No fim de abril, o terremoto que atingiu o Nepal matou quase nove mil pessoas e destruiu casas e diversos monumentos em Katmandu – alguns considerados patrimônio mundial pela Unesco.
Recentemente, a Administração Chinesa de Estudos, Cartografia e Informação Geológica afirmou ainda que o Everest foi deslocado três centímetros para o sudoeste. Segundo este mesmo órgão, a montanha de 8.848 metros de altitude aumentou três centímetros nos últimos 10 anos, além de se mover quase 40 centímetros para o nordeste. Pelo visto, a nova série de terremotos o empurrou no sentido contrário ao movimento normal daquelas placas tectônicas.
O terremoto de 7,8 graus de magnitude também foi responsável pela maior tragédia da história da maior montanha do mundo. O montanhista cearense Rosier Alexandre, que tentava escalar o Everest pela segunda vez, estava na montanha no momento do terremoto. De volta ao Brasil, ele escreveu, recentemente, um relato detalhado sobre os momentos de aflição que viveu por lá, principalmente quando perdeu o contato com seu filho, Davi Saraiva, que havia ficado no acampamento base. Leia a seguir:
“NO DIA 29 DE MARÇO DE 2014 PARTI DO BRASIL ao Nepal com o objetivo de escalar o Everest e concluir os Sete Cumes, a escalada da maior montanha de cada continente. No dia 4 de abril, partimos de Katmandu em um voo para Lukla e, de lá, começamos uma caminhada de nove dias até o campo base do Everest, a 5.350m de altitude – é onde realmente começa a escalada propriamente dita. Após dois dias de repouso, começamos os treinamentos para a subida. Dia 17 de abril fizemos o nosso Puja (ritual hindu para celebrar um evento). Foi um momento conduzido por um Lama, que foi até o campo base só para esta solenidade. Pedimos a bênção aos deuses da montanha, uma espécie de autorização para que a escalada corra bem – e também uma iluminação para vencermos o longo e perigoso caminho que encontraríamos pela frente.
Na madrugada seguinte, centenas de sherpas de várias expedições deixaram o campo base e começaram a subida em direção ao primeiro acampamento avançado, para montar o acampamento e preparar a subida dos escaladores, que ocorreria um ou dois dias depois. Mas às 6h45 da manhã, uma avalanche matou 16 sherpas e deixou dezenas de feridos. Esta foi a maior tragédia da história do Everest até então – em 94 anos de exploração. Um fato que culminou com uma grave crise política entre o governo do Nepal e os sherpas. Todas as expedições naquele ano foram canceladas e, consequentemente, o término do meu projeto estava adiado.
Retornei ao Brasil e comecei uma nova preparação para uma nova expedição ao Everest na temporada seguinte. E, finalmente, no dia 30 março de 2015, voltei ao Himalaia. Tudo se repete: a chegada a Kathmandu, a aproximação, a chegada ao campo base, o Puja… O que aconteceu de diferente foi que o nosso grupo havia crescido. Em 2014, havia apenas quatro escaladores. Em 2015, éramos 12. Meu filho, Davi, de 22 anos, estava me acompanhando, mas ficaria no campo base durante a minha expedição. No quarto dia, um colega fraturou o tornozelo e precisou ser resgatado de helicóptero. Foi a nossa primeira baixa.
CALMO: Rosier no
O Puja foi um momento solene e festivo. Estávamos felizes com o início da nossa expedição. Após 10 dias de intenso treinamento para travessias de escadas sobre gretas, escaladas de paredes de gelo e procedimentos de sobrevivência em caso de avalanches, nos sentíamos prontos para a subida. No dia 23 de abril, às 2h da manhã, iniciamos a escalada do trecho de maior risco de avalanches em todo o Everest, a cascata de gelo de Khumbu. Subimos utilizando a nova rota aberta neste ano, que foge da trilha onde aconteceu a terrível avalanche de 2014. Ainda na madrugada, tivemos nossa segunda baixa. Ao se deparar com a cascata de gelo, um colega desistiu da expedição e retornou ao campo base. Em seguida, em total segurança, o restante do grupo chegou ao primeiro acampamento avançado, a 6.120m de altitude. Acampamos sobre uma plataforma de gelo rodeada de gretas por todos os lados, mas que ainda é considerada segura para os padrões do Everest.
