A rainha da montanha

GIRO ROSA: Flávia honrando o título de melhor escaladora

Por Fernanda Beck

FLÁVIA OLIVEIRA ESTÁ EUFÓRICA. Integrante da equipe italiana Alé Cipollini, a ciclista carioca acaba de realizar um dos maiores feitos em sua carreira esportiva, e uma conquista inédita para o esporte brasileiro: foi a campeã de montanha no Giro Rosa de 2015, a versão feminina do Giro D’Italia, uma das maiores e mais importantes voltas ciclísticas do mundo (ao lado do Tour de France e da Vuelta a España). Consagrou-se assim uma das maiores escaladoras brasileiras e um dos talentos mundiais em enfrentar ladeiras íngremes.

Como nas Grandes Voltas masculinas, o Giro Rosa consagra não apenas a melhor colocada geral na prova, mas também as ciclistas mais rápidas em percursos retos (chamadas sprintistas) e em trechos de montanhas (as escaladoras). Flávia, de 33 anos, chegou em terceiro lugar na última etapa do evento, que terminou no dia 12 de julho depois de uma exigente subida de 13 km, coroando com sucesso e somando os pontos que precisava para conquistar o título de “rainha da montanha” do Giro Rosa 2015.

Boas condições físicas, muito treino, equipe afinada e infraestrutura adequadas formaram o conjunto que levou Flávia ao título (a atleta ficou em 7º lugar na classificação geral). “Este ano, minha participação no Giro Rosa foi tudo o que eu esperava e um pouco mais”, diz, feliz. Depois do cancelamento do francês Tour de L’Aude – até então a mais longa volta ciclística feminina no calendário oficial das provas internacionais –, em 2010, o Giro Rosa tornou-se o único Grand Tour (prova por etapas) feminino em existência. Desde 2014 o Tour de France organiza uma prova para mulheres, o La Course, mas que tem somente uma etapa, realizada no dia do encerramento da Volta da França.

Tradicionalmente, o Giro Rosa, que hoje conta com oito dias de duração, acontece no começo de julho, no auge do verão europeu. As temperaturas locais, que chegam aos 40°C, são mais um dos grandes desafios enfrentados pelas ciclistas. Sem contar as montanhas assustadoras da Itália – como a temida Varzo, presente no percurso da última etapa, que termina na dura subida de 13 km, chegando em San Domenico. “Não tenho palavras para descrever o calor que fazia durante a prova. Era surreal”, lembra Flávia.

Foi o norte-americano Corey Hart, atual técnico da Alé Cipollini, que determinou que a malha verde (usada pela líder da montanha) se tornasse o maior foco da equipe, motivado pelo bom desempenho de Flávia após a primeira etapa de montanha disputada no evento. A estratégia provou-se acertada, apesar de Flávia ter ficado fora do pódio na classificação geral. Mas a moça não se abala e explica que provas de ciclismo são parecidas com um jogo de xadrez: é preciso afinar os pontos fortes de cada atleta e focar no que pode funcionar. “Claro que gostaria de ter tido um resultado ainda melhor, mas a situação estava difícil. Só a equipe holandesa Rabo Liv teve cinco meninas entre as dez melhores colocadas”, conta.

A solução foi aproveitar a brecha deixada pelas outras equipes, focadas na malha rosa (usada pela líder do campeonato), e tentar levar para casa o título da montanha. A eficiência do trabalho em equipe na Alé Cipollini foi determinante para que Flávia conquistasse o campeonato. Durante uma das etapas do Giro, sua bike quebrou, e uma companheira de equipe cedeu a própria bike, muito maior que a de Flávia, para que ela continuasse em frente enquanto o mecânico resolvia o problema. “Subi um tempão naquela bicicleta enorme, nunca tinha andado em uma bike daquele tamanho. Rolou um trabalho conjunto que é fundamental na busca por resultados”.


PEDALA, MOÇA: Voando em uma etapa contrarrelógio

NÃO FOI A PRIMEIRA VEZ que a ciclista mostrou sua garra. Antes do campeonato de montanha no Giro Rosa, Flávia já tinha tido alguns resultados expressivos. Neste ano, ela foi vice-campeã da volta ciclística internacional da Costa Rica e ficou com a medalha de bronze no campeonato brasileiro de ciclismo de estrada, que venceu no ano passado. Em 2013, foi vice no brasileiro e ficou em quarto no Pan-americano, disputado no México. Outro bom resultado de que Flávia se lembra é a 23ª colocação no mundial em Florença, na Itália, também em 2013. “Sei que dizer que cheguei em 23º não significa muito, mas foi uma colocação importante para mim, pois a prova foi muito desgastante, com um ritmo forte. Chegar no primeiro grupo já foi uma conquista”.

