Sangue na areia


(FOTO: Jason Bradley)

Por Matthew Power

NÃO PASSAVA DE OITO DA NOITE de 30 de maio de 2013, mas a praia já estava completamente às escuras. A lua não tinha nascido ainda sobre Playa Moín, um trecho de 24 quilômetros com mangues e palmeiras localizado no litoral caribenho da Costa Rica. Um jipe 4×4 sacolejava por uma trilha bem selvagem atrás da praia. As luzes portuárias de Limón, a maior cidade dessa costa, brilhavam no horizonte a 10 quilômetros de distância. O silêncio era total, exceto pelo barulho tranquilo das ondas e pelo esforço do motor para cruzar a areia.

No banco do passageiro estava Jairo Mora Sandoval, um ativista ambiental costarriquenho de 26 anos. Com cabeleira negra e barba desalinhada, vestia roupas escuras e uma lanterna de cabeça, utilizada para avistar os ninhos de tartaruga-de-couro na praia. Almudena, uma veterinária espanhola amiga de Jairo, estava no banco do motorista. As demais passageiras eram norte-americanas: Rachel, Katherine e Grace, universitárias que tinham vindo trabalhar no Costa Rican Wildlife Sanctuary [Santuário de Vida Selvagem da Costa Rica], uma ONG que resgata animais em perigo. Almudena era a veterinária residente, e as norte-americanas, voluntárias. Durante o dia, elas cuidavam de animais como bichos-preguiça, micos e aves. Mas trabalhar com Jairo significava ter de enfrentar também o turno da noite. Ele comandava um programa da ONG dedicado ao resgate de tartarugas-de-couro ameaçadas de extinção, que toda primavera precisam arrastar seus corpanzis de 300 quilos até a Playa Moín para por seus ovos à noite.

O isolamento da praia faz dela um local ideal e, ao mesmo tempo, perigoso para procurar ninhos. A mesma escuridão que atrai as tartarugas, que ficam desorientadas com luzes artificiais, oferece proteção para atividades humanas menos agradáveis. Nos últimos anos, a costa caribenha pouco povoada se tornou um paraíso para tudo que é ilegal, de pequenos roubos até tráfico de cocaína da Colômbia e de maconha da Jamaica. Além disso, durante décadas a Playa Moín tem sido um destino para os hueveros – literalmente, “homens dos ovos” –, caçadores ilegais que saqueiam os ninhos das tartarugas e vendem seus ovos como afrodisíacos, por US$ 1 cada. Conforme a criminalidade ao longo da costa caribenha foi aumentando, o mesmo aconteceu com a caça ilegal de ovos, o que ajudou a dizimar a população de tartarugas-de-couro. Segundo a maioria das estimativas, restam menos de 34 mil fêmeas férteis em todo o mundo.

Desde 2010, Jairo tem vivido no santuário e patrulhado a praia para uma organização não-governamental chamada Wider Caribbean Sea Turtle Conservation Network (Rede de Conservação de Tartarugas Marinhas do Grande Caribe), conhecida pela sigla em inglês Widecast e presente em 43 países. Sua estratégia era se antecipar aos hueveros coletando os ovos de ninhos recém-postos e levando-os a uma incubadora em um terreno particular do santuário. Esse era um trabalho extremamente perigoso. Todo caçador ilegal da Playa Moín conhecia Jairo, e confrontos eram frequentes – uma vez ele pulou de uma caminhonete em movimento para se atracar com um huevero.

Rachel, Grace e Almudena já tinham acompanhado Jairo em patrulhas a pé várias vezes nas semanas anteriores (preocupadas com sua segurança, todas as quatro mulheres pediram para não usarmos seus sobrenomes). Eles não haviam tido maiores problemas se movendo devagar a pé, mas também não acharam muitos ninhos intocados. Nesta noite, Jairo havia convencido Almudena a pegar um carro alugado. Ela estava preocupada com os caçadores ilegais, mas ainda não tinha visto uma só tartaruga-de-couro, e Jairo era bem persuasivo. Sua paixão era contagiante, e os dois tinham começado um romance. Almudena se sentia atraída pela energia sem limites e pelo comprometimento dele com a causa. “Tem alguma coisa nessa praia que pega a gente de jeito”, ele lhe havia dito.