O DIA 24 FOI DE REPOUSO E RECUPERAÇÃO. No dia seguinte, acordamos cedo. O tempo parecia normal, apesar de nevar mais do que o esperado. Mas isso não chegava a ser um problema. Por conta do frio e do tempo fechado, tomamos café um pouco mais tarde e, às 9h40, seguimos nosso caminho. Seria o dia de menor esforço físico de toda a escalada. Saímos de 6.120m, do campo 1, para 6.550m, do campo 2. Além de um desnível de apenas 430m, nos primeiros 30 minutos o desafio é um pequeno sobe e desce. Depois, mais 40 minutos de zigue-zague, contornando imensas gretas, até finalmente seguirmos em linha reta, com uma subida suave e sem ondulações. Tudo ia bem, enquanto caminhávamos com tempo fechado pela neve que caía sem parar. Nosso grupo de 10 alpinistas estava dividido em três subgrupos, cada um liderado por um guia e auxiliado por sherpas. Eu estava no primeiro grupo, liderado por Garrett Madison, o guia líder da expedição. O segundo grupo estava uns 500 metros atrás e, o terceiro, mais atrás ainda. Mas a neve que caía não permitia o contato visual com nenhum deles. A comunicação era feita só por meio de rádio.
Por volta de meio dia, escutamos um forte estrondo. Paramos e tentamos identificar de onde vinha o som. Era uma avalanche, que acontecia bem à nossa direita. Segundos depois, outro estrondo. Era outra avalanche, dessa vez à nossa esquerda. Na sequência, mais cinco estrondos. Foi tudo muito rápido, e a nevasca não nos permitia ver exatamente aquelas avalanches. Apenas sabíamos que aconteciam por todos os lados. Até que a plataforma de gelo começou a tremer sem parar. Parecia que uma fenda seria aberta no gelo e seríamos sugados. Garrett tentava identificar de onde vinham as avalanches. Ele pediu para o grupo se aproximar e se preparar para o impacto. Colocamos o buff (lenço) sobre o nariz e a boca, um procedimento utilizado para evitar a asfixia pela neve.
NEPAL: Povo espiritual
Foram minutos aterrorizantes. Escutávamos aqueles barulhos das avalanches e sequer sabíamos identificar de onde vinham. Por sorte, só o vapor d’água chegou até onde estávamos.
Passado o sufoco, estávamos ofegantes. Garrett então decretou um break para o lanche e hidratação. Enquanto isso, ele entrava em contato com os demais guias, que pelo rádio confirmaram ter passado pela mesma situação. Apesar do susto, todos pareciam bem e em segurança. Eu já havia presenciado outras avalanches, mas nada daquela magnitude. Por volta de 12h30, quando estávamos quase chegando ao campo 2, Garrett entrou em contato com o campo base via rádio e foi informado que uma avalanche de proporções gigantesca havia descido da encosta do Monte Pumori (7.161 m de altitude), e que o campo base do Everest estava destruído. Nossa médica, Eve, estava gravemente ferida e, além disso, várias pessoas estavam desaparecidas.
Praticamente tudo havia sido destruído, e apenas a estação móvel de rádio funcionava, ainda que de maneira precária. Somente depois de vários contatos informaram que meu filho Davi havia sido resgatado. Ufa! Ele estava bem e havia sido levado para Gorak Shep (5.150m), o povoado logo abaixo do campo base. Junto com ele estava Michael, cinegrafista da rede NBC, e Ron, nosso colega australiano que havia desistido da escalada na Cascata de Gelo. Por volta das 13h, recebemos informações de que havia ocorrido um terremoto, e que as avalanches foram simultâneas – uma realidade a praticamente todas as montanhas do Nepal. Posteriormente, soubemos que em Katmandu havia milhares de mortos, e foi só naquele momento que entendemos que não havia sido as avalanches que fizeram a plataforma de gelo tremer, mas sim o contrário: o terremoto foi o que provocou as diversas avalanches simultâneas.
