Pouco tempo depois de meu artigo sobre Belize ter sido publicado na Traveler, outras revistas também fizeram os seus. E, simples assim, o segredo se revelou ao mundo. Companhias aéreas passaram a oferecer voos diretos para a Ciudad de Belice, a maior cidade do país, e operadoras investaram TVs e revistas com anúncios para pacotes de viagem lá. Logo vieram os navios de cruzeiro, despejando mergulhadores nos recifes. Multidões se aglomeraram sobre as conchas do fundo do mar e maltrataram os delicados corais.
Também surgiram grupos imensos de pescadores, retirando barcos e mais barcos cheios de peixes. Apareceram hotéis baratos e outros luxuosos ao redor de San Pedro, assim como uma casa noturna barulhenta (e, segundo me disseram, um ou dois puteiros). Mais estrangeiros mudaram-se para lá.
De volta aos Estados Unidos, eu sentia pontadas de remorso. Será que ajudei a infestar Belize de um turismo de massa bruto e sem alma? Eu já havia visto isso acontecer em lugares como Patpong, na Tailândia, que era um pacato subúrbio de Bangcoc, antes de se tornar um labirinto de neon, clubes meia-boca, show sexuais estranhos e tráfico de humanos.
Não que eu pudesse tomar para mim todos os créditos do que acontecera em Belize. Mais cedo ou mais tarde, o lugar seria descoberto pelas massas. Mas, como eu disse para Alex durante nosso voo de São Francisco, nos EUA, até Ciudad de Belice: “As palavras podem ser poderosas – até mesmo as palavras idiotas de uma revista de viagem”.
Aterrissamos no novo aeroporto internacional nos arredores de Ciudad de Belice. Esse aeroporto evita que os viajantes tenham que pousar no velho, que fica no centro da cidade, e passar a noite na antiga capital da Honduras Britânica (nome de Belize antes de sua independência). Os guia de turismo recomendam evitar a cidade, onde dizem que há muitos roubos. Em 1987, quando vim para cá com minha esposa na época (a mãe de Alex), ficamos em um hotel perto do velho aeroporto. Os vigias nos alertaram para não sair pelas ruas à noite – ruas que, a partir do estacionamento, já pareciam sujas, escuras e perigosas.
Alex e eu pegamos uma conexão para Ambergris em um monomotor de 14 lugares da Tropic Air, não muito diferente daquele em que eu voei em 1987: assentos desgastados e folhetos de segurança que haviam sido manuseados tantas vezes que a plastificação estava descascando. Achei isso até charmoso, mas questionei a razão em um país que atualmente recebe quase um milhão de turistas por ano, que ali deixam US$ 321 milhões. Por que, então, a Tropic Air não consegue comprar um avião novo, ou pelo menos plastificar novamente seus folhetos de segurança?
“Pode até ser que este seja o avião que eu peguei com a sua mãe”, disse para o Alex.
“Você vai ficar fazendo isso a viagem inteira?”, perguntou ele.
“Fazendo o quê?”
“Ficar falando como era nos velhos tempos?”
“Vou.”
Alex deu de ombros e virou-se para a janela. Talvez por ser meu terceiro (e último) filho, Alex tenha aprendido a ser assustadoramente calmo, a sorrir e até rir de uma família que não é notável por sua serenidade. Assim como seu irmão e sua irmã mais velhos, ele adora mergulhar, e foi por isso que eu quis que Alex viesse ver as mesmas águas fluorescentes que conheci quando era jovem. Ele também confessou querer visitar um lugar que seus pais curtiram na juventude. Nós nos divorciamos quando ele tinha 5 anos, por isso Alex não tem lembranças dos tempos em que seus pais eram apaixonados.
O avião decolou fazendo uma curva e afastou-se da costa, estabilizando a uma altitude de 1.500 metros. É a altura perfeita para um repórter de viagens: baixo o suficiente para fortes impressões, longe o suficiente para não ver detalhes. A vista do alto me deu um alívio momentâneo: as ilhas da costa do Belize ainda eram parecidas quando vistas do alto, com atóis cobertos de mangue espalhando manchas verde-escuras contra um azul tão intenso que parece radioativo.
