Ryan Knighton não enxerga, mas mesmo assim decidiu realizar o sonho de aprender a surfar. Para isso, convidou um amigo que pega onda – e é surdo Por Ryan Knighton
O tilintar final de seus talheres sugerem que ele decidiu comer seu sanduíche com as mãos. Largo meus talheres e caio de boca também. Estávamos indo surfar. “Detonar” era o verbo do dia. Eu só torcia para que eu não acabasse detonado também. Apesar de estarmos em boa forma, éramos basicamente dois pais de família cabeças ocas. “Quer mais um? Você precisa de carboidrato”, pergunta ele. “Não, estou satisfeito.” “O que foi que você disse?” Sua cadeira vira-se para o meu lado, para que ele pudesse ver meu rosto. “Não, já estou satisfeito”, respondo, mais alto e com a pronúncia bem acentuada.
A ideia aparentemente absurda de que Colin, que é surdo, algum dia pudesse me ensinar a surfar já vinha sendo cultivada há um bom tempo. Ele sugeriu esta viagem para a costa da ilha de Vancouver há 16 anos, quando nos conhecemos em um curso de lógica na Universidade Simon Fraser, também no Canadá. Na época, seu ouvido direito ainda funcionava uns 20%, enquanto o direito conservava 60% da audição. Hoje o lado mais fraco já se foi totalmente e o outro escuta cerca de 40%. Se seus lábios saírem do campo de visão dele, você está fora do radar e suas falas não passarão de murmúrios incompreensíveis. Não o tinha visto com muita freqüência desde que nos formamos, por isso a diferença era gritante. Para falar a verdade, eu não tinha visto muita coisa nos últimos anos, então tenho certeza de que minha diferença também era gritante para ele.
“O que você consegue ver agora?”, ele me pergunta. “Você consegue ver um pouquinho de mim?”
Viro-me na direção do som da chuva batendo na janela da padaria. Lá fora estava a cidadezinha amarronzada, como uma cerca de madeira debruçada sobre o Pacífico. O surf aqui é chamado de selvagem. Ondas de primeira classe, dizem. Árvores cor de jade e céu azul-metálico. Mas o que eu sabia disso? Tudo o que minha pele sentia era que fazia 17º C graus e estava muito úmido.
“Bem, se meus olhos fossem essa janela aqui”, explico, “seria como pintar o vidro da esquerda com uma cor tipo molho de carne e a da direita com vaselina. Isso é tudo que enxergo atualmente. Algumas sombras, não muitas.” Essa é uma imagem bem ensaiada, que cultivei ao longo dos anos para as perguntas de estranhos sobre o que consigo ou não consigo ver. Mas a descrição mais simples e precisa é que sou cego.
“Está pronto? Vamos colocar sua roupa de neoprene”, Colin diz. “Vai ser insano.”
Levanto-me, desdobro minha bengala e tropeço em uma cadeira. Pelo menos nas ondas haveria pouca coisa no meu caminho além de mim mesmo. Minha ansiedade de iniciante chegava ao nível máximo. “Você vai ficar de olho em mim na água, né?”, pergunto. Colin abre a porta e me guia até a belíssima mancha que era o mundo lá fora. “Hein?”, dispara ele. “O que você disse?” FiCO surpreso ao descobrir como essas águas geladas são populares: mesmo com a temperatura do fim de verão do Pacífico batendo na casa dos 10ºC, ainda deviam ter umas 20 pessoas nadando em Chesterman.
Nem sempre foi assim. Charles McDiarmid, um dos donos do lendário hotel Wickaninnish Inn de Tofino, cresceu aqui, antes de a primeira estrada de transporte de lenha ligar a aldeia de pescadores ao resto da ilha. Charles me mostra seu hotel incrivelmente tátil, colocando meus dedos em vigas de madeira esculpidas a mão e bolas de vidro usadas por barcos japoneses para manter a rede de pesca no fundo da água. Antigamente era possível encontrar essas bolas de vidro na praia, perdidas. Nunca havia tocado quartos tão reveladores quanto esses. “Nos anos 1950, havia só um cara aqui que surfava”, explica ele. “Aí a cultura do surf explodiu nos anos 1960 e, o mais importante para nós, a tecnologia das roupas de neoprene avançou.”
