Quando os cães voam

O base jumper norte-americano DEAN POTTER vem mais uma vez causando admiração e polêmica desde que seu mais novo filme, “When Dogs Fly”, foi lançado em maio. Ele nos enviou um texto para lá de especial sobre um dos saltos mais marcantes que já fez junto de sua cachorrinha Whisper, que protagoniza com ele o documentário



JERÔNIMO: Whisper, a cachorra de Dean, durante voo de wingsuit (FOTO: Arquivo Pessoal)

ESTAMOS DE PÉ NA BEIRADA do topo da face norte do Monte Eiger, montanha de 3.970 metros das mais renomadas dos Alpes suíços, e observamos nuvens encaracolando-se no céu, como a espuminha de leite sobre o café. Respirações rítmicas de Whisper, minha cachorra da raça mini-cattledog, ressoam atrás de mim. Suaves respiros se transformam em tímidos ronronados; seu corpo relaxa e se acomoda dentro de minha mochila de base jump, que dá segurança a nós e nos une como se fôssemos um só corpo. Meus dedos correm sobre a fita da cadeirinha peitoral, depois se dirigem para as costas e ajustam milimetricamente o sistema de liberação de nosso pára-quedas, antes de se esticarem um pouco mais para acariciar a cabeça da Miss Whisp.

Jen, minha namorada, também fez a escalaminhada alpina até aqui e está sentada próxima a nós absorvendo a imensa beleza do lugar, enquanto provavelmente calcula a segurança de seus dois amores. Meus pés estão confinados no wingsuit (um macacão com asas de morcego que ajuda na flutuação durante um salto de base jump) e ando como um pinguim em pequenos círculos ao redor do Mushroom, uma espécie de pilar de pedra com forma de cogumelo que é um dos picos favoritos entre praticantes do esporte. Com nossa cachorra nas costas, estou esperançoso de que as nuvens irão embora logo e que, assim, nós possamos voar em segurança em direção aos gramados verdes lá de baixo.

O tempo não muda, e nossa pequena família se empoleira para uma desajeitada meditação no topo do Mushroom. Nem Jen nem eu falamos nada. Embora meu corpo esteja quente dentro da roupa de nylon, começo a tremer e a me perguntar se o que estamos prestes a fazer é correto. Eu me sinto seguro saltando de base jump, porém 25 atletas perderam suas vidas nesse esporte somente em 2013. Deve haver alguma falha em nossos equipamentos, um segredo letal que vai além da minha compreensão.

Nossa família é tudo que Whisper possui na vida. Ela odeia se separar de nós, especialmente se vamos fazer algum trekking. Nesta manhã, eu lhe dei a opção de ficar no acampamento, mas ela nos viu preparar as mochilas e, fazendo jus à linhagem de cães pastores que dirigem rebanhos de animais mordendo seus calcanhares, Whisper se aproxima de nossos pés e mordisca os cadarços dos tênis.

Estamos passando o verão nos Alpes suíços. Por causa do trabalho de Jen, e para manter nossa família unida, minha namorada voa a cada duas ou três semanas de nossa casa, na Califórnia, até aqui. Whisper se senta aos pés de Jen nos vôos internacionais e a conduz a salvo através das fronteiras. Nada mal para uma cachorrinha que não chega a dez quilos: ela passa metade do tempo na costa do Pacífico e nas montanhas da Califórnia, e a outra metade cantarola pelos pastos e montes alpinos ao estilo Noviça Rebelde.

Nós três nos hospedamos no vilarejo suíço de Wengen. Carros não são permitidos na cidade e, para ir a outros lugares, andamos ou tomamos trem. Chove bastante e ficamos no Hotel Falken, de amigos nossos, quando o céu está tempestuoso. Do contrário, vivemos em nossa pequena barraca amarela em uma área do Eiger conhecida como West Flank, de onde acessamos facilmente alguns dos melhores trekkings, escaladas e saltos de base jump do mundo.