PROFISSÃO PERIGO: Vista da Playa Moín e, abaixo, Jairo Mora Sandoval
(FOTO: Adam Wiseman)


(FOTO: Christine Figgener)

A AREIA ERA FUNDA DEMAIS para o jipe, então Jairo desceu do carro e caminhou em direção à praia, desaparecendo na noite. A escuridão de Moín é essencial para as tartarugas marinhas. Após saírem de seus ovos durante a noite, os bebês tartarugas seguem a brancura das ondas, que são a visão mais clara que têm naquele momento. Os machos passam a vida inteira no mar, porém as fêmeas, guiadas por instintos de localização, vêm à praia a cada dois ou três anos para botar ovos, muitas vezes nas mesmas praias onde nasceram.

Por volta de 22h30, Almudena recebeu um telefonema: Jairo tinha encontrado uma tartaruga-de-couro. As quatro mulheres correram para a praia, onde viram uma grande fêmea enchendo um buraco incubador com areia usando as nadadeiras traseiras. Jairo estava próximo dela, junto com vários hueveros. Um era fácil de reconhecer, um homem de 36 anos chamado Maximiliano Gutierrez. Com barba e dreadlocks longos castanho-avermelhados, “Guti” era uma presença familiar na Moín.

Jairo havia forjado um acordo relutante com Guti e alguns outros caçadores ilegais regulares: se chegassem a um ninho ao mesmo tempo, eles dividiriam os ovos. Após medir a tartaruga – tinha cerca de 1,80 metro –, Jairo e Rachel levaram metade do ninho, cerca de 40 ovos do tamanho de bolas de bilhar, e os colocaram em um saco plástico. Então Guti foi embora e a tartaruga se arrastou de volta à arrebentação.

Quando voltaram à estrada, uma patrulha policial se aproximou. Os policiais alertaram Jairo que tinham cruzado com alguns sujeitos perigosos mais cedo naquela noite. Depois foram embora enquanto Jairo e as mulheres seguiram para o sul, na direção do santuário, a apenas 10 quilômetros dali. Logo viram um tronco de palmeira caído sobre a estrada estreita – um truque que os hueveros costumam usar para atrapalhar as patrulhas policiais. Jairo desceu para tirar o tronco do caminho enquanto Almudena passava dirigindo. Assim que Jairo colocou o tronco de volta no lugar, cinco homens saíram das trevas. Lenços cobriam seus rostos. Eles gritaram para todos colocarem as mãos para cima e olharem para baixo. E então pegaram Jairo.

“Cara, eu sou da Moín!”, protestou ele, mas os homens o jogaram no chão. Os rostos mascarados se juntaram na frente da janela de Almudena. Os homens exigiram dinheiro, joias, telefones, as chaves do carro. Tiraram Almudena do carro e a revistaram, e as norte-americanas ficaram no veículo enquanto os homens o saqueavam, apanhando tudo de valor, incluindo os ovos de tartaruga. Almudena viu dois dos homens jogarem Jairo no bagageiro. As quatro mulheres foram apertadas no banco de trás com um homem mascarado esparramado sobre elas. Enquanto o motorista manobrava o jipe, Almudena esticou o braço trás do banco e sentiu Jairo segurar sua mão. Ele apertou-a com força.

O motorista parou do lado de um barraco na selva, e os homens, alegando estarem procurando por celulares, mandaram as mulheres levantarem as blusas e abaixarem as calças. Os mosquitos aproveitaram para ir para cima delas. Depois de ser revistada, Almudena viu de soslaio dois dos homens irem embora com o jipe. Jairo ainda estava no bagageiro.

As quatro jovens ficaram sentadas em troncos atrás do barraco com dois de seus captores. Eles pareciam novos, não mais de 20 anos, e eram faladores demais para criminosos. Disseram que entendiam o que os ambientalistas estavam tentando fazer, mas precisavam alimentar suas famílias. Um deles afirmou que Jairo “não respeitava as regras da praia”.

Os homens anunciaram que iam apanhar alguns cocos, saíram e nunca voltaram. Depois de uma hora, as mulheres decidiram fugir dali. Caminhando juntas, elas foram até a praia e seguiram para o sul na direção do santuário. Estavam aterrorizadas e chocadas, mal falavam e se moviam no piloto automático. Duas horas depois, finalmente, chegaram ao portão, mas não encontraram qualquer sinal de Jairo. Almudena começou a chorar. Um zelador chamou a polícia em Limón, e logo uma carreata corria para o norte pela estrada da praia. Às 6h30 da manhã, o rádio da polícia avisou que o carro de Almundena havia sido encontrado, enterrado até o eixo na areia. Havia um corpo ao seu lado.

