Por Christopher Mc Dougall
SE JÁ ASSUSTA pensar em competir com Kilian Jornet Burgada, o espanhol de 27 anos que é atualmente o maior monstro das corridas de montanha, experimente namorar com ele. Em uma manhã de setembro de 2013, Kilian partiu para uma ascensão “leve e rápida” pelos Alpes franceses com sua namorada, a ultracorredora sueca Emelie Forsberg, de 27 anos. Para suas adversárias, Emelie é meio que um Kilian de saias. Linda, charmosa e superforte – e, como ele, chegou jovem e desconhecida à modalidade e agora reina absoluta como campeã do mundo, vencedora regular das provas da Skyrunner World Series, uma seleção de algumas das corridas de montanha mais duras do planeta. Ela também é atleta de nível internacional de esqui alpino, mas, quando se juntou a Kilian para a tal corrida matinal, Emelie experimentou algo novo: o medo.
Eles já tinham escalaminhado durante horas, usando pouco mais que seus tênis de corrida em trilha e calças de trekking. Optaram pela Frendo Spur, uma rota clássica de montanhismo que sobe por rampas congeladas de 50 graus de inclinação em Chamonix, na França, quando pouco antes de chegarem ao cume o tempo fechou. O casal perdeu tempo procurando o caminho certo, o que fez com que Emilie tivesse que lutar contra os perrengues. “Fiquei com muito frio e não conseguia me concentrar direito”, lembra a moça. “Eu estava muito tensa e me sentia em um beco sem saída.” Eles pediram ajuda a uma equipe de resgate, que, com ar de saco cheio, rapelou até onde estavam os dois corredores e os levaram a um lugar seguro. “Fico com muita raiva quando vejo o aumento contínuo do número de pessoas usando tênis por aqui, apesar das nossas recomendações”, disse o chefe do resgate, bem enfurecido. “Os esportes de montanha devem ser praticados com equipamento adequado.”
Kilian estava agradecido pela ajuda, mas ignorar avisos desse tipo já se transformou em um hábito para ele. Em 2012, o catalão estava a centímetros de distância de seu ídolo – Stéphane Brosse, o lendário esquiador alpino francês – quando um tombo acabou com a vida de Stéphane enquanto os dois tentavam realizar uma travessia veloz do maciço do Mont Blanc. Kilian se recuperou depressa da tragédia indo ainda mais alto, rápido e leve. Ele recrutou novamente um francês, Mathéo Jacquemound, para outra tentativa, desta vez para subir e descer o Mont Blanc no verão de 2013, mas nessa ocasião seu parceiro sofreu danos mais leves ao cair em uma pequena fenda durante a descida. Incapaz de acompanhar o ritmo do catalão, Mathéo disse a Kilian que continuasse correndo sozinho, e mesmo assim Kilian bateu o recorde de ascensão mais rápida naquela montanha. Um mês depois, abocanhou outro recorde em solitário: um bate-e-volta ao topo do Matterhorn, entre a Suíça e a Itália, em menos de três horas. Em junho de 2014, ele zarpou para o Denali, no Alasca, a montanha mais alta da América do Norte. A ascensão até seu cume (6.168 metros) costuma demorar duas semanas, mas Kilian conseguiu terminar a proeza em 11 horas e 48 minutos, quase cinco horas mais rápido que o recorde anterior.
TUDO ISSO – as subidas com pouquíssimo equipamento a picos que até então demandavam longas expedições para serem alcançados e a emoção de escolhas de microssegundos no topo de cristas de rocha quebradiça, de onde você morre se cair – transformou Kilian na estrela de um movimento que a maioria das pessoas nem mesmo sabe que existe, mas que em breve escutará muito sobre ele: FKTs (do inglês Fastest Known Times). Melhores tempos conhecidos.
Os FKTs não possuem regras, horários e geralmente não têm testemunhas. Você escolhe um lugar, um momento, e vai. Não tem que esperar o dia de uma corrida, a retiradas de kits ou as saídas em massa, apenas o desafio de encarar uma trilha clássica ou inventar seu próprio caminho por meio de regiões pouco conhecidas indo o mais rápido que puder. Desde que Kilian estabeleceu o recorde de velocidade do monte Kilimanjaro, na África, em 2010 (7 horas e 14 minutos ida e volta), a busca por FKTs em trilhas icônicas e picos míticos se tornou algo imprescindível para a construção da credibilidade de ultra-atletas. FKTs parecem ser uma ideia nova, mas se tratam na verdade de um retorno aos gloriosos dias nos quais não havia tantas competições no esporte, e o que realmente importava era o brilho nos olhos dos fanáticos por endurance. Por exemplo, antes da criação da prova Western States Endurance Run (de 100 milhas, ou 160 quilômetros, na Califórnia), o norte-americano Gordy Ainsleigh, precursor das ultradistâncias, já estava se perguntando se seria capaz de correr essa distância em ritmo forte. Outros corredores também já se desafiavam, para ver se conseguiriam correr centenas de quilômetros por regiões duríssimas como o Vale da Morte, nos EUA, debaixo de um calor de mais de 50oC.
