Como a surfista cearense Silvana Lima superou lesões e falta de grana e, mesmo sem patrocínio, retornou revigorada ao panteão das melhores do mundo
Por Kevin Damasio
RESTAVAM APENAS NOVE MINUTOS para o término da bateria, e Silvana Lima precisava de uma combinação de duas boas ondas para continuar no Gold Coast Pro, na Austrália, a primeira etapa do Circuito Mundial que rolou em março deste ano. A prova marcou o retorno da brasileira à elite mundial do surf feminino. Na repescagem, a surfista de 30 anos estava confiante, considerando aquela a melhor fase de seu surf. No caso de Silvana, isso tem um significa bastante especial: ela enfim se recuperou de uma lesão no joelho esquerdo – mais um obstáculo na trajetória da moça de infância e adolescência repletas de adversidades.
Silvana cresceu em uma cidadezinha litorânea no Ceará chamada Paracuru. Morava com a família em uma casa simples à beira da praia. Dormia em redes estendidas pela casa. Na mesa, a ausência de uma alimentação equilibrada fez com que sofresse de subnutrição até os 17 anos. A dieta resumia-se a peixe: com farinha, com arroz, com tapioca… “Peixe com tudo”, ri. Essa primeira fase da vida, entretanto, ajudou a moldar sua personalidade lutadora. “A determinação que tenho vem daquelas dificuldades. Não me envergonho de onde vim. Isso me dá mais força de vontade para crescer na vida e ser feliz.”
É DO BRASIL: Silvana na Gold Coast Pr 2015, na Austrália, one consquistou nota 10 (Foto: Kirstin/ASP).
A cearense sempre adorou praticar esportes. Capoeira, futebol e, finalmente, surf, pelo qual ela se apaixonou logo cedo. Aprendeu a pegar onda em uma tábua de madeira, aos 7 anos. Os irmãos mais velhos já surfavam e tinham pranchas, que ela tomava emprestado sempre que podia.
Silvana apaixonou-se pelas ondas e tomou gosto pelas provas amadoras de sua região. A última etapa do circuito cearense acontecia em frente a sua casa, e ela e os irmãos competiam, com bons resultados. Até que a menina despertou a atenção dos surfistas Pablo Paulino, Adilson Mariano e Lucinho Lima. Foram eles que a indicaram para o shaper carioca Udo Bastos, que ansiava em investir em atletas nordestinos e resolveu apostar nela, convidando Silvana para morar no Rio de Janeiro. Sem pestanejar, a garota aceitou, em 2002. Assim começava a carreira de uma das surfistas mais vitoriosas do país. Ela mudou-se para um quartinho anexo à fábrica de pranchas de Udo e passou a ganhar diversos eventos amadores.
Naquela época, a estrutura do surf competitivo nacional fervia. Silvana, por sua vez, desejava mais que simplesmente se dar bem nos campeonatos. “Queria ajudar minha família.” Não demorou muito para ganhar um carro como prêmio por uma vitória, depois vendido para comprar uma casa maior para a mãe.
A maior glória de Silvana em terras tupiniquins foi o bicampeonato brasileiro em 2004 e 2005, no SuperSurf, cotado como o maior circuito nacional do mundo. Nele, a cearense surfava contra consagradas atletas, como as tetracampeãs do Circuito Brasileiro, a carioca Andrea Lopes e a cearense Tita Tavares.
A dupla competia mundo afora, e Silvana, inspirada, começou a trilhar o mesmo caminho em mares estrangeiros. Entrou para a elite mundial em 2006, aos 21 anos, e foi a nona melhor da temporada. Terminou 2007 como terceira no ranking mundial. Naquela época, entretanto, emergiu o reflexo da subnutrição dos tempos de Paracuru: a frágil resistência física.
Ao finalizar uma manobra, estirou a perna esquerda e, na mesma hora, rompeu-se o ligamento cruzado anterior do joelho. Precisou enfrentar a primeira das três cirurgias de sua carreira. Mesmo assim, protagonizou disputas acirradas pelo título mundial com a australiana Stephanie Gilmore, consagrando-se a segunda melhor do planeta nas temporadas de 2008 e 2009. Após duros treinamentos diários na academia, suas dores passaram, dando lugar a uma fase de maior autoconfiança.
