O aquecimento global visto de cima

Por Maximo Kausch

Como montanhista, tenho o privilégio de ver o mundo por outra perspectiva. Lá de cima tudo é sereno e simples. Cidades parecem pequenas, problemas ficam insignificantes. Passo a valorizar coisas que jamais valorizaria aqui embaixo. Coisas simples como um copo de água limpa tornam-se um luxo. Poucos têm esse privilégio.

No entanto, há outros privilégios em ser montanhista. Os ambientes maravilhosos que nos cercam dão uma oportunidade única de ver de perto as conseqüências causadas pelo aquecimento global. Alpinistas acompanham glaciares retrocedendo a cada ano e testemunham fenômenos climáticos sem precedentes. Eles voltam alarmados às cidades. No entanto, ninguém parece estar preocupado aqui embaixo.

Existem basicamente duas vertentes do porquê de isso estar acontecendo. Alguns dizem que o homem e seu processo de industrialização vêm causando essas grandes mudanças climáticas através da produção excessiva de CO2. Outros acreditam que isso é um processo natural e sempre aconteceu no passado.

Como montanhista, observo marcas deixadas por glaciares que começaram a retroceder muito antes de o homem se industrializar. Isso causa uma grande dúvida nas cabeças das pessoas, pois desacreditar a teoria do aquecimento global causado pelo homem é como dizer que a Terra não é redonda…

Brigas à parte, vamos adiantar a fita e observar o presente. Mais especificamente as últimas décadas.

Com incontestáveis mudanças climáticas, nós montanhistas passamos verdadeiros perrengues, pois esperamos um clima X e somos surpreendidos por um clima Y.

Lembro de uma ocasião nos Alpes, em 2003, quando decidi escalar a aresta Lion do famoso Matterhorn, que fica entre a Suíça e Itália. Essa era uma daquelas escaladas que eu sempre li a respeito em relatos como o do explorador inglês Edward Whymper.

Whymper liderou uma equipe em 1865 para escalar o que era chamado o último grande desafio dos Alpes na época. Na escalada, ele de fato alcançou o cume do famoso Matterhorn, porém na descida, quatro de seus companheiros faleceram.

Nos relatos ele descrevia uma chaminé técnica de 90 graus muito difícil, que se parecia um livro aberto. Quando fui lá em 2003, porém, não foi bem assim. No lugar dessa chaminé, encontrei-me com uma parede totalmente lisa.

Tive que reabrir a rota com pitons de escalada (que são uma espécie de pregos de metal que martelamos em fendas rochosas). Coincidentemente consegui uma foto da década de 20 onde existe um alpinista exalando esta exata chaminé.

Repare que na minha foto em 2003, apesar do mesmo lugar, falta uma grande parede na esquerda da foto.

Anos mais tarde, vim a descobrir que isso é na verdade causado por um fenômeno chamado derretimento de permafrost, que nada mais é que uma camada de gelo que fica o ano todo congelada. Acredita-se que ela está lá (estava) pelos últimos 30 mil anos e derreteu em 2003, justamente quando azarados como eu decidiram escalar lá.

Ao longo da minha carreira, no entanto, vim a descobrir que existem inúmeros efeitos visíveis de aquecimento global que ignoramos. Muitos pensam que isso se dá em gerações. Porém observem as fotos que meu companheiro Pedro Hauck tirou dos mesmos vulcões em 2002, 2007 e 2009, sempre na mesma época do ano.


(Vulcão em 2002 – Foto: Pedro Hauck)


(Vulcão em 2007 – Foto: Pedro Hauck)


(Vulcão em 2009 – Foto: Pedro Hauck)

Aqui claramente podemos observar que a neve eterna presente no cume desses belos vulcões, o Parinacota (esquerda, com 6300m) e o Pomerape (direita, com 6250m), está retrocedendo. Lembro que, em 2002, conseguíamos derreter neve das reservas a 4700 metros. Hoje temos que andar mais que 2 quilômetros para chegar a esta neve.

E os exemplos seguem. No ano passado, no Paquistão, durante uma expedição de 70 dias, pude observar o alarmante derretimento de um glaciar no tempo que estive ali. Meu amigo Arian Lemal montou sua barraca na superfície de um glaciar coberto com cascalho, porém, após 70 dias, veja onde foi parar a barraca dele. Parece que ele se sente o rei do castelo, porém o que aconteceu aqui é que todo o gelo ao redor de sua barraca derreteu, deixando a torre de gelo abaixo da barraca dele. Vemos que claramente a perda foi de pelo menos 3 metros em 70 dias!

Outro exemplo: no ano 2000, fui para os Andes centrais na Argentina e tirei umas fotos de uma montanha muito conhecida, o Cerro Rincón. Dois anos mais tarde tirei outra foto e observei grandes recuos nas geleiras e fendas na montanha. Veja só a mudança em dois anos:



Repare na mudança na profundidade das fendas e no recuo de manchões de neve na montanha.

Na parede sul do Aconcágua, no começo do ano passado, em meio a um bombardeio de pedras do tamanho de televisões pude observar esta cena:

Aqui existe um bloco rochoso suspenso no topo de uma torre de gelo. A superfície do gelo se igualava à altura do bloco. Porém o derretimento de dois meses diminuiu a altitude ao redor da pedra, chegando a esse absurdo.

O mais interessante de isso tudo é que aos poucos fui percebendo o quanto sou azarado ao encontrar esses fenômenos atípicos. Em 2005, a monção do Himalaia, que geralmente é muito precisa e chega no final de maio, atrasou duas semanas. Aquela foi a primeira vez em 50 anos. Pois é, eu estava lá… Outros fenômenos presenciados por mim:

>> 2001 – Primeira chuva no deserto do Atacama em 300 anos. Eu estava lá.

>> 2011 – As piores enchentes no Paquistão dos últimos 70 anos. Eu estava lá.

>> 2003 – A maior taxa de derretimento de permafrost da história do Matterhorn, na Europa. Eu estava lá.

Posso descrever inúmeras ocasiões e fenômenos atípicos que eu testemunhei e não deveriam ter acontecido baseando-se no clima dos últimos anos.

Além de reconhecer que sou um tremendo azarado, observo que o planeta está aquecendo e as montanhas são as que mais sofrem com esses novos fenômenos.
Nossos filhos terão que ter habilidades muito superiores às nossas para superar todas essas dificuldades.

Fico muito triste com tudo isso. Mas ao mesmo tempo tenho muito orgulho em participar da última geração que teve a chance de escalar montanhas da forma como elas foram pelos últimos 30 mil anos.

Maximo Kausch é montanhista dos bons e ganha a vida guiando expedições pelos picos mais altos da Terra.

O site Alta Montanha é um espaço virtual inteiramente dedicado ao tema do montanhismo. Para visitá-lo, clique aqui.







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