Esses picos têm uma rica história de montanhismo, esqui, saltos e escalada. Não importa o quanto penetremos em suas colinas, haverá sempre traços deixados por pessoas séculos antes. Os suíços são saudáveis e cheios de vida. Olhando ao redor é fácil ver o porquê, com vacas sorridentes comendo vegetação verde e exuberante. Nós compramos frutas, verduras, carne e queijo locais em pequenas feiras. Eu não me conformo com o contraste daqui com o modo de vida nos Estados Unidos, com nossos hipermercados, hormônios, pesticidas e patentes de sementes geneticamente modificadas.

Meu wingsuit está molhado, a rocha está escura por causa da umidade e, para piorar, não posso ver o chão lá embaixo – uma situação proibitiva no base jump. Parece óbvio que você tem que ver para onde está voando, mas há muitos base jumpers que preferem um voo cego a ter o trabalho de descer caminhando tudo aquilo que subiram. Optam por alguns segundos mergulhados no desconhecido, em saltos vendados nos quais golpeiam a parede e morrem. As nuvens a nosso redor tornam-se ainda mais negras. Aceitamos o sumiço do sol e decidimos descer a pé, durante várias horas, de volta a nossa barraca.


VALENTE: Whisper é içada em uma tirolesa até o ponto de salto; abaixo, Dean e sua
companheira
(FOTO: Arquivo Pessoal)


(FOTO: Maxim de Jong)

Whisper desperta com um grunhido, percebendo o está acontecendo. Eu tiro cuidadosamente meu wingsuit, desamarro-a da mochila, e então ela sai rebolando para longe de sua cápsula de vôo. Com dois mosquetões, Jen prende Whisper no cabo da tirolesa, depois engancha uma fita de ancoragem em sua própria cadeirinha, e as duas descem rapidamente. Jen puxa Whisp, que vem logo atrás dela, ao som do zip-zip-zip do contato de metal com metal. Cães não são grandes fãs de ficarem pendurados nas alturas, e Miss Whisp fica contente quando se solta da corda e começa a liderar o caminho de volta na trilha. Jen e eu nos alinhamos atrás dela e acendemos nossas lanternas de cabeça, enquanto o dia abre espaço para a noite.

Uma pisada em falso e escorregaríamos pela aresta de uma das rochas alpinas mais mortais da Terra. Muitos montanhistas perderam suas vidas aqui; no entanto, de alguma forma, esta trilha se transforma em um agradável passeio em nossa família nada tradicional. A névoa obscurece os raios de luz de nossas lanternas, e eu cerro os olhos, perdendo a trilha pouco marcada. Whisper mantém seu focinho baixo e facilmente nos conduz pelas escorregadias rampas de pedra.

Com um cão de caça na liderança, eu me permito relaxar. Pensamentos cintilam de um lado para outro, entre os Alpes e nossa casa, no Parque Nacional do Yosemite, na Califórnia. A exaustão penetra dentro de nós humanos, mas Whisper trota prazerosamente. Minha mente vaga, e de repente estamos perto do rio Merced, no Vale do Yosemite. O Half Dome [paredão rochoso do Yosemite, muito famoso no mundo da escalada] se reflete em poças tranquilas e nossa família está a salvo entre flores do campo e a grama alta. Eu pisco, volto para a realidade, e agora estamos na seção de cordas fixas do Eiger. Água escorre por nossas jaquetas impermeáveis, porém o oleoso casaco de pelos de Whispy quase não está molhado. Jen lidera a descida pela linha de rapeis, enquanto prendo a cadelinha à minha cadeirinha com um mosquetão com trava e a sigo. Whisper fica quieta, obedientemente. Eu sinto saudade de mergulhar com minhas duas garotas nas águas do murmurante rio Hot Creek, perto de nossa casa na Califórnia.

