(Ricardo Bertoncello)
EMBORA SEJA UM DESTINO COBIÇADO POR SURFISTAS do mundo inteiro, o arquipélago de Mentawai, a 100 quilômetros da costa oeste da Sumatra, na Indonésia, é um privilégio para poucos. Apenas quem se dispõe a pagar preços exorbitantes pela hospedagem a bordo de barcos luxuosos desfrutam daquilo que é considerado a Meca do surf mundial. Para mim, passar uma semana em um barco surfando ondas perfeitas era caro e insuficiente. Eu queria mais. Meu objetivo era me integrar ao lugar, conhecer o povo local, os costumes, a maneira de pensar, a língua e, principalmente, fazer das ondas mais clássicas do planeta uma rotina em minha vida.
Após trabalhar num restaurante por quatro meses, morando numa barraca em frente a uma onda perfeita, na ilha de Kauai, Havaí, eu estava pronto para encontrar um amigo brasileiro que vinha da Espanha e que tinha os mesmos objetivos em relação à Indonésia. Resolvemos pegar um avião para a Malásia, tentar chegar a Mentawai utilizando o transporte local e ficar hospedado em terra junto aos nativos.
Mas não é fácil chegar lá por conta própria. Começamos a epopéia em Kuala Lumpur, capital da Malásia, onde providenciamos o visto e recebemos uma leva de pranchas, vindas por navio do Brasil. Pegamos um ônibus até o porto e atravessamos de balsa o estreito de Malaca — passagem que separa a península malaia da ilha indonésia de Sumatra, entre o oceano Índico e o Mar da China meridional, e que serve de via de trânsito para um terço do comércio mundial e metade dos abastecimentos de petróleo.
Cruzamos a Sumatra de leste a oeste, de busão. Esta viagem serviu para termos uma noção do que é a Indonésia: o ônibus não sai enquanto não estiver lotado, portanto não adianta ter pressa; as poltronas estão caindo aos pedaços e as galinhas passeiam livremente pelo corredor; em meio à fumaça de cigarro, ao barulho da música no último volume e dos gritos empolgados do motorista a cada ultrapassagem emocionante.
Depois de chacoalhar no chão da balsa por uma noite, avistamos os primeiros coqueiros. Tão logo pisamos no arquipélago, sentimos a mudança da atmosfera. O astral era bem diferente do sujo e bagunçado cais onde embarcamos. O lugar era calmo e as pessoas tranqüilas e receptivas. Mas ainda era necessário negociar um barco de pesca para chegar às ilhas com ondas.
POR CAPRICHO DO DESTINO, os pescadores que nos levavam a essas ilhas precisaram parar na casa de amigos por motivos que desconhecíamos. E qual não foi a minha surpresa quando percebi que seus amigos eram pescadores que moravam numa casa flutuante situada entre ilhas paradisíacas, com bancadas de coral por todos os lados — havia seis ondas diferentes apenas naquele ponto.
Embora impressionados com a beleza do local, resolvemos continuar até o nosso destino original, uma pequena ilha 16 quilômetros ao norte. Ao chegar, vimos que as poucas casas existentes estavam vazias. Os pescadores explicaram que era época de eleições, portanto todos estavam votando na ilha principal, e escreveram uma carta em indonésio para o dono de uma das casas, que chegaria em breve.
Ali ficamos, com toda nossa bagagem e uma carta na mão, olhando o barco que havia nos trazido se perder no horizonte, esperando alguém que chegaria com a chave de uma casa onde nos hospedaríamos. Apesar de quietos, pensávamos a mesma coisa: “E se ninguém aparecesse? O que estávamos fazendo sozinhos numa ilha do Oceano Índico?”.
Apesar de ter me preparado exaustivamente com dois cursos de primeiro socorros, barracas, mosquiteiros, vacinas, remédios, comida, repelentes, permetrina (material para impregnar nas roupas e afastar os mosquitos, usado pelo exército francês), facas, lanternas etc., naquele momento me senti completamente desamparado. Se tivesse que escolher apenas duas coisas para carregar comigo, abriria mão das minhas pranchas de surf e ficaria só com o repelente e com o meu pequeno dicionário, que parecia ser meu principal elo com o mundo em que estava.