EM AGOSTO DE 2011, Silvana rompeu parcialmente, e pela segunda vez, o ligamento colateral do joelho esquerdo; em outubro, passou por outra cirurgia; em fevereiro do ano seguinte, competia a primeira etapa do Tour 2012, na mesma Gold Coast que impressionou em março de 2015. O revés, então, passou para o outro joelho: machucou e teve de operar.
Ausente em seis das sete etapas da temporada, ela ganhou vaga para permanecer na elite do ano seguinte. “Só que já não me sentia 100%. O joelho doía, não estava tão forte”, recorda. Malhava para manter a musculatura, mas não dispunha de tempo para treinar dentro d’água, em sessões de freesurf. Além disso, se surfasse três vezes ao dia, o joelho incomodava. “Ficava dolorido, inchava para caramba. E isso me atrapalhou muito. Perdi a vaga para 2014.”
Iniciava-se, ali, mais uma fase de superação na vida de Silvana Lima. Desta vez, ela precisou recomeçar do zero: disputar o WQS, a divisão de acesso do surf, para voltar à elite no ano seguinte. Precisava recuperar a confiança em meio à turbulência. Por sorte, contava com o apoio da amiga Tatiane Rodrigues, que há oito anos a ajuda a administrara carreira.
Com baixas premiações em dinheiro, o WQS é um circuito custoso para o atleta, e muito cruel para quem não tem patrocínio. A experiência de Tatiane, formada em administração, foi fundamental no planejamento para a temporada. Ela aconselhou: “Vender o apartamento no Rio de Janeiro é a única forma de competir, já que até agora não apareceu patrocínio”. Ao valor do imóvel somaram-se colaborações de financiamento coletivo no projeto que a dupla criou, intitulado Silvana Free, que englobam desde ajuda financeira a auxílio em hospedagem e passagens aéreas. Gastaram, ao todo, R$ 150 mil, e deu certo: a surfista ganhou o WQS e garantiu o retorno à elite. “Se não fosse a Tatiane, eu estaria preocupada com várias coisas. Entrevistas, reserva de passagens, hoteis, carro a alugar e dirigir… Quem vai me jogar na mídia? Quem vai me filmar? Quem vai ver meu erro naquela onda? Ela é meu braço direto.”
NO GOLD COAST PRO, NA AUSTRÁLIA, em março, o cronômetro da bateria contra Sally Fitzgibbons alcançava o terço final. A australiana, vice-campeã mundial em 2010 e 2011, liderava com 15,60 pontos contra apenas 2 da brasileira. No início da bateria, Silvana deixara passar uma onda, que Sally pegou e transformou na melhor nota da bateria até aquele momento: 9,63. “Preciso ir para o tudo ou nada”, pensou a cearense, que sabia a receita para ganhar fôlego na disputa: voar. Poucas surfistas têm confiança para arriscar um aéreo enquanto vestem a lycra do World Tour. Raras são as que dominam a técnica, como Silvana. “Meu foco era o aéreo mesmo”, diz. “Eu sabia que, se voasse, conseguiria uma boa nota.”
Então uma onda intermediária deu as caras. Aparentemente renderia uma nota boa, mas ninguém esperava o que aconteceu a seguir. Silvana decolou em um aéreo reverse alto. Na aterrissagem, a conversa dela com a própria mente prosseguiu: “Nossa, Silvana, tu mandou muito bem! Agora é continuar na onda e manobrar até o final, que com certeza virá uma boa nota”. Após terminar sua manobra, não comemorou. Ainda havia muito a se fazer. Independentemente de sua nota, precisava de outra onda boa para assumir a liderança.
No momento em que se posicionou no lineup ao lado de Sally, o locutor anunciou: nota 10 unânime, dada pelos cinco juízes (no surf, a nota mais alta e a mais baixa são descartadas, e vale a média das três restantes, por isso existem o “10” e o “10 perfeito”.) Sally ficou apreensiva, mas ainda liderava e detinha a prioridade da escolha da onda. Silvana, por sua vez, precisava de 5,96 pontos. Entretanto esse não era seu único desafio.