Algumas horas mais tarde, abrimos o zíper de nossas jaquetas molhadas, secamos a Princesa Whisper com uma toalha, engatinhamos para dentro de nossa barraca para duas pessoas e nos aconchegamos nos sacos de dormir. Whisp se mexe sem parar enquanto todos nos debatemos por um espaço ali dentro. Me viro para dar um beijo de boa noite em Jen, e Whisp se sacode entre nós. Cães jamais se sentem confortáveis se não são o “alfa dominante” do grupo e tentam incansavelmente subir de posição social. Durante a noite imagino as coisas que nossa família faz: escalar geleiras, escalar paredões rochosos altíssimos, jantar em família, surfar, visitar a avó, colher maçãs, saltar de base jump nos Alpes…


DANDO UM TAPA: Dean tosando Whisper
(FOTO: Arquivo Pessoal)

Minhas duas garotas respiram suavemente, mas eu me sinto agitado ao me perguntar se está certo levar nossa família a situações perigosas. Durante toda a noite, não consigo dormir. Imagens de Whisper escapando sem querer de sua cadeirinha em queda livre invadem minha cabeça. Eu vou para fora e sento em uma pequena caverna, observando as nuvens que se levantam. Vapor, estrelas e topos de montanhas se transformam em um sólido e peludo cão voador. Eu imagino Whisper sentada a meu lado em nossa van, presa a sua cadeirinha-cinto de segurança feita sob medida para ela.

O céu brilha sob a luz que antecede a aurora. Eu finalmente começo a bocejar e engatinho de volta para nossa diminuta barraca. Uma ou duas horas mais tarde, o alarme do meu iPhone toca com um som de buzina de carro antigo. As garotas já estão acordadas, e o cheiro de café expresso que exala de nosso fogareiro flutua para dentro da barraca. Whisper se senta belamente, dando sinal de que espera o café da manhã. Jen alimenta Whisp com meio copo de ração e me passa uma caneca de prazer cafeinado. Eu sinto o cheiro gostoso e adiciono mel silvestre. Minutos mais tarde estou pronto para ir, e Whisper também.

O céu está limpo e azul-celeste; ar fresco, calmo e frio. Decidimos que Jen deveria nos encontrar em terra, depois de aterrissarmos. Ela começa a descer trotando em direção à estação de trem de Eigergletscher, enquanto pego meu equipamento de base jump e avanço, com Whisp, em direção ao topo do Eiger. A princesa peluda odeia quando a matilha debanda. Ela fica olhando para Jen, mas rapidamente assume o controle e lidera o caminho morro acima.

Pensamentos gloriosos de unificação e simbiose humano-cão-vôo emergem em minha mente. A conquista dos quase 800 metros de ascensão até o topo da montanha exige foco e fôlego. Whisper sabe para onde estamos indo e corre para frente e para trás, como se dissesse: “Vamos papai, por que está demorando tanto?”.

Pensamentos racionais superam a endorfina do esforço da subida quando Whisp e eu cruzamos o cabo de tirolesa novamente para subir até o pilar Mushroom. Eu saco a wingsuit de minha mochila e Whisper se aninha a meu lado, dando a entender: “Não se atreva a me deixar aqui sozinha”. Nós trabalhamos juntos para prendê-la seguramente dentro da mochila de base jump. Ela é muito paciente com minhas mãos desajeitadas e me encara fixamente. “Eu confio em você, papai.”

O corpo quente de Whisper pressiona novamente minhas costas. Eu confiro três vezes os pontos de ligação de nossa cadeirinha, assegurando que estão travados e rosqueados. Começo a focar no vôo em si, a respirar de forma tranquila e a entrar no estado do flow [estado mental em que uma pessoa, principalmente atletas de ação, fica totalmente imersa no que está fazendo]. Observo o céu limpo e vejo a sedutora zona de aterrissagem cerca de cinco quilômetros abaixo. Pouso meus pés sobre a abrupta beirada do pilar de rocha calcária. Brota saliva na minha boca e eu cuspo sobre o vazio e observo como o glóbulo permanece unido e cai sobre o calmo ar da manhã. “Perfeito para voar, Whisp”, digo com serenidade, hipnotizado-nos em pensamentos positivos. Whisper está aconchegada dentro da mochila de segurança. Eu deslizo minhas mãos sobre os pelos curtos de seu focinho macio. “Você está pronta, Whisper?”

