Seja escalando prédios, desbravando os subterrâneos do metrô ou surfando trens metropolitanos, os aventureiros urbex arriscam a própria vida para conhecer sob um novo ponto de vista as cidades onde moram
Por Bruno Romano
AVENTURA URBANA: Urbex em ascensão ilegal de uma ponte em Edimburgo, na Escócia
(Foto: Bradley Garrett)
ENCAPUZADOS E COM OS ROSTOS COBERTOS, dois ucranianos invadem o prédio mais alto da cidade. Não se tratam de manifestantes em meio aos recentes conflitos políticos na Europa oriental. Eles estão em Xangai, na China, e têm um objetivo bem claro: atingir o topo da torre mais alta do país (e segunda maior do mundo), com 632 metros. Como não possuem permissão do governo local para estar ali – e nem conseguiriam, mesmo que pedissem –, aproveitam-se da falta de segurança por conta das celebrações do ano novo chinês, no dia 31 de janeiro deste ano. A dupla, formada por Vadim Makhorov e Vitaliy Raskalov, entra por volta da meia-noite na torre, sobe 120 andares a pé e dorme nos entulhos do prédio ainda em construção. Dezoito horas depois, assim que as nuvens baixam e o tempo melhora, começam uma escalada ilegal e arriscada, que culmina na última peça do guindaste que está finalizando a construção do edifício. O vídeo independente divulgado no site da dupla (ontheroofs.com) registra o feito e dá um verdadeiro nó na garganta de quem o assiste durante os três minutos finais. Qualquer erro ali seria fatal.
Os dois ucranianos são representantes extremos de uma nova geração de exploradores urbanos, conhecidos pela abreviatura em inglês urbex (derivada de “urban explorers”). Você pode encontrar um a mais de 600 metros de altura ou 15 metros para baixo de um bueiro. Eles pulam cercas, invadem locais abandonados, se infiltram em estações de metrô e antigos túneis de guerra, desvendam esgotos e até catacumbas. São escaladores, base jumpers, trekkeiros e highliners que também se dividem por preferências e têm seus picos favoritos e modalidades próprias. Segundo reportagem do jornal britânico “The Guardian”, estima-se que existam 20 mil urbex espalhados pelo planeta. Em meio a tantas tribos, todos parecem alimentar um anseio comum: quebrar com a rotina do que vemos e sentimos nas cidades, trazendo à tona outra forma de observar e interagir com o que se tornou habitual e cotidiano nos grandes centros urbanos.
Suas motivações, de certa forma, se parecem com às daqueles que se lançam em aventuras na natureza: cada vez que colocam em prática a vontade de explorar o entorno onde vivem, mais forte ela fica, e mais alto (ou fundo) se quer ir. Mas, afinal, quem são esses exploradores e onde querem chegar?
PELO CANO: Visita subterrânea a uma rede de esgoto em Londres
(Foto: Bradley Garrett)
O MOVIMENTO É INTERNACIONAL e bem amplo. E cada caso ajuda a entender melhor a grande cena urbex. “Nos últimos quatro anos, o que sempre me motivou foi a aventura em si: pular muros, se esconder, correr. Além da busca pelos lugares certos, claro. Tudo isso é divertido e apaixonante. E me leva a conhecer outros lados das cidades”, conta Jordy Meow, fotógrafo britânico que mora em Tóquio e é adepto do haikyo (ruínas, em japonês), nome que designa a exploração de locais abandonados como templos, ruínas, minas e antigas instalações militares. Enquanto você lê este texto, alguém está desvendando lugares assim mundo afora. Exploradores ingleses buscam a melhor hora para subir clandestinamente a London Bridge, um grupo conhecido como Cave Clan desbrava os subterrâneos de New South Wales, na Austrália, e surfistas de trem arriscam suas vidas na África do Sul.
Na carente cidade de sul-africana de Katlehong, a cerca de 30 quilômetros de Johanesburgo, o surf de trem é um fenômeno. O local é marcado pela violência, pelo abuso de drogas e pelas milhares de crianças que já nascem com HIV, além de ter sido chave nas lutas sociais durante o Apartheid. Lá, o surf em cima dos vagões recebe o nome de Staff Riding, uma expressão que está na ponta da língua de Chabedi Thulo, ou Tweba (“rato”, na gíria local), de apenas 22 anos. Improvisando manobras em cimas dos trens, Tweba reconhece o fator mortal do que faz, mas prefere flertar com o perigo pois seu hobby é “uma forma de expressar sentimentos e de tirar a raiva de dentro da gente”. Em um vídeo do projeto Staff Riding, do fotógrafo e videomaker italiano Marco Casino, Tweba declara: “Em vez bater em alguém ou roubar, simplesmente mostramos a nossa ira nos tetos dos trens”.