Jairo foi encontrado nu, com o rosto virado pra baixo na praia, suas mãos amarradas nas costas e um grande corte atrás da cabeça. A causa oficial da morte foi asfixia – ele havia inspirado areia até o fundo dos pulmões.


Hueveros na Moín
(FOTO: Adam Wiseman)


Roger Sanchez (esq.) espera uma tartaruga colocar ovos
(FOTO: Adam Wiseman)

A NOTÍCIA SE ESPALHOU DEPRESSA. Uma enxurrada de mensagens no Twitter elegeu Jairo um mártir do ambientalismo semelhante a Chico Mendes, assassinado em 1988. A BBC, o The New York Times e o The Washington Post noticiaram o fato. Uma petição online iniciada pela ONG Sea Turtle Restoration Project exigindo justiça da presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla, reuniu 120 mil assinaturas. Paul Watson, o fundador da Sea Shepherd, ofereceu US$ 30 mil para qualquer um que pudesse identificar os assassinos. “Jairo não é mais só uma estatística de assassinato. Agora ele é um ícone”, Paul escreveu.

Também havia no ar uma amarga sensação de que esse assassinato seria ruim para a economia do país. Há muito autodeclarada “capital mundial do ecoturismo”, a Costa Rica depende dos viajantes internacionais para 10% de seu PIB. “O que aconteceria se as jovens voluntárias norte-americanas também tivessem sido assassinadas?”, escreveu um dono de hotel em uma carta aberta à comunidade de ecoturismo do país. “A Costa Rica teria um enorme e duradouro problema de marketing.” Não muito depois, a presidente Laura Chinchilla jurou, em sua conta no Twitter, que “não haveria impunidade” e que os assassinos seriam pegos.

Essa missão recaiu sobre os ombros de investigadores do Organismo de Investigación Judicial (OIJ), o equivalente costarriquenho do FBI ou da Polícia Federal brasileira, além do departamento de polícia de Limón. O OIJ tentou rastrear os celulares roubados das vítimas, mas eles pareciam ter sido desligados e seus cartões removidos. Almudena, Grace, Katherine e Rachel prestaram depoimentos antes de deixar o país, mas ficou claro que encontrar outras testemunhas seria um desafio.

Moín é cercada por casas paupérrimas espalhadas atrás de muros altos. É o tipo de lugar onde os vizinhos conhecem os negócios uns dos outros, mas não falam disso, principalmente com policiais. Os hueveros responderam aos investigadores do OIJ com silêncio. Quando os investigadores conversaram com Guti, ele estava tão bêbado que mal podia falar.

Mas nem todo mundo ficou de bico fechado. Depois do assassinato, Vanessa Lizano, fundadora do Santuário de Vida Selvagem da Costa Rica, dedicou-se a lutar pelo legado de seu colega. Eu lhe mandei um e-mail perguntando se poderia visitá-la, e ela aceitou me receber.

Fui de avião até San José, capital da Costa Rica, duas semanas após o assassinato, e cheguei ao santuário depois do pôr-do-sol. Vanessa, de 36 anos, destrancou um portão alto adornado com uma borboleta pintada com cores brilhantes. “Bem-vindo a Moín”, ela disse com uma voz teatral e o cabelo castanho-avermelhado amarrado em um rabo-de-cavalo. A propriedade cobria cerca de 12 acres de floresta tropical e estava salpicada de viveiros de animais. Pinturas da fauna da Costa Rica enfeitavam muros e paredes. Vanessa abriu um viveiro e pegou um bebê macaco bugio, que enrolou sua cauda ao redor do pescoço dela como uma cobra. “Eu fico esperando o Jairo aparecer,” disse. “Acho que a ficha ainda não caiu.”

VANESSA CUIDAVA DE UMA AGÊNCIA de modelos em San José em 2005 quando ela e seus pais decidiram abrir uma fazenda de borboletas perto da praia. Ela alugou um pedacinho de terra e se mudou para Moín com seu filho pequeno, Federico, ou “Fedé”, seus pais e uma preguiça-de-três-dedos chamada Buda. Eles gradualmente transformaram a fazenda em um santuário ecológico, abrigando preguiças e macacos resgatados, uma coruja com uma asa só e um par de araras-cangas confiscadas de um narcotraficante. Fedé transportava tatus em seus caminhões de brinquedo e dividia a cama com Buda.