Por mais que eu quisesse evitar, a mente começava a pensar nos perigos. A malária, doença transmitida através de picada de mosquito, era a principal preocupação. Como não existe vacina e as drogas profiláticas não são totalmente efetivas, a única solução é evitar ao máximo as picadas. Os corais afiados sob as ondas e as cobras d’água venenosas que serpenteiam pelo oceano também figuravam entre os principais perigos, uma vez que o hospital mais próximo estava a muitos quilômetros de distância — e de barco.
Apesar de saber da existência de ondas alucinantes naquela ilha, ainda não tínhamos visto uma espuma sequer. Naquele fim de tarde, depois de montar as barracas, fui novamente à praia. Inesperadamente, uma ondinha perfeita se formou num mar aparentemente flat, e rolou um tubo do começo ao final, restando apenas o típico “spray” que sopra no fim de uma onda tubular. Em poucos instantes estávamos surfando, com sorrisos nas caras e menos preocupados com a situação. DOIS DIAS DEPOIS, o dono da casa chegou. Apesar do alívio, a situação não melhorou muito. A casa não tinha luz elétrica nem banheiro. Era empestada de ratos e mosquitos. Além disso, era necessário cozinhar, lavar, ferver a água para beber e andar pelo mato para surfar outras ondas.
Duas semanas depois, reencontramos os pescadores da casa flutuante por que passamos e lhes fizemos uma proposta para nos hospedarmos ali. Após uma longa reunião, fomos aceitos “a bordo”. Fizemos um acordo para comer, dormir e usar uma canoa motorizada para explorar as ondas da região. Contando com as ilhas vizinhas, podia-se chegar de canoa a 12 picos. Não tardou para eu começar a me comunicar em indonésio e ficar amigo dos pescadores. E a vida tomou outro sentido. Todo dia, nossa rotina era comer, dormir, surfar, alongar, ler, conversar e pensar — simplesmente um luxo.
O tempo, talvez um dos recursos mais escassos da sociedade moderna, tem outro significado nos confins do oriente. Não há pressa para absolutamente nada. O trabalho era realizado em ritmo pré-revolução industrial, dependendo de aspectos físicos da natureza, como a luz solar, a maré, a lua e a temperatura da água. Embora houvesse empregados trabalhando, o chefe era considerado mais um pai do que um patrão e os nativos gastavam longas horas do dia jogando dominó, dormindo e conversando conosco. O salário era o equivalente a US$ 1 por dia, ou seja, para pagar um café no restaurante que eu trabalhava no Havaí era preciso trabalhar dois dias na Indonésia. Ainda que numa situação muito melhor do que na primeira casa, o modo de vida continuava bem diferente do que estamos acostumados. Dormia-se em esteiras de palha no chão, o banho era com uns baldinhos de água da chuva, a dieta era basicamente arroz e peixe, não havia banheiro nem eletricidade “a bordo” e o quarto não possuía paredes laterais – o que fazia com que às vezes acordássemos molhados. No entanto, por estarmos sobre o mar, não tinha rato e havia menos mosquitos.
O único contato com o ocidente ocorria na hora de compartilhar os picos com os surfistas hospedados nos barcos, que estranhavam dois barbudos aparecendo de canoa do meio do nada. Muitas vezes, enquanto estávamos pegando onda, nosso amigo canoeiro ia pescar e nos encontrava na praia, onde pegava cocos, abundantes em todas as ilhas, e fazia uma fogueira para assar os peixes. A vida parecia pulsar mais forte. Paraíso e inferno conviviam juntos num só lugar. Em um segundo pode-se estar percorrendo um lindo caminho no melhor tubo da sua vida; no outro, pode-se estar seriamente machucado no coral ou com os sintomas da malária, a uma centena de quilômetros da civilização.
MORAMOS POR DOIS MESES NA CASA FLUTUANTE, uma temporada que foi interrompida apenas por um “bate e volta” à Malásia para renovar o visto de permanência na Indonésia. Com o tempo, fiquei bem familiarizado com a região e entendi o funcionamento das ondas, que variam a todo o momento, de acordo com a direção e intensidade da ondulação e do vento, e com a mudança da maré. Diferente de outros lugares da Indonésia, Mentawai não tem uma influência tão direta dos ventos alíseos, que sopram predominantemente na mesma direção durante a estação inteira. É possível ventar dos quatro quadrantes num mesmo dia, fazendo com que seja necessário entender o que está acontecendo com o clima para descobrir onde estão quebrando as melhores ondas. Cada onda exige uma combinação peculiar de condições físico-climáticas para funcionar com perfeição. Além disso, quando se chega de barco é difícil visualizar as ondas “pelas costas”, e caso não tenha ninguém surfando, fica a dúvida a respeito de pedras salientes ou outros perigos que podem fazer com que ninguém surfe determinadas ondas.