“Preciso passar as baterias para conseguir o dinheiro necessário para competir na etapa seguinte”, conta Silvana. Sem patrocínio desde 2012, quando terminou seu contrato com a Billabong, ela ainda vive apuros financeiros. “Preocupo-me em surfar, treinar direito e também com a fatura do cartão que vai vencer no próximo mês. É chata essa parte.”
Para se bancar nas dez etapas do World Tour, Silvana precisa de cerca de R$ 170 mil para pagar viagens, hospedagem, alimentações e todos os custos de treinamento e saúde de um atleta profissional. A cearense recebeu propostas de patrocínio de algumas marcas, mas, segundo ela, até o momento nenhuma se dispôs a arcar com o custo integral de correr o circuito, e por isso foram recusadas. Por sorte as premiações aumentaram. Passar duas baterias e ficar em nono – resultado que alcançou três vezes em quatro etapas neste ano – rende US$ 10.500 dólares.
A DOIS MINUTOS DO FINAL da bateria, uma onda tomou o horizonte. “Essa mesmo!”, pensou Silvana, enquanto remava para o outside. Agrediu aquela direita sem piedade; com naturalidade, aplicou bastante pressão em manobras difíceis. Resultado: nota 7,73 e a liderança. “Até comemorei”, lembra Sil. “Fiquei feliz, mas sabia que a Sally é uma menina constante, que surfa muito.” Na sequência, a australiana surfou bem a última onda da bateria. Já fora do mar, as duas aguardavam a última nota. Sally precisava de 7.35, mas tirou 6,67. “Foi uma sensação maravilhosa. Para mim, aquela repescagem com a Sally teve cara de final.”
Após esse duelo, Silvana instantaneamente voltou a ser cotada como concorrente ao título mundial de 2015– ainda faltam seis etapas, sendo a última em Maui, no Havaí, com janela de 22 de novembro a 6 de dezembro. “Ela é uma competidora determinada e nunca desiste”, observa Sally, que conheceu Silvana em 2003, quando a australiana, então com 12 anos, entrou para a equipe da Billabong. A cearense já chegou mostrando um surf revigorado e parou apenas nas quartas de final contra a hexacampeã mundial Stephanie Gilmore, que não poupou elogios à cearense: “Silvana nos inspira a surfar melhor que os homens. Puxa o nível em todas as manobras. Admiro-a desde nossas primeiras competições no Tour”.
Silvana retorna à elite em um momento singular para o surf feminino. Se antigamente a atitude de dropar as ondas prevalecia, hoje o que impressiona é a evolução na performance, com estilo aliado a manobras cada vez mais radicais e potentes. Na liderança dessa geração, estão a havaiana Carissa Moore e as australianas Tyler Wright, Sally e Steph. Na Gold Coast, Silvana demonstrou ter o mesmo potencial; passadas quatro etapas (a última no Rio de Janeiro, no começo de maio), ocupa a 11ª posição no ranking mundial e ainda precisa de outro grande resultado para entrar na briga pelo título.
A brasileira já sabe o que deve corrigir para melhorar. “Ter mais calma, não querer ser tão afobada”, observa. “Se eu puxar demais meu limite, acabo caindo na onda e sem a nota que gostaria. Então é ter paciência na hora da bateria e ser radical no momento certo.”
Relembrando o evento na Gold Coast, que marcou seu retorno às top 17 do mundo, Silvana avalia sua performance: “Eu mostrei naquele campeonato para o que eu vim. Soltei meus aéreos, consegui nota 10. Então as meninas viram que ressurgi com um surf mais moderno. Eu não voltei ao WCT para somar; voltei para brigar pelo título. É uma vontade que tenho desde que entrei na elite”. Batalhar pelo que se quer, disso Silvana entende de sobra.
MANDA BEM: A cearense em um floater, manobra que domina como poucas (Foto: Arquivo pessoal).
BRAÇO DIREITO: Silvana (à esq.) com a amiga Tatiane Rodrigues, que
ajuda a administrar sua carreira (Foto: Arquivo pessoal)