Vanessa operava o santuário com sua mãe, Marielos, e um rodízio de voluntários internacionais, que pagavam US$ 100 por semana por quarto e comida – um modelo comum para o ecoturismo em pequena escala da Costa Rica. O santuário nunca deu lucro, mas Vanessa adorava trabalhar com os animais.

Então, em 2009, ela encontrou várias tartarugas-de-couro mortas na praia, esquartejadas por causa de suas bolsas cheias de ovos. “Eu fiquei possessa de raiva”, conta. Ela participou de um programa de treinamento sobre proteção de tartarugas marinhas em Gandoca, oferecido pela ONG Widecast. Foi lá que conheceu Jairo, que vinha trabalhando com a organização desde os 15 anos de idade. Vanessa batalhou para que a ONG operasse um programa de proteção de tartarugas em seu santuário e, em 2010, Jairo se mudou para Moín para ajudar a cuidar desse projeto.

Eles logos desenvolveram algo semelhante a uma rivalidade de irmão. Normalmente um brincalhão e paquerador inveterado, Jairo ficava muito sério durante uma patrulha. Ele adorava as tartarugas profundamente, mas parecia gostar ainda mais de uma boa briga. Vanessa teme que sua teimosia tenha tornado as coisas ainda piores na noite em que foi morto. “Jairo não se entregaria sem lutar”, disse. “Ele era muito, muito cabra-macho.”

Vanessa me contou que agora sua missão é tornar realidade a ideia de Jairo de transformar Playa Moín em um parque nacional. Ela advogava em nome da área de preservação a qualquer um que a ouvisse – forças policiais, governo, mídia. Era uma campanha frustrante. O programa de proteção às tartarugas tinha sido fechado depois do assassinato, e a caça ilegal prosseguia impune. Enquanto isso, Vanessa parecia ter certeza de que o pessoal em volta da Moín sabia quem eram os assassinos, mas tinha pouca fé na polícia. Na noite do assassinato, quando Erick Calderón, o chefe de polícia de Limón, ligou para informar que Jairo havia sido morto, ela gritou com ele. Desde 2010, Erick vinha fornecendo, de modo intermitente, escolta policial aos patrulheiros do santuário, e em 2013 ele tinha suspendido a regalia por causa da escassez de recursos. Antes do assassinato, Vanessa e Jairo haviam pedido proteção repetidas vezes, mas não foram atendidos. O assassinato, disse Vanessa, tinha sido culpa de Erick.

Mas havia acusações de sobra para distribuir a outras pessoas. A comunidade do ecoturismo culpava Vanessa e a Widecast por colocar voluntários em risco. A família de uma das norte-americanas, Grace, exigiu que a Widecast os reembolsasse pela câmera, telefone e tênis roubados. Vanessa me disse que as acusações eram injustas. “Os voluntários sabiam no que estavam se metendo”, afirma. “A gente dizia: ‘A decisão é sua, caso queira cair fora’.”

Ainda assim, ela estava tomada pela culpa. “Eu sei que Jairo estava com medo, porque eu costumava tirar sarro disso”, lembrou. “A gente zoava um com o outro por causa do medo. Sempre brincávamos que iríamos morrer na praia.” Ela dizia a ele que queria que suas cinzas fossem levadas até a arrebentação por uma tartaruga marinha. Jairo era menos sentimental. “Você pode fazer o que quiser com meus restos mortais, eu não me importo. Só beba bastante. Faça uma festa.”

Nós nos sentamos em uma cozinha a céu aberto, e Vanessa segurou a cabeça entre as mãos. “Se você precisa culpar alguém, culpe a mim”, disse. “Fui eu que mostrei a praia para Jairo, e ele se apaixonou.”


MISSÃO: Vanessa no santuário onde Jairo trabalhava
(FOTO: Adam Wiseman)

JAIRO NASCEU EM GANDOCA, uma cidadezinha costarriquenha perto da fronteira com o Panamá. Ele se apaixonou pela vida selvagem logo cedo, graças a seu avô, Jerónimo Matute, um ambientalista que ajudou a fundar o Refúgio para Vida Selvagem de Gandoca-Manzanillo, uma área de proteção de ninhos de tartarugas. Jairo começou a soltar filhotes quando tinha 6 anos. Quando se tornou empregado em tempo integral da Widecast, passou a enviar grande parte de seu salário para sua mãe, Fernanda, e terminou o ensino médio por correspondência.