Em meio às nuvens que se espalham, vagas lembranças de meus amigos falecidos pairam no ar rarefeito. “Estes não seremos nós, Whisper.” Eu digo isso balançando meus ombros e braços para relaxar o corpo. Os músculos de minhas pernas subitamente estremecem. Minha voz perfura o silencioso ar da montanha. “Três”, digo, soltando a respiração; meus braços calmamente balançam ao longo do meu esqueleto, e fito o horizonte. “Dois”, movo o corpo para frente e meus joelhos se dobram. “Um”, estou completamente agachado. “Até mais!”. Eu salto com todas as minhas forças para longe da face pontiaguda da rocha e me junto ao ar.

Ventos cada vez mais velozes penetram apressadamente em meus ouvidos, rochas de calcário rajado passam como raios diante de meus olhos. O peso de Whisper tende a nos inclinar e nos fazer girar verticalmente, mas eu realizo a única manobra que sempre funciona nessas horas: relaxo e arqueio o corpo. Fico na posição de ioga Salabhasana, que, em queda livre, provoca um involuntário gemido que sai de minha boca aberta.

Nos ajeitamos nossa posição, paralelos ao solo, e ganhamos velocidade para frente. Meu corpo relaxa novamente e aponto meu olhar para o campo gramado a quilômetros de distância, onde um diminuto pontinho humano nos espera, Jen. A quase 200 km/h, o tal pontinho vai ganhando cada vez mais forma. Mais de um minuto se passa com meu foco dirigido unicamente a minha namorada lá embaixo. Leitosos topos de montanhas e extensas colinas verdes invadem minha visão periférica. Jen está agora a 180 metros abaixo de nós, e o chão se aproxima depressa. Eu arqueio meu corpo e diminuo a velocidade de vôo pela metade. Calmamente alcanço o mecanismo que abre o pára-quedas. Bang! “Yewwwwwww”, eu grito e levanto os braços, depois me estico um pouco mais e passo a mão sobre Whispy, para ter certeza de que ela ainda está lá. Em espirais, começamos a descer para juntar nossa família novamente.

Aterrissamos delicadamente ao lado de Jen. Eu tiro nossa super-cachorra da mochila e coloco-a na grama orvalhada. Ela corre até Jen e a chama com intensos latidos que indicam felicidade. Seu jeito triunfante se parece muito com o que sinto neste momento, porém eu me contenho por trás de um sorriso radiante. Jen nos dá beijos. Whispy corre em círculos, balançando sua bundinha e seu rabo em uma animada festa. Jen e eu a parabenizamos com repetidos “Boa garota, boa garotinha…”.

Os dias passam e minhas garotas voam de volta à Califórnia. Os Alpes se transformam abruptamente com a primeira nevasca da estação. Sozinho, subo para o acampamento e desmonto a barraca, dizendo adeus, pelo menos por enquanto. Sentado sobre uma pedra, observo pingentes de gelo se formarem, gota a gota. Assustadores pensamentos de perder tudo me oprimem.

Uma gralha alpina solta um grunhido, arremete e aterrissa perto de onde estou. Meu ânimo se eleva, e o pássaro negro pia e implora por comida. Eu me compadeço e lhe arremesso o miolo de uma maçã. Seu bico amarelo brilhante esculpe a polpa fresca. Eu me levanto e depois me viro, encarando o vento. Ínfimas partículas de neve se dissolvem sobre meu rosto quente. Nuvens formam redemoinhos nos picos mais altos. As silhuetas se assemelham a flutuantes cabelos castanhos e cachorrinhos saltando suspensos no ar.


O filme When Dogs Fly será um dos destaques do Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit (rockyspirit.com.br), que acontece em São Paulo (30 e 31 de agosto) e Rio de Janeiro (20 e 21 de setembro).

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2014)