FKTs não te darão medalhas olímpicas nem reconhecimento oficial. Na maioria dos casos, ninguém saberá ou se importará se você acaba de estabelecer um novo recorde – ninguém exceto você e seus amigos. Quando, recentemente, o parceiro da ultracorredora norte-americana Jenn Shelton desistiu no meio do caminho durante uma tentativa de FKT nos 389 quilômetros da famosa trilha John Muir, Jenn se surpreendeu ao fazer uma curva e encontrar Scott Jurek esperando-a. Um dos caras mais respeitados e experientes das corridas de ultradistância tinha ficado sabendo que ela e seu namorado estavam com dificuldades, então juntou seus equipamentos e zarpou para o Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia, para acompanhá-la até o final. Ela terminou em quatro dias e nove horas, rápido o suficiente para conquistar o segundo melhor tempo feminino no percurso, além de respeito por toda a vida. “Foi uma das piores noites da minha vida, que passei com um dos caras mais fodões que eu conheço”, Jenn tuitou mais tarde.
Mas o movimento do FKT pode mudar de rumo e sair do ostracismo no próximo semestre. Kilian irá tentar chegar ao cume do Everest (8.848 metros) sem oxigênio, carregando apenas uma delgada mochila abastecida com a quantidade mínima de comida, água e equipamentos de proteção, para tentar estabelecer um novo recorde de velocidade na montanha mais alta da Terra. Kilian ainda não decidiu qual será exatamente seu percurso ou o ponto de partida, mas tem um tempo em mente: umas 20 horas subindo, mais ou menos 35 horas entre subir e descer. Da base ao topo em um final de semana.
A ASCENSÃO DE KILIAN a astro polivalente da corrida de montanha não surpreende muito os que já vinham prestando certa atenção na modalidade na última década. Ele foi campeão mundial de sky running (corrida em percursos com subidas bem acentuadas) seis dos últimos sete anos e também dominou algumas das corridas de ultradistância de maior prestígio – como a Western States ou a Ultra-Trail du Mont-Blanc – e deixou seus adversários comendo poeira em um monte de outras competições mais curtas, incluindo a Pikes Peak Marathon, no Colorado (EUA), e o campeonato mundial de esqui alpino. Durante sua estreia, neste ano, na Hardrock 100, considerada a corrida de ultradistância mais dura dos Estados Unidos, ele virou um shot de tequila no meio da prova e fez um pouco de hora em um dos postos de apoio porque estava sozinho e queria que o segundo colocado o alcançasse e lhe fizesse companhia. Uma vez completada a socialização, ele apertou o ritmo para aniquilar o antigo recorde do percurso em 40 minutos.
Kilian insiste em dizer que ainda é um aprendiz. Sem técnico ou planilhas de treino específico, ele prefere desaparecer nas montanhas todos os dias durante sete ou oito horas, normalmente sozinho, mas parando com frequência para trocar uma ideia sobre as trilhas e suas condições com trekkeiros e escaladores que encontra pelo caminho. “É importante manter os ouvidos abertos”, ele me disse por Skype, direto de Chamonix, na França, onde costuma passar os verões. “Você precisa ser humilde.” E mostrar humildade, como Kilian fez durante o resgate ao lado de Emelie. “Nesse esporte o que importa é se aprimorar, não vencer”, explica. “Você nunca aprende nada com uma vitória.”
Durante sua infância e juventude nos Pirineus, Kilian, que é filho de um guia de montanha, desenvolveu diferentes formas de se locomover por vários tipos de terreno. Em subidas muito inclinadas, quando todo mundo costuma andar, Kilian endireita as costas e reduz a amplitude de suas passadas a um sapatear que faz parecer que ele está correndo sem sair do lugar. Na verdade, ele está usando os flexíveis tendões de suas pernas para obter impulso extra montanha acima.