Quinze minutos depois, estávamos descendo em direção a San Pedro, e ali eu vi grandes mudanças. O que antes era uma pequena vila agora tinha muitas ruas pavimentadas espalhadas pela estreita parte central da ilha. Na costa, uma linha quase contínua de bangalôs brancos e hotéis. “Pode desabafar, pai”, disse Alex, com um sorriso pesaroso. “Diga como era nos velhos tempos. Eu sei que você quer falar sobre isso.”
EM 1987, EU E MINHA MULHER ficamos hospedados em um aglomerado de cabanas com telhado de palha chamado Ramon’s Reef e localizado em uma praia deserta. A pousada servia refeições simples de frutas e peixes (incluindo duas garoupas que caçamos entre um mergulho e outro).
Alex e eu caminhamos até aquele lugar, que agora se chama Ramon’s Village Resort. As cabanas agora deram lugar a bangalôs luxuosos com ar-condicionado. Uma piscina com forma sinuosa de rio é cercada de um jardom com paisagismo tropical e uma estátua gigante de um homem maia. Uma dúzia de barcos chiques estava atracada no píer.
Naquela noite, assistimos a um concurso de beleza, o Miss Costa Maya, realizado em uma passarela criada para o evento. O concurso tinha misses de sete países da América Central. Ao som de música latina e realçadas pelas luzes da passarela, as moças passavam por nós em trajes de banho, enquanto Alex tomava seu primeiro drinque legalmente autorizado (a idade mínima no país é 18 anos) – uma cerveja local chamada Belikin. Fiquei aliviado ao perceber que o rótulo dessa bebida onipresente em Belize não havia mudado muito: uma figura simples de um templo maia em um fundo branco.
Há 27 anos, organizar um concurso de beleza nessa praia rústica teria sido totalmente inimaginável. Ainda assim, havia algo puramente belizense naquele desfile de misses. Famílias inteiras de locais estavam presentes, com avós vestindo camisas floridas e crianças brincando na areia trás da plateia sentada em cadeiras de plástico. Eu não precisava perguntar se eles preferiam esta vida de hoje ao “paraíso” de palmeiras e cabanas que eu descrevera em 1987.
NO DIA SEGUINTE, sentei-me na beirada de um daqueles belos barcos de mergulho, segurando uma máscara, e deixei-me cair de costas no mar. Voltei à superfície e dei um sinal de “ok” para meu dive master Turiano Vasquez – um maia de 60 anos dono de uma risada que saía com força da barriga redonda e bronzeada. A caminho do recife, ele me contou que, provavelmente, tenha sido ele mesmo meu guia de mergulho em 1987. “Se você se hospedou no Ramon’s, eu era o único guia daqui”, contou.
Perguntei-lhe o que havia mudado na ilha de Ambergris ao longo daqueles anos. “Eu envelheci”, respondeu, brincando. Ele apontou para a linha de hotéis ao longo da costa. “Nada disso estava aqui antes, era um lugar simples. E as pessoas eram pobres.”
“E agora?” perguntei.
“Algumas ficaram ricas, outras continuam pobres”, disse Turiano, dando de ombros. “Mas, de forma geral, as pessoas são felizes. Há emprego.”
Antes de mergulhar, Alex perguntou se eu estava bem. Acenei que sim, apesar de estar bastante dolorido fisicamente. Alguns meses antes, uma queda de mountain bike havia piorado uma antiga lesão lombar, agravando uma velha ferida dos meus 20 anos. Agora o inchaço nas minhas costas passou a pressionar o ciático, e eu estava puxando a perna esquerda – a sensação era de que alguém estava esfaqueando meu quadril com uma faca. Durante a descida, eu tinha que encolher a perna esquerda até o peito para evitar a dor na hora de estender o corpo para nadar.
