Bares voltados para ciclistas e bicicletarias que vendem cervejas especiais se multiplicam nas capitais brasileiras, dando força à combinação de pedal e breja gelada
Por Daniel Santini
AVENIDA ENGENHEIRO CAETANO ÁLVARES, São Paulo, sábado de manhã. Na minha frente, Pedro Cruz, 18 anos, que trabalha como bike courier. Do meu lado, André Leme, 45 anos, um ciclista veterano que já conquistou pódios em diferentes categorias, incluindo um troféu de campeão brasileiro de resistência. Pedalamos rápido na faixa da direta, tomando cuidado com o fluxo de veículos e as portas dos carros estacionados, que vez por outra se abrem de repente. Pedro e André pedalam bicicletas de estrada e são bem mais rápidos que eu e minha gorducha bike híbrida com bagageiro. Mesmo assim, dá para conversar. E é então que decido perguntar a eles sobre um tema que me é caro: cerveja.
Os dois têm perfil atlético, se preocupam com os detalhes que ajudam na performance e, pouco antes, haviam disparado em uma subida que corta a Serra da Cantareira, no extremo norte de São Paulo. Pedro, magrelo e no auge da forma física, fez os cerca de 3,5 quilômetros do percurso em uns nove minutos. Ele não bebe. André, que tem treinado para recuperar o pique que lhe garantiu medalhas no passado, levou 11 minutos. Eu precisei de longos 22 minutos e terminei com o coração dando socos no peito.
Espero uma resposta dura, que me faça repensar o hábito de combinar longas pedaladas com uma eventual cervejinha. Mas André nem titubeia. “Olha, o cara pode treinar constantemente, se preparar bem, mas, se não estiver feliz, não conquistará nada”, explica. “Tomar uma cerveja com os amigos pode ser importante.” Abro um sorrisão largo diante da resposta.
A ideia de pedalarmos juntos surgira dois dias antes. Em uma roda de bar cheia de ciclistas, lancei a ideia de subir o Pico do Jaraguá, no oeste de São Paulo. Pedro, que apesar de não beber participava da conversa, se animou, mas sugeriu a Cantareira. Estávamos no bar-bicicletaria Las Magrelas (rua Mourato Coelho 1.344; lasmagrelas.com.br), no bairro paulistano da Vila Madalena, um dos bons espaços para tomar cerveja e falar de bicicleta que se multiplicam em São Paulo e em outras capitais do país.
Curitiba e Porto Alegre estão entre as cidades com cenas ciclo-cervejeiras especialmente interessantes, onde grupos de ciclistas se encontram não só para pedalar, mas também para sentar e tomar umas, planejando passeios, comemorando a vida ou conversando sobre desempenho, cicloativismo, urbanismo, ocupação de espaços públicos e trilhas cheias de barro. Com o crescente uso urbano de bicicletas como meio de transporte, diversas bicicletarias passaram a vender cervejas, botecos se tornaram points de grupos de pedal e nasceram espaços como o Las Magrelas.
A ligação entre cerveja e ciclistas data de séculos atrás, especialmente na Europa, onde países como Bélgica e Holanda sempre tiveram grande tradição nas duas áreas. A paixão dos ciclistas por cerveja ganhou o mundo, em grande parte graças ao crescimento das marcas artesanais, produzidas com cuidado por pequenos fabricantes. Há muitas cervejarias que dedicam alguns de seus rótulos ao amor à magrela – como a norte-americana New Belgium e sua amber ale Fat Tire, criada em homenagem a uma cicloviagem feita por um dos proprietários pela Europa.
Na Bélgica, a criatividade mostrou que não tem limites com o lançamento da Malteni, cervejaria aberta por dois ciclistas vidrados no maior ícone da história do esporte: o belga Eddy Merckx, que correu anos pela equipe italiana Molteni (daí a brincadeira do nome, usando a palavra “malte”). Seus rótulos são adornados com camisetas de ciclismo usadas pelo “Canibal”, como Merckx era chamado pela imprensa. No Brasil, também já temos algumas assim, como a Magrela, produzida pela Cervejaria Nacional, de São Paulo (veja nesta reportagem outros exemplos inspirados na bicicleta).
EM VÁRIOS PAÍSES, é cada vez mais fácil encontrar espaços onde se pode levar a bike para uma revisão e, ao mesmo tempo, tomar uma breja com os amigos. Um pico reverenciado por muita gente que entende do assunto é o Velo Cult (velocult.com), misto de bike-shop e bar localizado em Portland, uma das cidades mais bike friendly dos Estados Unidos. Lá convidativas mesas e bancos de madeira costumam ficar cheios de clientes bebericando um dos diversos tipos de cerveja vendidos pela loja.
