Goela abaixo

Descer o curso de um rio para explorar vales fechados, onde a maioria das pessoas jamais pisará, é um esporte “anfíbio” conhecido como canionismo. No Brasil, apesar de pouco difundida, a modalidade tem história. Nosso repórter participou de uma expedição na Chapada dos Veadeiros (GO) para se interar sobre o assunto

Por Mario Mele

Fotos Alexandre Cappi

ENQUANTO CHECO O FREIO para mais um rapel na Catarata dos Couros, na Chapada dos Veadeiros (GO), ao meu lado Humberto Medaglia aponta para um poço abaixo de nós. E diz, em tom nostálgico: “Quando conquistamos este cânion, pulei daqui de cima”. Calculo um salto de mais ou menos 15 metros. Queda livre é algo com o qual uma parte das pessoas pode se acostumar, e penso que talvez eu também não tivesse problemas em me atirar dali após uns dias me adaptando à ideia. Em 2002, entretanto, quando Humberto protagonizou a cena, ele não tinha noção da profundidade do poço, muito menos se havia pedras ou galhos afundados, camuflados próximo à superfície. “Em uma conquista de cânions, agimos com precaução, porém também é importante ganhar tempo”, diz, sucinto, para justificar sua decisão naquela época. Aos 43 anos, Humberto é um dos maiores experts em canionismo no Brasil, com conquistas bem-sucedidas na Serra da Canastra (MG), na Cordilheira do Espinhaço (MG e BA) e na Chapada Diamantina (BA), além da Chapada dos Veadeiros. Meio sem querer, ele deixava claro para mim que seu esporte não é 100% movido a riscos calculados – um pouco de improviso e perigo faz parte do jogo.


TOBOGÃ: Descisa sem corda em trecho do cânion do Afluente Azul, em Goiás (Todas as fotos: Alexandre Cappi)

Humberto é um dos guias de uma expedição comercial que rolou durante uma semana do mês de julho na famosa chapada goiana, da qual eu fiz parte. Ion David, de 41 anos, também estava presente. Este experiente canionista é nascido em Anápolis (GO) e mora em Alto Paraíso, a “capital da Chapada dos Veadeiros”, desde 1991. Tempo suficiente para ele ter explorado cada palmo dos quase 30 cânions que já abriu e mapeou por lá. “Não é impressionante pensar que somente algumas pessoas já passaram por estas bandas?”, pergunta ele, com a empolgação de um novato no esporte, enquanto atravessávamos, a nado, um trecho confinado do rio Afluente Azul.

Através de sua agência, a Travessia Ecoturismo, Ion opera os rolês de maior imersão à natureza daquela chapada. Nenhum que se compare, no entanto, à expedição de canionismo. De longe, essa é a experiência mais desafiadora dentre todos os roteiros oferecidos pela Travessia. Apesar de ser acessível a pessoas mais inexperientes, como eu, o passeio envolve uma logística complexa para transportar acampamentos, suprimentos e, claro, clientes a lugares totalmente remotos. E ainda há os problemas de natureza humana a enfrentar: as áreas ao redor do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros estão na mira de movimentos sociais agrários, o que faz com que os proprietários se importem cada vez menos com a “política da boa vizinhança”, dificultando o acesso a rios e cânions locais. Às vezes, não adianta nem argumentar sobre o turismo de impacto zero oferecido pela Travessia; eles não parecem muito aí para esse tipo de desenvolvimento sustentável da região.

Com jogo de cintura, a expedição tem acontecido desde 2005 e é por meio dela que Ion pretende levar o canionismo ao maior conhecimento do público – algo que, de fato, vem conseguindo. O boca a boca só faz crescer a procura a cada ano. Seus clientes são homens e mulheres entre 16 e 60 anos, com perfis que variam absurdamente, entre o completo novato no mundo ao ar livre até canionistas com experiências fora do Brasil.