Demorou até Marco ganhar a confiança dos surfistas de trens sul-africanos e poder filmá-los em ação – muitas vezes ao lado deles, em cima dos vagões em alta velocidade. “O que esses garotos fazem está diretamente ligado à relação da população com a cidade. O trem faz parte da história local e até hoje agrega diversas atividades sociais de Katlehong”, explica o italiano. “É perigosíssimo, pois mortes e amputações são comuns, porém se trata de um interessante fenômeno social. Quando você está no topo de um trem, a adrenalina corre rápido pelas veias, e é uma experiência incrível gravar imagens ali.”
No Leste Europeu, as explorações urbanas estão no auge. Além dos ucranianos Vadim e Vitaliy, que aparecem no início desta reportagem, o russo Marat Dupri se especializou em escalar (ilegalmente) prédios altos e tirar fotos incríveis do topo. Marat conta em seu site: “Lá em cima fico com a sensação de ter o mundo a meus pés. Deixo todos os meus problemas e preocupações lá embaixo. A altura me motiva, e gosto de observar minha cidade de outro ponto de vista. Enche-me de energia e entusiasmo para fazer ótimas fotos”.
Na mesma linha de frente, buscando se infiltrar em edifícios e tirar fotos se pendurando em estruturas sem nenhuma segurança, está Mustang Wanted (conhecido pelas iniciais MW), codinome de um búlgaro que tem elevado o nível desses feitos. Apesar de mostrar o rosto na maioria das fotos, MW se recusa a dizer seu nome real e também é um pouco avesso a entrevistas. Em seu site, ele deixa claro um alerta para que ninguém tente repetir o que faz. O búlgaro trabalha como carregador em um porto e afirma nunca ter ganhado dinheiro com suas peripécias. MW já experimentou esportes extremos e gostou, mas prefere mesmo é explorar o concreto. Seu novo projeto, chamado Vertigo, envolve fotos de pessoas penduradas pelo braço, sem proteção, no topo de grandes edifícios.
QUE PERIGO: Jovem sul-africano se arrisca pendurado em um trem próximo a Johannesburgo
(Foto: Marco Casino)
ENTENDER O QUE PASSA NA CABEÇA de um urbex como MW instigou o britânico Bradley Garret, que publicou recentemente seu doutorado na Universidade de Londres, intitulado Explore Everything: Place-Hacking the City [Explorando Tudo: Invadindo a Cidade, em uma tradução livre]. Bradley foi fundo e mergulhou no universo urbex, se tornando ele mesmo um explorador por pelo menos quatro anos. A pesquisa inclui mais de 300 aventuras em oito países, ao lado de cerca de 100 envolvidos na cena mundial. O britânico chegou a ser detido por oficiais do serviço de transporte de Londres e teve seu computador, celular e passaporte confiscados para investigação durante as pesquisas. Em seu livro, Bradley conta a história do London Consolidation Crew (LCC), grupo notório de exploradores do Reino Unido – uma galera com quem o acadêmico deu vários rolês. Já está fechado com uma editora o lançamento de seu segundo livro em setembro deste ano, com imagens exclusivas do subterrâneo de Londres.
Em Nova York, o historiador Steve Duncan, de 35 anos, também foi fundo no tema (literalmente). Explorador desde os 18, quando se mudou para a cidade, Steve já percorreu os subterrâneos de diversos pontos da metrópole e desenvolve um projeto chamado Under City, no qual divulga fotos e agrega pessoas aos passeios. “Ainda é divertido, mas eu já não faço as mesmas loucuras dos meus 20 anos. Muitas vezes levo gente comigo, mas não quando acho que pode ser arriscado demais”, diz. Steve é obcecado pelo tema e está encaixado em uma tribo mais “nerd” dos exploradores, como ele mesmo define. O cara é capaz de passar horas contando histórias sobre a infraestrutura e o desenvolvimento das cidades, mas também enxerga várias semelhanças suas com exploradores como Tweba, MW e Raskalov.
