Para ficarem leves e atingirem resultados, muitos atletas acabam desenvolvendo anorexia, bulimia e outros distúrbios alimentares, com consequências gravíssimas para o corpo e a mente Por Maria Clara Vergueiro
SÃO 17H56 DE UM DIA QUALQUER em 2009 e o britânico David Proctor – então um promissor atleta de média distância com chances de representar seu país nas Olimpíadas de Londres – está deitado em sua cama, com os olhos fixos no teto, depois de um dia de treino pesado. A cada minuto, ele encara o relógio para ver se os ponteiros já marcam 18h, horário que estabeleceu para fazer a primeira refeição do dia. Os segundos passam lentamente, mas David não se deixa abater: tem uma meta a seguir e não perderá o foco. Quando finalmente chega o tal horário, vai até a cozinha e toma uma sopa, afinal à noite as refeições devem ser leves. Meses mais tarde, David cai desacordado no acostamento de uma estrada durante um treino longo, depois de ter passado dois dias inteiros à base de água para “compensar o estrago” de um almoço de Páscoa com a família. “Quando acordei, me dei conta do tamanho da minha estupidez. Apesar de ter, literalmente, caído em mim, precisei de muita ajuda, já que descobri que era incapaz de me libertar sozinho daquela situação”, diz o atleta. David – que assume ter uma tendência para seguir atitudes de “tudo ou nada” em todas as esferas da vida e cultivar uma “necessidade constante de estar no controle” – foi diagnosticado com anorexia nervosa, distúrbio alimentar que, se não tratado a tempo, pode levar à morte. Pessoas com a doença estabelecem uma relação distorcida com o corpo e os alimentos, como se comer as levasse à ruína e à destruição de seus ideais físicos e esportivos. Gradualmente diminuem a ingestão de comida e, sem perceber, tornam-se cada vez mais desnutridas. Enquadrada na mesma categoria da anorexia nervosa, a bulimia desperta comportamentos semelhantes, embora trabalhe ainda mais silenciosamente: o bulímico alterna momentos de restrição com outros de compulsão e provoca vômitos ou toma laxantes para se livrar rapidamente do que comeu. A surfista Andrea Lopes, única brasileira campeã mundial de surf (2000), desenvolveu anorexia nervosa e passou a acreditar que aqueles que se preocupavam com ela, queriam, na verdade, seu mal. “Eu buscava a perfeição e estava convicta que conviver com essas pessoas e voltar a comer tiraria meu foco, me afastaria do título com o qual eu tanto sonhava”, diz a carioca, que chegou a pesar 38 quilos (ela mede 1,68 metro). Para se recuperar, precisou se afastar das competições por um ano, em 1994. Hoje, aos 40 anos, ela acredita que ter se tornado atleta competitiva ainda na adolescência (integrou a elite do surf mundial aos 17) pode ter desencadeado um processo nocivo, que misturou uma personalidade controladora e perfeccionista com as pressões do esporte de alta performance. “Eu era imatura, muito disciplinada e não contava com a estrutura que um atleta de ponta tem hoje.” Para especialistas como Leslie Bonci, uma das diretoras do Centro de Medicina Esportiva da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, contar com a estrutura de uma equipe de profissionais certamente ajuda, mas não livra ninguém do risco de desenvolver um distúrbio alimentar grave em um ambiente competitivo, especialmente nas modalidades em que o peso tem efeito direto na performance – caso de ciclistas de estrada, corredores de longa distância, esquiadores de salto, nadadores, mergulhadores e ginastas, por exemplo. Leslie também afirma que comportamentos são “contagiosos”, ou seja, atletas com distúrbios influenciam os outros. “Sabemos que um esportista não está bem quando há mudanças no humor, queda de performance, aumento de lesões, osteoporose, queixas de problemas digestivos, frio excessivo durantes os treinos e isolamento durante as refeições. Nas mulheres, a menstruação cessa, um processo chamado de amenorreia”, explica a especialista.