Depois disso, todo mundo passou a olhar as ondas de um jeito diferente. A população de surfistas teve outro crescimento acelerado quando os norte-americanos que fugiam da convocação para a guerra do Vietnã achavam trabalho como lenhadores ou pescadores na ilha de Vancouver. Os californianos encontraram um imenso potencial para suas pranchas, ou pelo menos assim reza a lenda.
Na baía de Cox, a dez minutos de carro da praia de Chesterman, Colin e eu encontramos com Devo, uma instrutora local da Surf Sisters que chegou num Volvo cor-de-rosa pertencente à tal escola. Até onde sei, Devo não tem sobrenome, e isso não me surpreende nem um pouco. Ela irradia aquele ar cheio de doçura comum em quem divide a carreira entre ser guia de natureza e professora de surf. Coloco minha mão em seu cotovelo para que me leve até a água. Os caras da banda de nerd-rock Devo provavelmente não têm bíceps como os dela.
Devo tinha um plano. Ela me jogaria na direção da praia e Colin me pegaria. O sistema proposto me acalmou um pouco, mas também fiquei um pouco ressentido com esse cuidado extra. Por que não posso me afogar como todo mundo? Será que a diminuição do risco também não diminuiria o prazer de surfar? Vestimos os apetrechos de surf – comecei enfiando meu pé no braço da roupa de neoprene. “Estou meio enferrujado. Não tenho surfado muito desde que comecei a dar aulas”, diz, ou ameaça, Colin.
Talvez como conseqüência do nosso velho curso de lógica, Colin se tornou professor de filosofia na Universidade Politécnica de Kwantlen, no Canadá. Sua especialidade é um antigo enigma, atualizado recentemente no filme Matrix: “Como sabemos que não estamos em um sonho?”. Eu vivo me fazendo a mesma pergunta. No meu caso, a realidade está na sensação de frio quando me dispo ou quando sinto o formato da roupa de borracha. Feche seus olhos e grande parte do seu mundo desaparece.
Recuso as luvas, já que não quero ficar ainda mais cego, e tiro o capuz de neoprene que cobria meus ouvidos. Reduzido somente a olfato e paladar, eu seria menos um corpo e mais um cérebro flutuante. Quão próximo da morte pode um homem se vestir?
Devo toma a dianteira. Colocamos minha longboard no chão e ela faz mímica dos passos de dança básicos necessários para se subir e se equilibrar na prancha. “Deite de barriga para baixo e coloque suas mãos assim”, começa ela. “Assim como?”, pergunto. “Assim.” “O que você quer dizer com ‘assim’?” Devo muda de tática e coloca suas mãos em mim como se fosse uma escultora. Depois de algumas tentativas no seco me levantando da areia e ajeitando meus pés, estávamos prontos. Vamos para as águas geladas do mar. Eu não tenho qualquer imagem do que deveria fazer, somente uma leve memória muscular recém-adquirida de um movimento. Não dá para ficar muito confiante só com isso. Coloque seus dedos na guitarra assim e assim. Agora suba no palco e toque algumas músicas do Led Zeppelin.
Conforme nos aproximamos da arrebentação, Colin grita algumas instruções cruciais para o caso de eu cair da prancha. “Fique submerso um pouco e coloque as mãos na cabeça”, berra por cima das ondas. “Você não quer que a prancha acerte você, né?” Que ótimo, penso. Grandes objetos em queda. Os cegos não são exatamente famosos por saber evitar esse tipo de coisa.
Quando chegamos num ponto em que as águas batiam no peito, consigo reconhecer um ritmo nas ondas do mar. Embora não dê para ver o swell se aproximando, em um nível subconsciente eu posso sentir sua música e antecipar o momento certo para virar meu ombro, cortar a onda e me preparar para outro impacto. Ao me aproximar da arrebentação, vai surgindo dentro de mim uma sensação, uma confiança, que não sentia há muito tempo. É uma sensação de capacidade física. A água que tinha me empurrado de volta e tirado meus pés do chão era agora minha amiga. Aprendo a me mover nela por conta própria, sem ninguém para me guiar. Quando foi a última vez que fui tão longe sem minha bengala? Sem o cotovelo de um amigo? Anos! Eu estou livre.