Mesmo underground, o urbex às vezes atrai holofotes, como na história do excêntrico francês Alain Robert. Alain possui em sua longa carreira inúmeras escaladas ilegais, na maioria com prisões declaradas já no topo do prédio, além de outras ascensões legalizadas com grande público presente e aventuras para arrecadar fundos para instituições de caridade. Por coincidência (ou não), Alain nasceu em 1962, mesmo ano em que o Homem-Aranha surgiu nos quadrinhos. Hoje, aos 51 anos, segue se desafiando em arranha-céus apenas com sapatos de escalada e pó de magnésio, honrando sua célebre frase “Eu transformei meu pior inimigo em meu melhor amigo”, já que morria de medo de altura quando criança.
Alain não foi exatamente um precursor da escalada urbana ou buildering (mistura de bouldering, tipo de escalada, com building, prédio em inglês), uma das vertentes do urbex. Registros de aventureiros urbanos se espalham pelo mundo e é difícil determinar quem começou com a brincadeira. No início do século 20, o norte-americano George Polley, dono de uma loja de sapatos, registrou a escalada de 2.000 edifícios nos EUA – muitas vezes acabando em prisões. George ganhou o apelido de “Homem Voador”, mesma alcunha dada para Harry Gardiner, que conquistou 700 prédios na mesma época, expandindo a exploração para a Europa e realizando seus feitos apenas com roupas e sapatos normais.
Um bom nome para ganhar o status oficial de pioneiro é Geoffrey Young, escalador de rocha britânico que abriu diversas vias no fim do século 19. Quando não estava nas montanhas, em Trinity, uma das três escolas reais da Universidade de Cambridge (Inglaterra), Geoffrey se divertia ao escalar os edifícios das salas de aula. Ele chegou a publicar em 1899, o The Roof-Climber’s Guide to Trinity [O Guia do Escalador de Trinity], um divertido passo-a-passo de como conquistar os telhados urbanos, na contramão da arcaica e tradicional realeza local.
Geoffrey teria se dado muito bem com James Kingston, um jovem britânico de 22 anos que adora se pendurar em pontes, prédios ou guindastes e tem expandido os limites atuais de exploração. Praticante de parkour, James inclui nas aventuras saltos surreais entre prédios, sempre sem proteção alguma. “Estou constantemente empurrando meus limites e tentando sair da minha zona de conforto. Escalar prédios e guindastes é um jeito fácil e garantido de ter uma ótima vista”, conta James, que diz nunca ter tido problemas com autoridades.
DOIDINHO: O ucraniano Vitaliy Raskalov escala a Torre de Xangai, na China, de 632
metros de altura
(Foto: Vadim Makhorov)
A TECNOLOGIA TEM APROXIMADO os urbex ao redor do mundo. Atualmente o retorno é imediato: uma nova foto postada na internet gera milhares de comentários e discussões. Uma das páginas mais acessadas é a de Mustang Wanted, que divide opiniões. Um seguidor provoca uma foto de MW pendurado pelos dedos: “Cara, acho que você precisa transar mais, quero dizer, que merda você tem na cabeça para fazer algo assim?”. Outro defende o urbex, logo abaixo da mensagem crítica: “Todo mundo tem um talento específico, mas muita gente passa a vida sem encontrar a sua função. Parece que você achou e, pela forma como sorri, deve estar se divertindo muito”.
Mustang não só se diverte em suas explorações como também tira sarro nas redes sociais. Em 1º de abril, dia da mentira, ele pegou pesado: postou uma foto como se fosse alguém anunciando sua morte em um acidente nas alturas. A imagem era de um pulo arriscado em cima de uma torre, o que gerou controvérsias. Um homem chegou a dizer que pararia de seguir as peripécias, lembrando casos recentes de mortes trágicas no base jump. Mas um fã lembrou que Mustang estava apenas fazendo o que o move todo dia: brincando com a morte. MW desmentiu a suposta morte no dia seguinte.
Em alguns casos, os urbex ganham ares de ativistas, quando se conectam a ideias como abrir portas trancadas e desenterrar histórias escondidas nos subterrâneos. “Sou fascinado pelas diferentes camadas das cidades e acho importante explorar esse universo. Não acho que a polícia deveria me prender apenas por eu estar observando rios subterrâneos”, defende o norte-americano Steve Duncan.
Em todos os casos, o cenário pode ficar bem feio em caso de acidente. Sem falar que os feitos estão longe do glamour e do reconhecimento da conquista de uma via de montanha ou de uma travessia em mar aberto, por exemplo. Os exploradores de concreto não recebem grana para isso, não se tornam “celebridades underground”, com raras exceções, e ainda podem terminar a noite na cela de uma prisão. Mas, para todos eles, a recompensa acontece na forma de uma aventura única e de uma visão privilegiada das cidades onde vivem.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)