NESTE ANO, ION E HUMBERTO contaram com a ajuda de um terceiro guia de canionismo, o goiano Guilherme Predebom, de 32 anos. Natural de Pirenópolis, o moço é também canoísta extremo e, enquanto explora um cânion, sempre fica de olho em possíveis cachoeiras para dropar com seu caiaque. Conhecido pelo apelido de Chucky, o lendário boneco assassino, Guilherme é baixinho e atarracado, com uma testa arredondada quase sempre coberta pela franja de cabelo liso. Chucky precisou de muita coragem para atravessar um trecho arriscado, de 30 metros de extensão, pisando em pedras extremamente escorregadias na beira da cachoeira do Parafuso. Sua missão era instalar um “corrimão” de corda para que nós, os clientes, conseguíssemos explorar o rio dos Couros em total segurança, com mosquetões clipados na corda. A cachoeira desemboca em uma piscina natural estreita demais para suportar seu volume d’água descomunal, massacrando as pedras ao redor com um jato violento. Nem o canionista mais endiabrado teria uma segunda chance caso caísse ali dentro.


CÂNION DO MACACO: Iniciando o rapel na cachoeira da Escadaria (30 metros)

“O maior perigo no canionismo é a marcha aquática”, conta Chucky, no fim daquele dia, enquanto caminhávamos por uma parte rasa do rio dos Couros transpondo corredeiras sobre pedras soltas. Às vezes, ele para o grupo para explicar, na prática, que o melhor jeito de atravessar corredeiras é deitado, boiando de costas na água, deixando o corpo mole para aliviar os choques contra as pedras. Ele tem razão. Nesses trechos aparentemente mais fáceis, o risco de entalar um pé e quebrar o tornozelo é grande, e a remoção de alguém ferido nos confins da Chapada dos Veadeiros revela-se sempre um procedimento demorado e complexo.

Ion trabalha com técnicas verticais estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Ele carrega consigo um telefone satelital no fundo da mochila, revelando que há até um helicóptero de prontidão em Alto Paraíso para ser acionado em caso de emergência. Em todos estes anos de expedição, no entanto, o guia se orgulha em dizer que nunca houve qualquer acidente grave com seus canionistas. Antes de um rapel, ele gosta de tranquilizar a galera, mostrando os procedimentos de uma ancoragem tripla ou apresentando um novo equipamento que passou a usar para aumentar a agilidade da expedição. Ion ainda lembra que, na semana anterior, checou cada uma das chapeletas que ficam grampeadas à rocha e que, na prática, precisam sustentar o peso do corpo e os trancos durante as descidas pela corda.

Ele e Chucky costumam ir na frente, equipando e abrindo a via. Humberto se posta na saída de cada rapel, assumindo o cargo de “gerente de atrito”. Durante uma sequência de mais de dez rapéis, a corda sofre com os raspões na rocha. Então, para que o equipamento não friccione sempre no mesmo lugar e possa quebrar, ele solta alguns centímetros de corda entre um rapel e outro, garantindo assim que os atritos aconteçam em seções diferentes.


DE CIMA: Vista do topo da cachoeira da Catedral (50 metros)

O “gerenciamento de corda” é um procedimento de segurança básico e indispensável no canionismo. Quando Humberto acendia mais essa luz sobre seu esporte, ainda no primeiro dia de expedição, em minha cabeça a modalidade começava a tomar forma. Ela abrange muito mais que “apenas” vestir roupas de borracha, ter uma cadeirinha equipada com mosquetões e fitas e saber montar corretamente o freio oito para que as pessoas desçam até 80 metros pela corda, como no rapel que fizemos na cachoeira das Esmeraldas rumo ao interior do cânion do rio Afluente Azul. Minutos antes de explicar sua função, Humberto me ensinou a saltar de quase dez metros de altura para o interior de um poço do rio Macaco. “Durante a queda, mantenha os braços abertos para que o corpo permaneça em linha reta. Só no momento em que for entrar na água, coloque os antebraços em frente ao tronco formando um ‘X’”, disse. Não pensei muito. Dei um passo à frente e fui. Mas não devo ter fechado bem as pernas – outra recomendação para os saltos – e, já boiando no poço, tive que negociar contra um mal-estar decorrente do impacto na água.

