 graus lá fora. Já é noite de novo. Estamos todos a salvo.
Depois de cumprir o objetivo, e mesmo nas semanas e meses seguintes, ainda não sei ao certo o que essa viagem me ensinou. Vejo minhas anotações tremidas e me lembro dos altos e baixos do caminho, que se refletem em toda a expedição. Conto em detalhes o que aconteceu para quem compartilha uma conversa comigo. Penso muito mais em como meus hábitos impactam lugares como aquele. Viver intensamente a montanha e refletir sobre esses costumes é o que mais importa agora. Conquistar um pico gelado é só um detalhe do caminho. Huayhuash também atiçou um forte instinto de exploração. Mas me deixou com muito mais perguntas do que respostas (opa, conta como clichê?). Melhor assim. O caminho fica aberto para desvendar outros mistérios. A resposta nem sempre está no alto da montanha, e sim ao alcance de nossas mãos. E de nossas mentes.