Nascido para a rocha

Aos 14 anos, o norte-americano Kai Lightner já provou que é uma das grandes promessas da escalada e virou até tema de filme sobre seu talento nato

Por Mario Mele


EM ASCENSÃO: Kai em cena do filme 14.c, que será exibido no Festival de Filmes Outdoor
Rocky Spirit, deste ano

O NORTE-AMERICANO Kai Lightner tinha apenas 8 meses quando sua mãe, Connie Lightner, percebeu que havia dado a luz a um bebê com superpoderes. “Quando o encontrei engatinhando livremente pela casa, pensei que eu havia deixado aberta a porta do cercadinho onde ele ficava”, diz ela. Depois que a cena se repetiu, Connie se escondeu num canto para ver o que estava acontecendo. “Ele chegava próximo à grade e se levantava apoiado nela”, lembra. “Depois de escalar até o topo, Kai manobrava o corpo para o outro lado e, depois, desescalava até o chão.” Só aí a mãe entendeu que teria que pensar em um substituto para o tal portãozinho.

O que começou como um problema se transformou em solução. Aos 6 anos, Kai passou a fazer aulas de escalada em um ginásio em Fayetteville, cidade onde nasceu, na Carolina do Norte. A partir de então, o esporte virou sua válvula de escape para tanta energia acumulada. “A escalada o ensinou a ter objetivos e, principalmente, a usar os fracassos para se tornar ainda mais forte”, conta Connie.

Hoje, aos 14 anos, o garoto já é considerado um grande talento da modalidade e conta com vários patrocinadores, que apostam que esse é apenas o começo de uma longa e frutífera carreira. Kai conta também com a mãe na outra ponta da corda – literalmente. Além de fazer a segurança do filho durante os treinos no ginásio e em suas investidas na rocha, Connie é professora e exige que o filho tire boas notas na escola. É até capaz de cancelar uma viagem de escalada se achar que o menino está defasado em alguma disciplina.

O talento do garoto tem chamado a atenção não apenas de marcas de esporte, mas também da imprensa especializada e até de gente do cinema. Neste ano, o Mountainfilm in Telluride, um dos principais festivais de cinema outdoor do mundo, que rola no Colorado (EUA), exibiu o documentário 14.c, sobre a saga de Kai e Connie pelos muros de escalada e campeonatos da América do Norte. O nome do filme é uma referência à graduação de escalada norte-americana 5.14c – um nível para poucos e muito bons – que equivale a um 11b da tabela brasileira. Só em 2013, Kai escalou seis vias esportivas em seu país, de dificuldades que variam entre 5.14a e 5.14c (no Brasil, algo entre 10c e 11b).

O filme, que será exibido no Festival de Filmes Outdoor Rocky Spirit, promovido pela Go Outside, mostra também que Kai é um jovem fenômeno da escalada que carrega genes capazes de mudar a “demografia” de seu esporte, mais ou menos como fizeram as irmãs Williams no tênis e Tiger Woods no golfe. Durante uma recente viagem que fez à Europa, o atleta contou à Go Outside mais detalhes de sua impressionante trajetória.


PRODÍGIO: "Já nasci apaixonado por escalada", diz Kai


Escalador nato

“Acho que já nasci apaixonado pela escalada. E costumava ter problemas por conta disso quando criança. Minha primeira lembrança como escalador é subir o poste de uma tabela de basquete para ficar sentado no aro. Eu tinha 4 anos de idade e fazia isso todos os dias. Adorava ficar lá em cima, com uma vista privilegiada de toda a vizinhança. Mesmo tendo noção de que aquilo poderia me colocar em apuros, eu simplesmente não conseguia parar. Dá para imaginar como fiquei contente ao descobrir a existência de um ginásio de escalada na minha cidade. Foi quando percebi que poderia escalar o quanto quisesse sem entrar em apuros.”

Vida ao ar livre

“Quando escalo fora do ginásio, sinto muita paz. O setor The Cirque, em New River Gorge (na Virgínia Ocidental, EUA), é um dos lugares mais lindos em que já estive. Gosto de chegar ao topo de uma rota para, em seguida, olhar o desfiladeiro lá de cima. Especialmente no outono, quando a cor da copa das árvores se transforma, a água e a rocha parecem entrar em uma sintonia perfeita.”