Em 2010, mudou-se para Moín, onde morava em um quartinho em cima da cozinha da organização. Alguns dias, Jairo e os voluntários – a maioria estudantes universitários de outros países – contavam os ninhos saqueados ou monitoravam a incubadora do santuário; à noite, saíam em patrulha. Jairo era claro sobre os riscos envolvidos, e vários voluntários optavam por não ir, porém outros participavam da patrulha avidamente. Não parecia tão perigoso assim, principalmente no começo, quando a polícia de Limón os acompanhava.

Desde o começo houve tensões. Durante a época da desova, os hueveros escondiam-se em barracos na floresta. A maioria era desesperadamente pobre, muitos eram viciados, e todos consideravam Vanessa e Jairo como competidores de seu ganha-pão. Vanessa não tinha problemas em delatar os caçadores ilegais à polícia.

A tartaruga-de-couro normalmente bota 80 ovos fecundados e os cobre com uns 30 ovos sem gema. Os caçadores ilegais consideram os ovos sem gema inúteis e os descartam. Vanessa e Jairo muitas vezes colocavam esses ovos em cima de vidro quebrado, fazendo os caçadores ilegais se cortarem quando cavavam em busca dos bons ovos. Vanessa até botava voluntários para quebrar vidro a ser carregado em baldes até a praia. De vez em quando ela encontrava recados obscenos rabiscados na areia. Ela escrevia de volta: “VAI SE FODER”.

Vanessa ficou presa no fogo cruzado entre a polícia e os caçadores ilegais na praia quatro vezes, sendo que em uma delas teve que se proteger atrás de uma tartaruga-de-couro. Em abril de 2011, ela estava dirigindo sozinha uma noite quando se deparou com uma árvore bloqueando a estrada. Dois homens com facões saltaram da floresta e correram na direção de sua caminhonete. Ela fugiu de ré na estrada de terra, enquanto os homens com facões a perseguiam, com os olhos cheios de ódio.

Na primavera de 2012, o chefe de polícia Erick Calderón suspendeu as escoltas policiais. Limón tinha a mais alta taxa de crimes da Costa Rica, e ele já estava enfrentando muita dificuldade protegendo a população humana da cidade. Jairo e Vanessa passaram a empregar táticas mais conciliatórias. Contrataram dez hueveros e pagaram a cada um deles um salário de US$ 300 por mês, usando dinheiro da taxa dos voluntários. Em troca, os caçadores desistiriam da atividade ilegal e trabalhariam protegendo o meio ambiente. Guti foi um dos primeiros a aceitar a proposta. Os hueveros andavam pela praia com os voluntários, recolhendo ninhos e levando-os à incubadora. Era uma bela queda no orçamento – um huevero esforçado pode conseguir até US$ 200 em uma noite –, então Vanessa defendeu a ideia de os caçadores ilegais eventualmente trabalharem com ecoturismo, guiando turistas até os locais de desova. Mas o dinheiro para o projeto acabou logo, e Vanessa não se surpreendeu quando a caça ilegal de ovos aumentou logo depois.

Por volta dessa mesma época, uma ameaçadora gangue de caçadores ilegais apareceu em Playa Moín. Eram muito mais organizados que os hueveros beberrões típicos. O grupo largava os homens pela praia de van, usando celulares para alertar uns aos outros da chegada da polícia. Eram liderados por um nicaraguense chamado Felipe “Renco” Arauz, agora com 38 anos, com um longo histórico criminal, incluindo tráfico de drogas e sequestros.

Em abril de 2012, um bando de homens armados com AK-47 invadiu a incubadora e amarrou cinco voluntários. Eles deram coronhadas em um primo de Jairo e roubaram todos os 1.500 ovos que tinham sido coletados naquela temporada. Jairo, que estava em patrulha na praia, voltou e encontrou os voluntários amarrados. Ele perdeu a cabeça e saiu dando socos na parede. Então se vingou entrando em um frenesi de coleta de ovos, acompanhado de proteção policial armada: coletou 19 ninhos em três noites, repondo completamente os ovos que tinham sido roubados. Mas, algumas semanas depois, Erick suspendeu a escolta mais uma vez, e nenhuma prisão foi feita.