Paramos quando a água estava quase batendo nos meus ombros. Marolas, era como eu tinha ouvido algumas pessoas chamarem isso. Você pode achar que não é muito emocionante, mas tente colocar uma venda e andar no meio do trânsito até o correio. Não dá para dizer que é uma simples caminhada.
“Depois dessa ondulação, deite de barriga na prancha e se estabilize”, disse Devo. “Quando eu falar ‘Já’, reme com força até eu gritar para você se levantar.”
Antes que eu possa perguntar onde Colin vai ficar, a ondulação me atinge e eu subo na prancha. A água acelera, vira quase uma corrente, e o som fraco da voz de Devo gritando “Já!” surge no ar. Faço o que me mandaram. Então perco a voz dela. Sem sinal para ficar em pé. Só o oceano nos meus ouvidos e o som de minhas mãos remando.
Foi então que senti. Algo me erguendo gentilmente. Um borbulhar de água atrás de mim. Tinha que ser isso. A voz de Devo se perdera no vento. Colin sumira. Arqueio minhas costas, empurro a prancha, movo meu pé esquerdo para frente. Não dá para descrever com palavras a simultaneidade de um corpo em movimento. Buscando a posição correta, o equilíbrio entre meu corpo e o oceano, fico de pé.
Nesses poucos segundos, desequilibrado como uma criança pequena, sinto todo o drama do Pacífico ir embora. Se você não pode ver o mundo passando a seu lado, e o vento sopra ao redor, nada atrapalha seu próprio senso de movimento. Eu estou parado. Era como se estivesse em uma calçada molhada.
Mas eu vejo alguma coisa. Em vez de ficar observando o mundo olhando para a praia, minha atenção se volta para as profundezas do meu ser. Como um bebê, estou ciente de cada feixe de músculos e equilíbrio que um corpo precisa para se manter de pé. Que milagre inacreditável é isso.
“Você conseguiu”, Colin grita a poucos metros de distância. Ele estava surfando paralelo a mim, tomando conta de tudo. “Sim, consegui”, penso. Mas o momento passa, assim como meu equilíbrio, e caio em cima de Colin. Nós dois nos tornamos um pedaço submerso de homens deficientes.
Embora eu tenha ficado de pé na prancha mais algumas vezes e conseguido me manter nessa posição por intervalos mais longos naquela manhã, nada supera aquela sensação da primeira vez. Nunca tinha ficado de pé daquele jeito. A gravidade, a inércia, a maré, tudo parece querer nos derrubar. E, ainda assim, ficamos eretos.
Quatro horas depois, quando os carboidratos já tinham sido consumidos e mal conseguíamos recuperar o fôlego, faço o sinal de “tempo” para Colin. Minha mão tateia até seu cotovelo mais uma vez e vamos andando de volta para a areia. “E aí?”, pergunta ele. “O que achou? Vai tentar fazer isso de novo algum dia?”
“Hein?”
“Você acha que vai tentar…”
“Hein?”
Colin percebe a piada e me empurra para dentro da água, rindo. Eu pulo em cima dele. Éramos como garotos brincando. “Segura!”, diz ele, me dando um caldo e me mergulhando no mais puro silêncio.
*RYAN KNIGHTON é o autor das biografias Cockeyed e C’mon Papa [ambos sem tradução para o português]. Apesar de cego, de algum modo ele também consegue escrever roteiros de cinema.
DE OLHO NO LANCE: Como Ryan, autor deste texto, centenas de surfistas se
jogam todos os anos nas ondas geladas da praia de Chesterman em Vancouver
A padaria onde eu estava na cidade de Tofino exalava um aroma de café, canela e queijo derretido. Embora agradável, o cheiro não servia para dizer onde ficava exatamente aquele lugar. Podia ser um shopping nos subúrbios do Michigan ou um posto de gasolina em Ontário. Por um momento eu estava em todos os lugares e em lugar nenhum. Até que algumas palavras do meu velho amigo Colin Ruloff me trouxeram de volta à costa oeste do Canadá. “Os caras aqui na padoca estão falando que o swell está com 1,5 metro”, disse ele. “Só vou acreditar quando vir com meus próprios olhos.”