Minha preocupação com o Davi aumentou. Depois de muitas tentativas, consegui finalmente ligar ao Brasil e falei com a Danubia (minha esposa). Informei-a sobre o que sabia até aquele momento. Em menos de um minuto, a ligação caiu e a tensão ia aumentando, à medida que recebíamos notícias e entendíamos a dimensão do problema.
A cascata de gelo ruira completamente, e logo ficamos presos nos 6.500 metros de altitude. No campo base havia muitos mortos. Garrett nos reuniu para dizer que podia levar dias até a Cascata de Gelo ser reconstruída. E nossos suprimentos de comida ainda não tinham subido, portanto, precisávamos racionar tudo, inclusive papel higiênico.
Às 15h, eu estava começando a arrumar a barraca e a terra voltou a tremer fortemente. Novas avalanches… A situação só parecia piorar.
No final da tarde, Garrett nos juntou mais uma vez e informou que a médica Eve não resistira aos ferimentos e faleceu. O clima não podia ser pior, com todos chorando, em choque. Nossa saída dali só poderia ser feita por dois caminhos: ou numa operação com helicópteros, ou pela Cascata de Gelo. Mas falar em dias para recuperar a Cascata de Gelo é ser muito otimista – seriam necessárias pelo menos duas semanas. Na reunião seguinte, Garrett nos informou que seis helicópteros estavam em Lukla, só esperando pelo bom tempo para voar até nós. Mesmo assim, sabíamos que um resgate naquela altitude é sempre de grande risco. Os seguros podem até cobrir, mas isso não diminui o risco da operação.
O clima estava ruim, com previsão de mais três ou quatro dias de nevascas. A tensão aumentava, mas todos colaboravam e se mostravam confiantes. No meu caso, a falta de notícias sobre o Davi me deixava cada vez mais preocupado. Aquela noite foi, possivelmente, a pior da minha vida. Eu não conseguia mesmo falar com o Davi, nem com minha família, e por isso não fechei os olhos nem por um só minuto.
AMANHECEU MAIS UM DIA. O sol brilhou por poucos minutos, mas a tensão continuava: por volta das 13h, a terra voltou a tremer. Estávamos na barraca-restaurante e tudo chacoalhou. Todos se entreolharam assustados, sem saber o que fazer. Ninguém falava nada; e nem precisava, na real. À tarde, vencido pelo cansaço e a tensão, entrei na barraca e dormi por umas duas horas. No final da tarde, a nevasca deu lugar a um lindo por do sol, que nos fazia pensar por uns segundos que nada de errado havia acontecido. Mas nem isso aliviou o clima de tensão, o medo e as incertezas.
À noite, Garrett nos disse que, na manhã seguinte, nosso destino seria o campo 1, onde, apesar de ser menos seguro, teríamos chances de ser resgatados. O dia amanheceu bom. Eu havia passado mais uma noite às claras, a noite mais fria que me recordo na vida. Levantei às 6h45min sob um frio cortante, mas com a esperança de um resgate bem-sucedido. Equipei-me e fui tomar café.
Meus pés e mãos começaram a esfriar de forma assustadora, acho que era o cansaço me levando ao esgotamento. Tomamos café com as mochilas prontas e, em seguida, descemos com o coração apertado, com medo de mais tremores e avalanches. Havia muita neve acumulada na via, e as gretas estavam cobertas, o que aumentava o risco. Seguimos em silêncio total, bem diferente do habitual, quando conversávamos bastante. Às 11h17, cheguei ao campo 1. Alguns amigos já estavam lá e outros ainda estavam por vir. Observei o movimento de dois helicópteros e Garrett me indicou o local da concentração. Falou que nosso resgate seria feito pelo helicóptero preto – e não pelo vermelho. De dois em dois, fomos sendo retirados da montanha em menos de três minutos – num trecho em que a escalada dura entre 6 e 10 horas. Bem na minha vez de embarcar, a aeronave precisou reabastecer. Foi quase mais uma hora de espera – o que não é nada para quem se encontrava preso na montanha e com os recursos se esgotando.