Um mês após o ataque à incubadora, em maio de 2012, os perigos se tornaram demais até mesmo para Vanessa. Ela estava em um restaurante no centro de Limón quando viu um homem tirando uma foto de Fedé com seu celular. Ela o reconheceu como um huevero e o confrontou com raiva: “Sou eu que vocês querem. Deixem o garoto fora disso”. O homem riu dela. Foi a gota final. Mudou-se com Fedé para San José, retornando a Moín sozinha nos fins-de-semana.

Jairo, no entanto, ficou lá. E, quando a temporada de 2013 começou em março, ele voltou às suas patrulhas – a maior parte do tempo sozinho, às vezes com voluntários. Nessa altura, o programa de voluntários era uma operação toda do Jairo. As norte-americanas, que chegaram em abril, sabiam dos riscos, mas, segundo Rachel, Jairo nunca lhes contou do ataque à incubadora no ano anterior. Ela lhe confiou totalmente a segurança de sua vida. “Eu já tinha saído inúmeras vezes com Jairo e nunca me sentira em perigo de verdade”, diz ela. “Eu sabia que ele não deixaria nada acontecer comigo.”

Mas, poucas semanas antes de sua morte, Jairo dissera a um repórter de jornal que as ameaças estavam aumentando e que a polícia ignorava os pedidos de ajuda da Widecast. Ele telefonava para sua mãe, Fernanda, toda noite antes de sair em patrulha, para pedir a benção. Quando Vanessa viu Fernanda no enterro de Jairo, pediu-lhe perdão. “Querida, Jairo queria estar lá. Era o que ele amava fazer”, respondeu Fernanda.


GUARDIÕES: Roger e Marjorie, que patrulham a Moín atualmente
(FOTO: Adam Wiseman)

CLICK-CLICK. O policial a meu lado, jovem e assustado no meio da escuridão, engatilhou o ferrolho de sua M4, carregando um cartucho de munição. De minha posição agachada, vejo dois pontos verdes flutuando – as miras brilhantes de uma 9 mm. A cerca de 90 metros, a polícia havia localizado duas figuras. Hueveros.

Eu estava acompanhando uma patrulha. Após o assassinato de Jairo, o programa de voluntários para as tartarugas havia sido suspenso, porém dois jovens protegidos de Jairo, Roger Sanchez e sua namorada, Marjorie Balfodano, ainda caminhavam pela praia toda noite com a polícia a seu lado. Roger, de 18 anos, e Marjorie, de 20, são estudantes. Estão descalços e com lanternas presas na cabeça. Não eram muita coisa para intimidar um caçador ilegal, mas Roger não tinha medo. Antes de sairmos, ele me disse que planejava patrulhar a Moín pelo resto da vida. Quando avistamos os hueveros, já estávamos caminhando havia três horas junto com uma escolta de cinco policiais da Fuerza Pública de Limón, todos equipados com coletes à prova de balas, pistolas e carabinas M4. Talvez fosse apenas uma jogada de publicidade de Erick, mas era reconfortante vê-los ali. Já tínhamos encontrado uma dúzia de ninhos saqueados, que não passavam de buracos rasos repletos de cascas quebradas. Os hueveros, aparentemente, estavam a poucos passos na nossa frente.

Então o policial à minha direita notou duas figuras e sacou sua arma. Três policiais nos disseram para esperar e foram confrontar os dois homens. Após vários minutos, nós nos aproximamos. Os policiais apontaram suas luzes para os caçadores ilegais e os fizeram virar os bolsos do avesso. Um estava usando um gorro e o outro tinha longas tranças de dreadlocks avermelhadas – Guti. Estavam bêbados, e os policiais pareciam revistá-los para mostrar serviço. Os dois não estavam com contrabando, então os policiais os deixaram ir cambaleando pela praia.

Após algum tempo o rádio soou. Outra viatura da polícia havia encontrado duas tartarugas-de-couro botando ovos. Corremos até o local. Na escuridão, uma corcova do tamanho de uma piscina de criança virada estava se movendo lentamente na areia. Os grandes olhos lacrimejantes da tartaruga olhavam de lado para o mar enquanto escavava um ninho na praia com suas nadadeiras traseiras, tão ágeis como mãos enfiadas em meias. Em cada custoso movimento, ela cuidadosamente erguia um pequeno punhado de areia e a colocava na beirada no buraco. Roger segurava um saco plástico em antecipação, pronto para quando ela soltasse sua ninhada.