EM 2012, A EQUIPE DO CICLISTA BRITÂNICO Chris Froome revelou preocupação com a saúde do atleta, que levantou especulações por causa da aparência magérrima. Agiram rápido: durante o período de descanso de Chris, nutricionistas e treinadores cuidaram para que ele adotasse uma dieta hipercalórica e deixaram claro que sua vaga no Team Sky dependia do que a balança apontasse ao final. Meses depois, ele venceria a centésima edição do Tour de France, prova mais dura do ciclismo mundial. Porém em 2014, durante o Critérium du Dauphiné, prova clássica do esporte que rola na França, o ciclista apareceu mais magro que nunca. Antes de Froome, outros casos chamaram a atenção da mídia, embora pouquíssimos atletas venham a público assumir que possuem distúrbios alimentares. Há, felizmente, exceções: a nadadora norte-americana Amanda Beard, dona de duas medalhas de ouro em olimpíadas, não apenas revelou que sofria de depressão e bulimia como descreveu seu calvário no livro In The Water They Can’t See You Cry [Embaixo da Água Eles Não Podem Te Ver Chorar, lançado em 2012 e ainda sem edição no Brasil]. Também ficou relativamente conhecida a história do ciclista de pista escocês Craig MacLean, dono de uma medalha de prata nos Jogos de Sydney, que se salvou da bulimia quando deixou de insistir na carreira de atleta de longa distância e assumiu seu tipo físico, mais apropriado para competições curtas e que exigem explosão. Os casos de distúrbios alimentares, segundo Leslie, têm crescido entre homens, embora as mulheres ainda dominem as estatísticas. Os números crescem quando o assunto é o Transtorno Alimentar Não Especificado (Tane), categoria “subclínica” que se diferencia dos distúrbios alimentares clássicos porque a relação distorcida com o corpo não esconde necessariamente questões psicológicas de ansiedade, depressão, autoestima e controle, como nos casos de bulimia e anorexia. Encaixam-se nessa categoria pessoas que contam calorias e se pesam obsessivamente, compensam aquilo que comeram com atividades físicas excessivas, substituem regularmente refeições por suplementos e treinam muito. Segundo um estudo da Universidade da Carolina do Norte (EUA), de cada quatro norte-americanas três apresentam características de Tane. Entre atletas, os percentuais chegam a 45% nas mulheres e 19% nos homens. Para Leslie e outros especialistas, distúrbios alimentares são como dependência química: não existe cura definitiva. “Mas todos podem aprender a administrar o problema e ficar em paz consigo mesmo”, diz ela. A britânica Julia Armstrong tem 55 anos e desde os 37 não sofre mais para comer. Em meados de 1985, ela estabeleceu o recorde da Maratona de Dublin (2h41m24s) e, um ano depois, cravou seu melhor tempo nos 42 quilômetros (2h36m31s). “Vivia um tormento pessoal, com desespero e aprisionamento constantes. Compensava minhas angústias pessoais na alimentação”, diz Julia, que até hoje é atleta. Seu conterrâneo David Proctor relata sentimentos parecidos: “Enquanto um lado meu me encorajava a comer de forma restrita, perder peso e correr mais para queimar calorias, o outro tentava me convencer de que eu precisava repor o que havia perdido. Meu estado mental era uma confusão gigantesca, eu ficava completamente perdido”, descreve ele, que afirma ter convivido com diversos atletas vítimas de distúrbios alimentares, embora ninguém tocasse no assunto.
A nutricionista esportiva Daniela Neves, da clínica paulistana Sportslab, atende semanalmente ao menos um caso de distúrbio alimentar em mulheres fisicamente ativas, que geralmente a procuram para baixar ainda mais o peso. Nos exames de seus pacientes, a falta de glicogênio muscular – o que provoca fadiga e baixo rendimento – está expressa em cortisol elevado, anemia (diminuição dos eritrócitos e hemoglobina) e na queda de leucócitos (serie branca), zinco e eletrólitos. “O primeiro passo para começar um tratamento é fazer a pessoa enxergar o problema. A partir do momento em que se ganha a confiança do paciente, é possível introduzir os nutrientes de forma gradual e ir, aos poucos, aumentando a ingestão calórica”, explica. Segundo Katherine Beals, especialista norte-americana em distúrbios alimentares em atletas e autora de três livros sobre o assunto, o universo do alto rendimento pode ser comparado ao da moda no que diz respeito ao rigor dos padrões físicos. Para ela, é possível ter um corpo magro e saudável, desde que as necessidades individuais de calorias e nutrientes sejam atendidas. “O perigo está menos no peso em si e mais no comportamento em relação à alimentação e aos treinos”, adverte. A surfista Andrea Lopes concorda que quem quer resultados precisa se submeter a níveis de exigência acima da média. “Mas, para mim, existe uma linha tênue entre disciplina e controle. Quando se quer controlar tudo, a vida te cobra e te responde com descontrole. Quem tem disciplina é livre, não precisa se privar totalmente de nada porque sabe dosar. O equilíbrio é que faz um campeão.”
>> Abra os olhos Alguns sinais de quando praticar um esporte pode virar doença, segundo a Associação Nacional de Distúrbios Alimentares dos Estados Unidos
> Ter constante preocupação com a planilha de treinos
> Deixar compromissos importantes de lado para treinar
> Substituir a vida social por treinos
> Ficar furioso, culpado ou ansioso se precisa abrir mão do treino
> Não tolerar mudanças na rotina
> Preferir treinar sozinho para não interferirem no que você planejou
> Usar os treinos pesados para manter o peso e a forma física
> Basear suas escolhas alimentares na atividade física: o exercício serve como meio de compensar as calorias e a alimentação fica restrita se a pessoa não consegue treinar
> Mentir sobre a intensidade e o próprio treino para outras pessoas
> Não conseguir cumprir os dias de descanso
> Fazer atividades físicas “extracurriculares”, em desacordo com o que treinador estabeleceu
> Nunca estar satisfeito com os resultados físicos
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2014)
MAGRO DE RUIM?: A fina silhueta do ciclista britânico Chris Froome, vencedor do
Tour de France de 2013, levanta suspeitas sobre sua saúde
(FOTO: Reuters)
NO LIMITE: A nadadora norte-americana Amanda Beard,
bem magra em 1996; abaixo, a surfista Andrea Lopes (à esq.) na fase da anorexia