Na estrada

“Participei de dois Campeonatos Continentais: um em Montreal, no Canadá, e outro em Ibarra, no Equador. Também já competi no mundial juvenil em Victoria, no Canadá. Mas, durante as competições, tudo é muito corrido, e não tenho tempo de conhecer melhor esses lugares. No momento, estou na Europa treinando para as próximas competições, e tenho escalado bastante na Itália e na Áustria – não vejo a hora de explorar os arredores de Zillertal, nos Alpes. As cidades aqui são incríveis, cercadas por belas montanhas e paisagens alucinantes.


Fora das paredes

“Gosto de competir em concursos de oratória – em que o professor sugere um tema e os alunos escrevem um texto e discursam em cima disso. Na escola, também atuo em peças teatrais. Já fui o Príncipe Encantado de Cinderela.”


Lições da escalada

“Sempre tive muita energia e deixava louco quem tentava me fazer prestar atenção nas tarefas escolares. Quando passei a levar a escalada a sério, meu desejo de melhorar me obrigou também a evoluir mentalmente. Eu tinha apenas 5 ou 6 anos e já tinha que seguir uma rotina pesada de treinamento. Aprendi a ter disciplina para traçar metas e trabalhar duro para alcançá-las. Também desenvolvi a capacidade de bloquear tudo ao meu redor para me concentrar numa escalada difícil – até mesmo com centenas de espectadores gritando e uma música alta tocando. São habilidades que me ajudam a me dar bem também fora de escalada, como em um concurso de oratória, por exemplo.”


Novas vias

“Eu sou um escalador de competição. Escalo regularmente na academia e faço exercícios de condicionamento em casa para me manter em forma. Fora do ginásio, há uma variedade maior de estilos de vias, o que me dá a oportunidade de aprender. Mas não sou motivado por graduações. Procuro entrar em vias que são desafiadoras para mim, encaro isso como um desafio pessoal. É o que realmente me mantém motivado.”


Fama

“Chego a ficar envergonhado ao receber tanta atenção. Mas procuro não pensar muito nisso, porque é fácil se sentir pressionado. Tento manter o foco em minhas escaladas e desfrutar ao máximo esse esporte, que me possibilita fazer amizades com pessoas de várias partes do mundo.”


Freesolo

“Em maio, estive com Alex Honnold [escalador norte-americano famoso por subir paredões rochosos em estilo freesolo, sem corda de segurança] durante o Mountainfilm in Telluride. Apesar de não escalarmos juntos, trocamos algumas ideias. Eu o admiro muito por ele ter encontrado um nicho na escalada e fazer um ótimo trabalho para expandir seus limites, se comprometendo em ser o melhor. Eu não pretendo escalar em estilo freesolo, no entanto respeito a escolha de cada um. Uma coisa que me atrai na escalada é a variedade de estilos. Esse esporte tem algo de gratificante a oferecer a qualquer pessoa, independentemente da idade ou da força física.”


Alien

“Quando você se aproxima do crux, o ponto mais difícil de uma via, é normal bater um certo nervosismo. Eu acho mais fácil grudar em agarras pequenas usando apenas dois dedos. Minha treinadora brinca comigo dizendo que essa é ‘pegada do Alien’.”


Diversão

“Escalar é divertido por vários motivos. É muito bom viajar e conhecer novos lugares, porque cada um tem sua particularidade. Escaladores também são pessoas surpreendentes, que tornam esse esporte ainda mais legal. Fora os episódios hilários que eu vejo: uma vez chorei de rir quando eu e minha mãe nos aproximávamos de uma parede por uma colina íngreme e lamacenta. Ela escorregou e foi deslizando até base, enquanto soltava vários palavrões. Ela não se machucou, e por isso foi fácil eu achar aquilo tudo engraçado. Lógico que minha mãe não ficou nada feliz com isso.”


Versatilidade

“Curto todo tipo de escalada – boulder, esportiva, no ginásio ou na rocha. Ainda não fiz psicobloc [escalada em rocha perto de rios, mares ou lagos] nem big wall [em grandes paredões rochosos]. Pensando bem, acho que sou um escalador em fase de desenvolvimento. Vejo que grandes escaladores, como [o tcheco] Adam Ondra, começaram se aperfeiçoando em um determinado estilo antes de abrirem o leque. Estou ansioso em expandir minhas habilidades, mas prefiro ir com calma, dando um passo de cada vez.”


Próximos planos

“Em 2014, continuarei focado em algumas competições e também quero aproveitar o outono no Hemisfério Norte para conquistar algumas vias difíceis pelo oeste dos Estados Unidos. No ano que vem, estarei pronto para participar da Copa do Mundo na modalidade dificuldade, e pretendo competir em diversos países. Meu objetivo é continuar aprendendo e evoluindo. Quero ser um escalador melhor a cada dia.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2014)