Outras descobertas de Kilian:
A gordura é nossa amiga. Ele foi um dos primeiros ultracorredores a reduzir o consumo de calorias em corridas longas, contando, no entanto, com a gordura corporal como fonte de energia mais confiável e praticamente inesgotável. Durante seu circuito de quase 12 horas no monte Denali, Kilian ingeriu meio litro de água e um único gel de carboidrato.
A prática de outras modalidades esportivas te ajuda a se superar. Diferentemente de muitos ultracorredores propensos à exaustão, Kilian faz muito mais que percorrer quilômetros intermináveis em trilhas. Ele esquia durante o inverno, corre durante o verão e escala na primavera e no outono. Sente-se igualmente à vontade sobre esquis e entre cordas de escalada, e é tão rápido manuseando uma piqueta quanto correndo por trilhas serpenteantes. Variar de esporte abre seus olhos para novas técnicas. O esqui alpino, ele descobriu, gera uma maior velocidade de passada na corrida: “Você aumenta a força das pernas, então pode correr nos downhills dando passos mais amplos”.
Para ganhar mais foco, acrescente diversão. Kilian compete quase todos os finais de semana do ano – 25 provas de esqui, 15 de corrida –, o que o força a estar sempre em forma e concentrado no momento da competição. Quanto mais ele compete, mais se diverte: em sua primeira Western States Endurance Run, Kilian estava disputando a liderança com os outros dois favoritos quando saltou de uma pedra e bateu os calcanhares como Fred Astaire. “Foi de propósito?”, perguntei. Ele riu. “Sim, você tem que fazer algo engraçado. O que fazemos não é sério.”
KILIAN SE MANTÉM reservado quando lhe pergunto detalhes sobre sua tentativa de cravar um recorde no Everest. Ele não se aprofundou muito em explicações sobre o equipamento ou a estratégia de alimentação que usará, mas revelou um detalhe tentador. Para tornar sua aposta mais “lógica”, segundo ele próprio, Kilian planeja começar a uma altura bastante inferior aos 5.364 metros do acampamento base, de onde os corredores que já tentaram esse recorde haviam partido. Em vez disso, Kilian começará de algum dos vilarejos localizados mais abaixo, acrescentando a sua ascensão mais de 4.260 metros de desnível e os quilômetros de uma maratona.
“Uau!”, vibra o ultracorredor e montanhista norte-americano Marshall Ulrich ao escutar o plano do catalão. Marshall, de 63 anos, é o cara mais das antigas dos FKTs, o grande mestre tanto do montanhismo quanto das corridas de ultradistância, e tem um currículo ainda mais audacioso que o de Kilian – duvida? Então encontre alguma outra pessoa que tenha corrido os mais de 720 quilômetros do Vale da Morte sem apoio, alcançado todos os Sete Cumes (as sete montanhas mais altas da Terra) na primeira tentativa e chegado ao topo do Everest e corrido os 235 quilômetros da Badwater no mesmo verão. Marshall já era um montanhista experiente quando escalou o Everest pela primeira vez e, mesmo assim, levou cinco semanas. “A maioria das pessoas demora dias para caminhar até o acampamento base”, diz Marshall. “E ele vai subir até lá correndo? Caramba!”
Do ponto de vista do gerenciamento de riscos, é complicado decidir se Kilian deveria ser aplaudido ou desencorajado. Se ele se der bem no Everest, uma geração de ultracorredores começará de repente a aprimorar suas habilidades de esqui e alpinismo, carregar suas enxutas mochilas e partir para a zona da morte dos picos mais altos do mundo em busca de recordes similares. Quando pergunto se esse tipo de atrevimento poderia levar muita gente a se arriscar por um FKT, Marshall não titubeia. “Acho isso fantástico”, diz. “Esse garoto não vacila diante de bobagens. Ele é superinteligente e tem uma experiência inacreditável para sua idade. É reservado, não petulante. Kilian deve ter uma poderosa voz aventureira interior que fala com ele o tempo todo.”
A previsão de Marshall Ulrich: “Ele vai arrebentar!”.
CORAGEM: Kilian treina corrida em montanha (Foto: divulgação)
VAI PRA CIMA: As corridas em subidas são parte fundamental do treino do atleta
catalão (Foto: divulgação)
GENTE FINA: Com humildade e tranquilidade, Kilian se firma como lenda da corrida
em trilha (Foto: divulgação)
LEVEZA: Sem planilhas de treino, ele se prepara correndo apenas em montanhas
(Foto: divulgação)