Tão importante quanto entender os padrões climáticos era entender os padrões comportamentais do povo, que tinha reações inusitadas a questões comuns do cotidiano. Ao mesmo tempo em que fiquei sensibilizado com o desapego pelos bens materiais dos muçulmanos que conhecemos, me decepcionei com as notícias que recebera a respeito dos planos de investidores ocidentais para o local. Além de um projeto para a construção de um megahotel em uma das ilhas, há planos para a privatização de algumas ondas. Nesse caso, qualquer surfista, inclusive os locais, seria obrigado a pagar uma taxa para surfá-las.
Instigados a conhecer a realidade de outras ilhas do arquipélago, resolvemos partir para explorar ondas mais ao sul. Ficamos hospedados na casa de nativos em mais duas ilhas diferentes. Finalmente, depois de três meses surfando ondas perfeitas, retornamos a Sumatra. Meu amigo voltaria ao Brasil e eu continuaria a viver pelo mundo por mais algum tempo.
Apesar das dificuldades enfrentadas, nosso objetivo de vivenciar o lugar, a cultura e pegar ondas perfeitas diariamente foi concluído com êxito. Embora tivéssemos que abdicar do luxo e da comodidade a que estávamos acostumados, a recompensa espiritual excedeu em muito a falta do conforto material. Além disso, reforcei a minha percepção de que para nos sentirmos completos não precisamos de muitas das coisas a que nos apegamos.
Quase um mês depois de ter deixado Mentawai, viajando pelo interior da Sumatra, comecei a ficar com a resistência do corpo baixa e sentir muita febre. Posteriormente, descobri que pegara malária durante minha estada no arquipélago. Após mais de vinte dias doente, sozinho, perambulando pela Sumatra, tive que voltar à Malásia para me tratar. Depois de curado, voei para Bali com o intuito de concretizar uma outra realização: atravessar o Oceano Índico a bordo de um veleiro, conhecendo ilhas esquecidas e outros modos de vida. Mas essa já é uma outra história. ASSIM É MENTAWAI
Devido aos movimentos dos oceanos, responsáveis pela mudança do nível do mar e o conseqüente isolamento de penínsulas, transformando-as em ilhas, o arquipélago de Mentawai está separado da costa oeste da Sumatra a mais de 500 mil anos. Isso acarretou uma evolução muito peculiar em relação à fauna e flora locais — 60% das espécies são de mamíferos e 15 % da flora é endêmica, isto é, ocorre exclusivamente naquela região.
Enquanto a vegetação das maiores ilhas é formada por florestas tropicais e mangues, as ilhas menores são cada vez mais adensadas por coqueiros. A coleta do coco e a secagem em fornos típicos para a venda da “carne do coco” constituem a principal atividade econômica de muitos moradores.
Pressões internacionais influenciaram o governo a criar o Parque Nacional de Siberut, situado na principal ilha do arquipélago, como tentativa de frear a devastação causada pelas empresas malasianas exploradoras de madeira.
Se atravessar a ilha num ônibus tinha sido intenso, é difícil explicar a sensação que tivemos quando chegamos ao cais para tentar pegar a balsa rumo a Mentawai. Éramos os próprios alienígenas. Ninguém nos entendia e nós não entendíamos ninguém. Dezenas de pessoas aglomeraram-se a nossa volta, curiosos com a nossa presença e com a quantidade de bagagens: três pranchas, uma barraca e uma rede com mosquiteiro cada um, além de roupas, kit de primeiro socorros, capacetes, facas, livros e comida para um mês. A única palavra que conhecíamos em comum soava extremamente familiar em meio àquela miscelânea sonora: “Mentawai, Mentawai…”, diziam os nativos enquanto apontavam para a balsa.
Tubos e Conexões
Dois brasileiros resolveram abdicar o luxo das surftrips à bordo de barcos no arquipélago de Mentawai, na Indonésia, e se jogam nas ilhas para viver como os locais e pegar ondas perfeitas quase que diariamente