Então o amigo bêbado de Guti veio cambaleando até nós, se ajoelhou ao lado de Roger e ofereceu um discurso inebriado sobre a biologia das tartarugas marinhas. Os policiais o ignoraram, e o animal assustado se esticou para frente, arrastando seu corpanzil sem pôr qualquer ovo. Mais algumas esticadas e a carapaça rígida da tartaruga sumiu sob as ondas.

Mas a noite não foi uma perda completa. A uma pequena distância dali, uma segunda tartaruga-de-couro havia posto seu ninho. Logo uma segunda viatura parou e entregou a Roger um saco com 60 ovos. Pegamos uma carona de volta ao santuário e a um galpão de madeira cheio de geladeiras de isopor. Roger abriu uma delas, jogou areia da praia no fundo e começou a colocar os ovos lá dentro. Notei que havia uma caneta enfincada em um das geladeiras. Ao seu lado, iniciais estilizadas haviam sido rabiscadas no isopor: JMS. Ao todo, devia haver uns 1.000 ovos nas geladeiras – quase todos coletados por Jairo.


CRIME: Cabana de hueveros perto de Moín
(FOTO: Adam Wiseman)

ALGUNS DIAS DEPOIS, fui ver Erick Calderón na sede da polícia em Limón. De baixa estatura e cara de menino, ele não parece ser um “homem da lei”, e tinha sido claramente afetado pela pressão que o assassinato provocara em seu departamento. Desde o crime, contou Erick, a polícia vinha patrulhando a Moín toda noite. “Eu quero tornar a praia um lugar mais seguro, controlar a caça ilegal e educar a população para que não haja mais demanda pelos ovos”, contou. Mas não estava claro por quanto tempo ele poderia manter esse esforço. Ele disse que somente uma polícia ecológica dedicada causaria um impacto duradouro. Seus homens precisariam de um posto permanente na Moín, uma dúzia de policiais com veículos 4×4 e óculos de visão noturna e outros equipamentos.

Então Erick insistiu que o assassinato de Jairo era uma anomalia e que a Costa Rica “não era uma sociedade violenta” – uma declaração duvidosa, especialmente pelo fato de, na tarde anterior, ter ocorrido um tiroteio entre gangues rivais a apenas algumas quadras da sede de polícia. Ele parecia envergonhado com o fato de o assassinato ter acontecido durante sua gestão, e de Vanessa ter gritado com ele. “Eu sei que Jairo era um cara do bem”, disse.

Naquela tarde eu me encontrei com Bernie, pai de Vanessa. Sua forma de lidar com a tristeza foi se tornar um investigador particular pro bono. Ex-pescador de atum, Bernie tem 65 anos. Ostenta uma cabeleira branca e manca pronunciadamente devido a um antigo acidente de barco. Enquanto passeávamos de carro por Limón, ele parecia conhecer o trabalho de todo mundo, dos barões das drogas por trás de cercas com arame farpado a um cara vendendo bebidas de um isopor em uma esquina. “Ele guarda os ovos de tartarugas na sua caminhonete”, Bernie sussurrou para mim. Em uma casa, ele parou para conversar com um homem sem camisa e cheio de tatuagens. O cara ofereceu condolências e depois disse: “Diga-me se precisar de algum serviço de manutenção”. Quando nos afastamos, Bernie riu. “Manutenção. Esse cara é um assassino profissional.”

Fomos de carro até um prédio de concreto baixo com janelas escurecidas na periferia da cidade – o escritório do Organismo de Investigación Judicial (OIJ). Após Bernie e eu passarmos pelo detector de metal, um dos investigadores do caso, alto e atlético, com uma 9 mm em um coldre nas calças jeans, concordou em falar comigo sob anonimato. Ele disse que os investigadores do OIJ em Limón eram os mais ocupados do país devido aos crimes relacionados a drogas. Perguntei se ele achava que os assassinos de Jairo eram traficantes. “Se fossem narcotraficantes, teria sido um desastre”, disse. “Todos teriam sido mortos.”

Como Erick, ele prometeu que Jairo não seria uma mera estatística. E insistiu que estava seguindo pistas muito sólidas. Ao sairmos, Bernie me disse que tinha conversado em particular com o investigador, a quem fornecia qualquer resquício de informação que encontrava. “Ele me disse: ‘Estamos muito perto de pegá-los, mas não queremos que saibam porque podem fugir’.”