Flávia é uma brasileira híbrida. A carioca mora nos Estados Unidos desde a época da faculdade, quando cursou Educação Física na California State University. Devido a uma tendinite no ombro, abandonou os treinos pesados de natação, esporte que praticava desde a infância, e passou a jogar futebol no time da universidade. Sua equipe teve bons resultados, e Flávia continuou jogando até experimentar o triathlon, aos 25 anos. Correr, nadar e pedalar passaram a fazer parte da rotina dela, que foi conquistando provas e campeonatos. Flávia já se dedicava ao triathlon havia um ano quando, durante um treino informal em um pelotão composto principalmente por amigos, Jonathan “Jock” Boyer, o primeiro norte-americano a participar do Tour de France e hoje técnico do inspirador Team Rwanda, sugeriu que ela conhecesse Massimo “Max” Testa, um renomado técnico italiano de ciclismo, que acabaria tendo papel fundamental na carreira da brasileira.

O começo da história de Flávia e Max, porém, não foi um mar de rosas. Indo direto ao ponto, Max tentou convencê-la de que estava perdendo tempo no triathlon. Com 1,55 metro de altura, Flávia é considerada baixa para a natação em mar aberto, que favorece atletas de maior envergadura. Max apontou o problema e disse que ela se daria melhor no ciclismo. A princípio, Flávia não curtiu o comentário. “Achei um absurdo ele me dizer o que eu poderia e o que não poderia fazer”, diz, indignada, mas em tom de brincadeira, referindo ao hoje grande amigo. “Pensei: quem esse cara pensa que é? Não o conheço, como ele ousa dizer que eu não consigo nadar direito?”. A parceria deslanchou, e Flávia começou a treinar com Max de graça, pois na época não tinha recursos para pagar pela consultoria. “Foi Max quem realmente me levou para o ciclismo, ele sempre foi um ‘paizão’ para mim.”

A vida nos Estados Unidos proporcionou a Flávia oportunidades como atleta que, como ela mesma admite, dificilmente teria no Brasil. O uso de bicicletas de ponta, tecnologias de treino como túnel de vento e o contato com profissionais importantes do esporte aconteceram naquele país. O medo de assaltos a ciclistas, frequentemente vistos no Rio de Janeiro, praticamente não existe nas estradas norte-americanas onde ela treina. Sem falar na infraestrutura disponível, mais avançada nos EUA: “Ciclismo, como golfe ou tênis, é um esporte de elite, os equipamentos são caros. E não dá para competir com meninas que estão com bicicletas modelo 2015 usando uma bicicleta de 2014.”

Outros fatores positivos que a vida nos EUA trouxe à ciclista são a geografia do Colorado, onde mora, e a companhia do marido norte-americano, Nathan, durante alguns treinos. Meca dos amantes da natureza e dos esportes praticados ao ar livre, o Colorado é famoso por suas montanhas e florestas, ideais para treinos em desnível e cruciais para moldar uma “rainha da montanha”. E ter o companheiro ao lado, pedalando junto, é um incentivo com sabor especial. Nathan, 43, é corredor desde os 13 anos, e chegou a flertar com o ciclismo profissional antes de decidir seguir outra carreira. Hoje ele pedala com o time master da marca Specialized. “O fato de ele também ser ciclista é muito importante. Alguém que não conhece o esporte teria mais dificuldade em entender o tamanho do sacrifício que faço pela minha carreira. Ele é um dos meus maiores incentivadores”, explica.

Todo o esforço de Flávia parece estar levando exatamente para onde ela gostaria de estar: representando o Brasil, e da melhor maneira possível. Agora, os objetivos principais são os Jogos Mundiais Militares, que acontecem em outubro na Coréia do Sul, e, claro, as Olimpíadas de 2016, que acontecerão “em casa”. Flávia exalta a determinação e a força de vontade dos atletas brasileiros frente à falta de estrutura enfrentada por alguns deles. “O Brasil nunca foi uma potência esportiva devido à tecnologia de ponta disponível, mas sim devido à garra dos atletas.”

Os altos e baixos do esporte, no entanto, não são nem de longe suficientes para afastar Flávia da bike. Seus planos são “pedalar até quando der”. Desde que começou a se dedicar exclusivamente ao ciclismo, ela se apaixonou pelo esporte e nunca mais olhou para trás. Seu segredo para continuar sempre em frente é focar no que ela tem de melhor para dar. “Pedalar é uma oportunidade de crescer, de melhorar como pessoa, é mais do que um esporte. É como diz o ditado: ‘viver é como andar de bicicleta: temos que achar o equilíbrio correto’”.