Aos 12 metros de profundidade, Turiano percebeu minha situação. Ele apontou para minha perna e fez o gesto universal de “O que está acontecendo?”. Eu encolhi os ombros. Ele apontou para a superfície: será que eu queria subir de volta para o barco? Fiz que não com a cabeça e dei-lhe um sinal de “ok”. Turiano me lançou um olhar meio severo e deu meia-volta, nadando em direção a um recife próximo. Alex observava tudo com um olhar indecifrável. Daí puxou a perna dele também, tirando sarro de mim. Depois desse mergulho, meu filho passou a referir-se a mim como “meu velho”.
Concentrei-me no mergulho e reparei na grande diferença no coral desde minha última visita. Não havia mais praticamente nenhuma concha. “Foram levadas pelos mergulhadores”, admitiu Turiano, após o mergulho. Parecia haver menos peixes também, mas descobri depois que isso se devia principalmente ao excesso de pesca comercial nos anos 1980 e ao mais recente impacto das mudanças climáticas nos ecossistemas de corais. Vimos uma arraia, uma pequena tartaruga, várias garoupas, peixes-esquilo, chernes e peixes-anjo. As cores dos corais eram incríveis. Ainda assim, eu me sentia culpado. Alex nunca saberia como era esse recife 27 anos atrás.
Em nosso último dia em Ambergris, contratamos um guia para pescar um tipo de peixe conhecido como ubarana-rato. Essa era a primeira vez de Alex praticaria fly-fishing em água salgada, então nosso guia, Manuel Acosta, passou a maior parte da manhã mostrando-lhe como arremessar a linha no mangue. Nativo de Ambergris, Manuel tinha lá seus 70 e tantos anos (ou 80 e tantos? ou 60 e tantos?).
Após algumas horas, perguntei a Manuel o que havia mudado em Ambergris. “Quando eu era menino, vivíamos em cabanas, comíamos peixe e não tínhamos escola”, respondeu. “Era uma vida dura. Agora é melhor.”
Desejei ter mais tempo para explorar melhor a região, como faço quando passo meses ou anos como correspondente internacional. Minha rápida impressão foi de que a aura maravilhosa de Belize resistiu ao tempo. Novas estradas, bares e hotéis não estragaram o lugar, ainda que as conchas tenham sumido. Na verdade, quem sou eu para julgar isso? Enquanto flutuávamos nas águas rasas, lembrei-me de uma frase do poeta e naturista norte-americano Henry David Thoreau: “Aquele que é apenas um viajante aprende as coisas de segunda mão e pela metade”.
O mesmo pode ser dito para escritores de viagem. Ao ver Alex pescar seu primeiro (e único) peixe-porco, percebi que meus anos de desconforto sobre meu papel na participação da “ruína” de Belize havia sido tão superficial quanto minhas descrições daquele paraíso, anos atrás. Percebi também que, para mim, o paraíso era estar aqui com o Alex neste exato instante, assim como foi estar com sua mãe em outra ocasião. Os pescadores e Belize e até mesmo as águas incandescentes eram parte desse momento, mas não tão importantes quanto o momento em si.
Sob os olhares de Manuel, tirei sarro de Alex por causa do tamanho do peixe que ele pescou. Era menor do que sua mão.
“O que sua mãe pegou em 1987 era bem maior”, eu disse.
“Só porque os peixes eram maiores naquele tempo”, ele respondeu.
“E o céu era mais brilhante.”
“E você não era tão velho.”
Nessa hora, Manuel abriu um sorriso sutil. E, apesar de sermos bem diferentes um do outro, compartilhamos um momento – como homens envelhecendo, como pais, como pescadores. E compreendi que talvez eu só conheça pela metade aquele homem e seu país. Mas naquele instante isso não importava para nenhum de nós dois.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2014)
Mergulho no mangue
(FOTO: David Samuel Robbins/Corbis)
Chegando em Ambergris
(FOTO: Alex Rapada)
Entardecer em Belize
(FOTO: Michael Hanson/Aurora)
Trilhas de Belize
(FOTO: Jeremiah Watt)
Pesca de ubarana-rato
(FOTO: Michael Hanson/Corbis)
Centro de São Pedro e ao lado Loja de Mergulho em Ambergris
(FOTO: Michael Hanson/Aurora)