Na hora do meu embarque, a cena era assustadora. Não se respeita nenhum protocolo de segurança, afinal estamos mergulhados numa tragédia. Foi um dos resgates de helicóptero mais complexos já realizados em montanha. Menos de 10 segundos após ele tocar o esqui no gelo, eu já estava dentro, sentado no piso, ao lado de minha colega norueguesa Vibe, que sorria de alegria enquanto eu ainda estava desesperado para ver o Davi.
Segundo informações via rádio, ele estava em Gorak Shep, duas horas de caminhada abaixo do campo base. Quando desembarquei, encontrei o Bhola, chefe dos sherpas, que me abraçou alegre por ver mais uma pessoa salva e me disse: ‘O Davi está bem ali, em nosso acampamento’, apontando a direção.
Eu caminhava cambaleando, escorregando nas pedras. Pude ver os escombros deixados pelas avalanches. Eram restos de barracas, roupas rasgadas, pacotes de comida e documentos, tudo espalhado na neve. Calçados perdidos, capacetes quebrados, pedras cobertas de sangue. Pedaços de computador e máquinas fotográficas. Parecia ser o final de uma guerra sangrenta, bem diferente de quando cheguei àquele acampamento, que me acolheu por 11 dias. Àquela altura, eu chorava sem parar. Precisei pedir ajuda três vezes para encontrar Davi, que estava garimpado coisas no gelo. Quando me viu, parecia não acreditar. Arregalou os olhos e correu na minha direção. Nos abraçamos, choramos e sorrimos juntos por alguns minutos. Logo depois, me engajei na garimpagem de restos de equipamentos espalhados. Perdi muita coisa: sacos de dormir, roupas, mochila, dinheiro e computador. Mas fiquei feliz ao achar minhas bags, alguns equipamentos e até dois passaportes dos meus companheiros – um material que se deslocado mais de 100 metros de distância. Eu parecia um mendigo, com um saco nas costas lotado de peças e pedaços de coisas identificados como sendo de meus amigos. Cheguei a encontrar o HD de um colega a mais de 200 metros, identificado por uma etiqueta. Alguém achou minhas botas e um pé do meu tênis. Meu sofrimento foi sendo aliviado conforme passei a cuidar de alguns feridos.
Até hoje o Nepal está destruído e o mundo está de luto. Só em Katmandu, foram mais de oito mil mortos e, no interior do país, vilas ainda estão devastadas. Precisamos ajudar a este povo tão bom e tão sofrido a se recuperar. Estou planejando fazer algo significativo para ajudá-los, e espero contar com os amigos sensíveis a esta causa tão nobre.” (Rosier Alexandre, junho 2015)
PAI E FILHO: Rosier (esq.) e Davi (Fotos: Divulgação)
ACAMPAMENTO BASE: Local onde Davi se protegeu da avalanche
CENAS MARCANTES: Manter a fé, apesar da tragédia…
Mais um dia estava chegando ao fim, e precisávamos dar as buscas por encerradas e ir a Gorak Shep, pois no Campo Base não havia sobrado uma só barraca inteira para servir de abrigo. Quando começamos a caminhada, que percebi o tamanho da minha fome. Tinham se passado 17 horas e eu só havia tomado um café. Mas me sentia bem por estar ao lado do Davi – sem contar que estávamos vivos e saudáveis. Durante os quatro dias seguintes, enquanto fazíamos o caminho de volta, vimos o verdadeiro terror em vilas destruídas, casas caídas, trilhas desabadas e até monastérios parcialmente demolidos.
Gravado na memória
templo de Pashupatinah