O sucesso de público também tem sido visto em locais parecidos abertos no Brasil. O Las Magrelas costuma ficar lotado aos finais de semana. Na geladeira, há marcas especiais de cerveja, com destaque para as artesanais nacionais. Talita Noguchi, uma das sócias, explica que o objetivo de ter um bar-bicicletaria foi abrir um espaço para as pessoas conviverem, trocarem ideias, conversarem sobre mobilidade. Desde sua fundação, o Lasma (como é chamado pelos frequentadores) tem servido de palco para lançamentos de mostras de arte, feiras de trocas de peças, palestras sobre cicloturismo, festivais e articulações políticas, tudo girando em torno da bicicleta. Também em São Paulo, a Ciclo Urbano (Travessa Dr. José Alves de Souza Neto, 49; ciclourbano.com.br) possui uma lista de fieis clientes, que adoram papear e beber na mesona instalada ao lado de fora da casa onde fica a loja, localizada numa charmosa vila no bairro do Itaim.
Em Porto Alegre, no mesmo espírito de convivência e troca de ideias, é possível encontrar ciclistas degustando marcas especiais em endereços como o Vulp (r. Miguel Tostes, 845; vulp.com.br). Na terceira edição do Fórum Mundial da Bicicleta, realizado em fevereiro em Curitiba, houve até espaços para degustação de cervejas artesanais. Foi durante o evento, aliás, que Patricia Valverde, da curitibana Bicicletaria Cultural (r. Presidente Faria, 226; bicicletariacultural.wordpress.com), resolveu começar a vender cervejas. O lugar, sempre movimentado, reúne oficina mecânica, atividades culturais e programações alternativas voltadas para ciclistas. “Por dois anos não vendíamos bebida alcóolica, apesar dos pedidos dos clientes. Um dos motivos era que a gente abre cedo”, conta. Durante o fórum, porém, a situação mudou. “Compramos uma geladeira e fizemos uma parceria com um mestre cervejeiro para vendermos rótulos de qualidade, produzidos localmente e vendidos a um preço bacana. O setor de cervejas artesanais está em destaque no Brasil, há um leque bem diverso de sabores”, diz Patrícia. Atualmente a loja realiza encontros mensais de degustação.
Bem antes da moda “bike e cerveja”, São Paulo já tinha um ponto de encontro para aqueles que amam loiras e magrelas: o Bar do Pedrão. O boteco ficava próximo da Praça do Ciclista, no encontro das avenidas Paulista e Consolação. Com suas mesas na calçada e dezenas de bicicletas estacionadas na porta, o endereço fez parte da história das Bicicletadas, como são conhecidas as Massas Críticas, manifestações em defesa de um trânsito mais humanizado e com espaço para bicicletas. O falecido Pedrão, mesmo sem andar de bicicleta, sempre acolheu feito um pai os participantes, conversando, dando conselhos e celebrando cada conquista. Hoje ele é lembrado com carinho como uma referência para qualquer um que pedale e, vez ou outra, goste de tomar uma gelada. Um brinde ao Pedrão. Um brinde à bicicleta.
Cerveja não é gel
A bebida desidrata e atrapalha a performance
A nutricionista Alessandra Souza, professora universitária em São Paulo, alerta que diferentes estudos mostram que não se deve consumir cerveja durante exercícios físicos. “Por ser uma fonte de energia que afeta o metabolismo e modifica as percepções de fadiga, algumas pessoas utilizam o álcool como um ergogênico, ou seja, um instrumento para aumento da performance em atividades de endurance. Porém seu uso prejudica o rendimento”, conta. Ela explica que em exercícios com mais de uma hora de duração, o consumo de álcool pode, na realidade, levar à redução do nível de glicose, o que acarreta fadiga. Além disso, o álcool é pobre como alimento. Mesmo a cerveja, rica em carboidratos, não ajuda a repor o que é perdido durante longos pedais.
O fisiologista Turíbio Leite de Barros, mestre e doutor em fisiologia do exercício, afirma que o álcool prejudica a recuperação do corpo. “A cerveja tem antioxidantes e carboidratos que podem contribuir no pós-exercício imediato, mas desidrata o corpo”, diz. “E quem vai para um bar de bicicleta tem que voltar para casa. Além de prejudicar a coordenação motora e reflexos, fisiologicamente o álcool atrapalha a reposição do glicogênio, que é o combustível do músculo”, diz. Apesar dessas ressalvas, Turíbio não é radical em relação à combinação de cerveja e pedaladas. “Tudo depende da quantidade de álcool ingerida. Se o cara vai pedalar depois, até duas ou três latinhas não chegam a atrapalhar”, diz.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2014)
PASSA LÁ: Las Magrelas em São Paulo, você bebe uma cervejinha enquanto sua bike fica na oficina
(FOTO: Gonzalo Cuellar)
PROGRAMÃO: O novo King of the Fork e a Ciclo Urbano abaixo, são points paulistanos
de quem ama bicicleta e cerveja
CULTUADO: Vai visitar Portland? Não deixe de fazer uma parada estratégica na Velo Cult