As pistas investigadas pelo detetive particular de Bernie levavam de volta a Moín, onde ele havia rastreado uma possível testemunha – um homem que vivia perto da praia. Esse cara tinha sido o primeiro a encontrar Jairo na manhã de 31 de maio. Ele acompanhou Bernie até o local onde tinha achado o corpo. Conforme descreveu, havia sinais de luta nas pegadas ao redor do carro. Parecia que Jairo tinha escapado de seus captores e correra pela praia. Outra série de pegadas parecia mostrar um corpo sendo arrastado de volta até o veículo.

Bernie havia implorado ao homem por alguma pista, mencionando a recompensa de Paul Watson, da Sea Sheperd, que tinha sido elevada até US$ 65 mil. “Ele disse: ‘Não, não, eu não preciso do dinheiro. Não é que eu não preciso, mas é que esses criminosos fizeram uma coisa muito ruim’.” Ele tinha certeza de que, se falasse, ele e sua família seriam mortos.

EM 31 DE JULHO, o OIJ realizou uma busca antes do amanhecer, chamada Operação Baula, em várias casas em Limón. Dezenas de agentes armados prenderam seis homens, incluindo Felipe Arauz, um imigrante nicaraguense de 38 anos suspeito de ser o líder dos hueveros violentos. Um sétimo homem foi pego dez dias depois. Os suspeitos eram Darwin e Donald Salmón Meléndez, William Delgado Loaiza, Héctor Cash Lopez, Enrique Centeno Rivase e Bryan Quesada Cubillo. Embora Vanessa conhecesse os supostos assassinos, ela ficou aliviada por nunca ter trabalhado com eles. “Graças a Deus nenhum deles era um dos caçadores ilegais com quem fiz acordos”, disse.

Os detetives do OIJ tinham falado com informantes e, discretamente, rastreado o celular roubado de Jairo. Segundo os documentos da corte, um dos suspeitos, Bryan, de 20 anos, continuou a usá-lo, enviando mensagens incriminadoras. Uma delas dizia: “Nós arrastamos ele na praia atrás do carro do Felipe”.

Para Vanessa, o motivo claramente foi vingança, mas as autoridades classificaram o crime com um “simples latrocínio”. Eles também jogaram a culpa na tentativa fracassada de Jairo e Vanessa de contratar caçadores ilegais para trabalhar na proteção das tartarugas. Um porta-voz do OIJ alegou que o programa causou ressentimento entre os hueveros. A acusação enfureceu Vanessa. “Eles só estão procurando por um bode expiatório”, desabafou.

Vanessa achou que as autoridades estavam desviando a culpa. Acabou-se descobrindo que, na noite do assassinato, uma patrulha policial tinha encontrado vários dos suspeitos – eles eram os mesmos homens sobre os quais os policiais haviam alertado Jairo. Se eles tinham ou não a intenção de matar Jairo, isso será debatido no julgamento marcado para daqui a alguns meses.

Ainda assim, as prisões não foram uma resolução final para os mais próximos de Jairo. Almudena, de volta a Madrid, estava profundamente deprimida quando entrei em contato com ela. “Jairo está morto. Para mim não há justiça”, disse. O único resultado positivo, na visão dela, seria enfim conseguir uma praia preservada. “Daqui a dez anos, precisa haver tartarugas na Moín”, afirmou. “Se não, tudo isso aconteceu por nada.”

Enquanto isso, Vanessa redobrou seus esforços para proteger Moín. Qualquer mudança na legislação para preservar a praia está longe de acontecer, e as tartarugas agora precisam encarar uma nova ameaça – um projeto de desenvolvimento de um enorme porto de contêineres que um conglomerado holandês espera construir perto dali. Ainda assim, Vanessa me disse: “Eu realmente acredito que isto aqui precisa continuar. Não posso deixar os caçadores ilegais ganharem. Para mim, não é uma opção”.

Em julho, Vanessa levou Fedé de volta a Moín. Ela o acordou uma manhã antes de o sol nascer e, junto com um grupo de voluntários, caminharam até a praia. Na noite anterior, no santuário, os primeiros filhotes de tartaruga tinham saído da areia. Vanessa mostrou a Fedé como erguer aquelas coisinhas agitadas e colocá-las gentilmente na areia. As pessoas ficaram olhando enquanto as tartarugas caminhavam pela praia, fazendo seu caminho até a arrebentação das ondas e a um futuro incerto.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)