Aguardando na fila para o próximo rapel – 55 metros, divididos em duas seções –, conheci Raquel de Mello. Aos 46 anos de idade, ela mora em Brasília e atualmente vive seu melhor momento no canionismo, esporte que pratica há dez anos. Raquel domina desde os nós exigidos para uma ancoragem segura até manobras de corpo para driblar uma corredeira mais nervosa. Durante a expedição, Ion queria vê-la expandindo os próprios limites, por isso incumbia-a de tarefas técnicas que demandavam alto grau de conhecimento e responsabilidade. Esta simpática professora de biologia acatava tudo sorrindo, desempenhando cada função com a prudência que o esporte exige. Dois meses depois, Raquel seria premiada no 13º Encontro Brasileiro de Canionismo, um reconhecimento por sua evolução na modalidade. Mesmo assim, ela não teve o menor problema em admitir que ainda precisava se habituar aos ‘rapéis molhados’. “A água caindo incessantemente na minha cara ainda me atrapalha um pouco”, disse, quando nos conhecemos. Já para mim, no canionismo nada poderia ser mais desafiador do que negociar com a altura, confiando em cada manobra que você faz com a corda. Ao ouvi-la revelando seus medos, dei-me conta de que tinha que muito que aprender sobre esse tipo de exploração.


FUNDAMENTOS: 1. Humberto salta de quase dez metros em poço no cânion do macaco

OS PRIMEIROS RELATOS de aventuras em cânions foram escritos no final do século 19, na França. Foi quando os espeleólogos Lucien Briet, Armand Janet e o célebre Édouard-Alfred Martel (pioneiro mundial na exploração de cavernas) acharam que descer pelas gargantas da cordilheira dos Pirineus, na divisa entre a França e a Espanha, seria uma grande aventura. Em 1905, inspirado pelas novelas surreais do escritor Júlio Verne, Martel e sua equipe realizaram a primeira descida completa pelo rio Verdon, um feito que para a época pareceu quase um conto de ficção. Não havia equipamentos específicos, como mosquetão, roupa de borracha, saco-estanque ou mochila com sistema de escoamento de água. Os acessórios disponíveis eram “emprestados” do montanhismo ou da espeleologia. Mas Martel já tinha claro em sua mente o fundamento número um do canionismo, que diz que “uma vez dentro de um cânion, a única saída é chegar até o fim”. Para a conquista do Verdon, seu time carregou uma escada gigante e um barco de madeira.

Hoje, além de acessíveis, os equipamentos estão cada vez mais leves. O único peso extra levado por nossa expedição foi um saco com uma corda reserva apelidado de “kit-bullying”: pelo nome, não é preciso nem dizer que foi o guia mais novo – no caso, Chucky – que a carregou.


FUNDAMENTOS: 2. Rapel na cachoeira da Catedral

Mesmo sendo considerado uma atividade autônoma e evoluída em termos técnicos, conquistar cânions ainda exige tomadas de decisões que, muitas vezes, não dependem só da experiência. Ion conta que, certa vez, teve que proibir que um integrante de sua expedição descesse até um poço para checar as condições de ancoragem porque eles passavam por um momento conhecido como “cascata de erros”. É quando uma sequência de descuidos começa a arruinar todo o clima da expedição, deixando até manobras aparentemente simples, como equalizar a tensão de uma ancoragem, bem suscetíveis a falhas.

“Abrir um cânion é como conquistar uma via de escalada, só que em sentido inverso”, eu disse a Ion quando precisei desescalar uma pedra de uns três metros durante a nossa marcha pelo rio Afluente Azul. Na real, pode ser mais trabalhoso. Na Chapada dos Veadeiros, o grande volume de água de um rio deixa poços e cachoeiras totalmente hostis, criando movimentos de refluxo que tornam esses lugares intransponíveis. E, se durante a conquista de um cânion a gravidade joga a favor, voltar geralmente não é uma opção. “Quando percebemos que estamos presos, recorremos a travessias laterais, ou instalamos corrimões para acessar outras linhas de descida”, explica Humberto. Nessas horas, até técnicas de espeleologia podem ser úteis para encontrar um caminho minimamente seguro.

De fato, o canionismo se tornou uma prática viável graças à exploração de cavernas. Até a década de 1970, quando os equipamentos de progressão em corda finalmente foram aperfeiçoados – uma evolução pensada para vencer obstáculos nas grutas –, as conquistas de cânions em geral estavam fadadas ao fracasso, porque quase sempre eram barradas por alguma grande cachoeira. Desde então, o que era conhecido como “espeleologia a céu aberto” ou “montanhismo em cachoeiras” vem ganhando novos adeptos, praticantes que se dedicam exclusivamente à modalidade, chegando a propor novos equipamentos, procedimentos e objetivos.


FUNDAMENTOS: 3. Mario, o autor desta reportagem, em momento de solidariedade

No Brasil, apesar de haver relatos de travessias na Serra Geral (na divisa entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul) que datam da década de 1950, o canionismo só surgiu com a roupagem atual em 1989. Naquele ano, um grupo de espeleólogos liderado pelo paulista Carlos Zaith (1959 – 2012) explorou o rio Quebra-Perna, no Paraná, inaugurando o mítico rapel da cachoeira do Buraco do Padre. Esta é considerada a primeira exploração brasileira nos moldes do canionismo. Em 1996, Zaith, que já organizava expedições comerciais de canionismo no país, novamente inovou ao participar da conquista da cachoeira da Fumaça, na Chapada Diamantina (BA), um monstruoso rapel de 340 metros. Na Chapada dos Veadeiros, o canionismo só chegou em 1997, ano em que uma expedição anfíbia desceu o rio São Miguel e conquistou o cânion Raizama. Também foi em Veadeiros onde aconteceu, em 2000, o 1º Encontro Brasileiro de Canionismo, mesmo evento em que foi criada a entidade representativa nacional do esporte, a Abcânion.

Por aqui, foi o rapel em cachoeira – que é apenas uma das técnicas do canionismo – que ficou famoso e ganhou centenas de adeptos. A aparente facilidade dessa atividade, também conhecida como cachoeirismo ou cascading, fez do “rapel molhado” um dos principais atrativos de ecoturismo da última década. Por outro lado, o canionismo ainda é um esporte tão pouco conhecido entre nós brasileiros que, ao contrário do surf ou do mountain bike, nem existe no dicionário. “Saber que há gente interessada em nosso esporte é o que mantém a chama acesa e o que me faz organizar, todo ano, esta expedição”, diz Ion. “Pode fazer as contas: quase não tenho lucro com isso.” Eu não recorri à calculadora, mas o fato é que, durante este roteiro de oito dias, que custa a partir de R$ 3.400 por pessoa, a imersão na natureza é total o tempo inteiro, e não há nem onde gastar dinheiro. Além disso, no valor estão inclusos todos os custos com hospedagem (em pousada e acampamento), alimentação e deslocamento, além do pagamento da equipe da Travessia.

NO SEXTO DIA DE EXPEDIÇÃO, no meio de uma sequência de sete rapéis ao longo do rio dos Couros, aterrissamos no poço do Capacete via uma tirolesa montada com cordas. Que diversão! Depois nadamos uns dez minutos até cruzar um poço de uns 200 metros de diâmetro, totalmente inacessível ao turismo comercial. Em seguida, encaramos uma marcha aquática de mais de quatro horas até o Santuário Lua (santuariolua.com), um hotel isolado no coração da Reserva da Biosfera do Cerrado, com cozinha vegetariana e chalés rústicos e confortáveis, que está mais acostumado a receber retiros de ioga.

Como recompensa pela energia gasta naquela semana em que exploramos três cânions (Macaco, Afluente Azul e Couros), tendo que acordar às 4 horas da manhã, passamos duas noites no Santuário Lua. No primeiro dia por ali, Ion nos deu as opções: ficar curtindo aquela cênica praia de rio em frente ao hotel, ou então caminhar meia hora por dentro de um vale até uma seção mais agitada do rio dos Couros, onde Chucky ministraria um workshop sobre técnicas em corredeiras e outros pré-requisitos do canionismo. Claro que todos ficaram com a segunda opção.


FUNDAMENTOS: 4. Rapel monstro na cachoeira das Esmeraldas

Seria a oportunidade para cada um ali vencer – mesmo que por um placar apertado – alguma limitação identificada durante a expedição. No meu caso, saltar de dez metros de altura finalmente se tornou prazeroso. Também aprendemos a atravessar uma corrente a nado, a “ler” uma corredeira e a reconhecer – e se livrar de – movimentos de água como drosagem e sifão. Para Chucky, o primeiro passo sempre é não se apavorar.

Já no caminho de volta à civilização, Ion me confidenciou que o maior aprendizado que teve veio de um canionista francês, durante um curso avançado que fez uns anos atrás: saber ver e entender as pessoas. “A atitude é sempre a mesma, perceptível desde a postura com que o cara desce do carro até a desenvoltura com que ele monta a segurança para rapelar uma cachoeira de 50 metros”, exemplificou. Do ponto de vista do aluno, significa que a evolução continua depois que saímos do cânion, e se prolonga para a vida toda.

Matéria originalmente publicada na Go Outside 125, de dezembro de 2015.