Mas a cegueira, descobri, não é um inimigo tão horrível assim. Você tropeça um pouco quando anda pela rua, ocasionalmente faz xixi fora da privada e vai tocando a vida. Nada com que se desesperar. Momentos embaraçosos? Isso pode incomodar alguns cegos. O pior, para mim, é que as bengalas brancas e a leitura em braille não podem curar o mais perigoso efeito colateral da minha condição: a persistente mania de se manter em segurança. A cegueira é um tremendo tédio.
Meu experimento com o surf era, na verdade, uma das muitas situações extremas em eu que vinha me metendo ultimamente. O objetivo final é um livro que se chamará Nada para Ser Visto Aqui. Com esse projeto, quero aprender a curtir este corpo que me restou depois que perdi a visão, por meio da busca de sensações únicas e obscuras ao redor do mundo. Chame isso de um aprendizado. Como é a Torre Eiffel, quando sentida pelo tato? Leve-me até um fedor icônico de uma flor cadáver ou de uma plantação de jacas. É uma pena que nunca vou poder ver a Grande Esfinge, mas já ouvi a sinfonia de centenas de cascavéis enfurecidas do Texas e até abati uma vaca em uma aldeia da Toscana. Não existem cartões-postais para esse tipo de coisa.
Para essa nova aventura, entrei em contato com o único surfista que eu conhecia. Acontece que ele, por acaso, é surdo. Nada muito preocupante. A gente havia desenvolvido um método. Na escola, eu costumava repassar para Colin o que nosso professor de lógica dizia, enquanto ele copiava as anotações da lousa para mim. Até que nossa parceria funcionava bem, mas fomos acusados de cola, pois cometíamos os mesmíssimos (e estranhos) erros em nossas tarefas.
Viajar às cegas tem um lado negativo irônico. O problema começa em casa. Eu conheço cada pontinho dos poucos quarteirões onde moro em Vancouver. Uma memória espacial aguçada faz minha vizinhança parecer enorme. Mas viajar e deixar por um tempo o rico mapa mental do meu bairro faz com que eu desapareça em um mundo menor e menos rico em detalhes. Conforme Colin e eu seguíamos de carro para a praia, Tofino me parecia uma mancha esverdeada, com formas às vezes quadradas que sugeriam casas esparsas. Talvez restaurantes. Ou lojas de sapato. Como eu poderia saber? É uma frustração bem peculiar vir de tão longe até esta ilha só para me sentir como se estivesse preso num desenho de criança, desses feitos com lápis.
“Essa é a praia de Chesterman”, diz Colin estacionando o carro. “Vamos ver com que cara ela está antes de colocarmos a roupa. É aqui que eu costumava viver em uma casa na árvore.” Embora não more mais em Tofino, Colin tem visitado o lugar há 25 anos. A primeira vez que experimentou o surf em águas geladas foi em Chesterman, quando ele tinha 14 anos, e seu amor por essa aldeia de pescadores se tornou tão forte que o trouxe de volta quando se formou na escola, para fazer bicos e partilhar as ondas com orcas e lenhadores. Eram meados dos anos 1980, ele tinha 17 anos e era um skatista patrocinado pela famosa equipe Bones Brigade.
Contente e animado como uma criança, Colin segura meu cotovelo e me conduz até a praia. O barulho faz as ondas parecerem enormes, quebrando na costa com o mesmo som seco de alguém que pula de barriga na água.
“A surdez atrapalhou sua carreira no skate?”, pergunto. “Não, nem um pouco.” Ele faz uma pausa. “Bem, exceto quando estava competindo. Às vezes eu estava no halfpipe e descobria que já estavam pedindo para eu sair de lá fazia tempo.” Linguagem de sinais não teria ajudado. Ele só sabe fazer o sinal para “tinta fresca” e “multiplicai-vos”. Mas isso não era importante. Ele já estava de saco cheio de competir. Entrou na faculdade e desistiu do skate completamente. E toda vez que a previsão de ondas era boa, saía correndo da aula e dirigia durante horas até esta praia aqui.
Fico ouvindo Colin encarar a água. Isto é, acho que ele estava fazendo isso. Até um pôr-do-sol seria mais comunicativo que ele nessa hora. Talvez estivesse esperando algum sinal meu de que eu realmente queria ir adiante com essa doidice. “Estou pronto”, arrumo coragem para dizer. “Não, isso aqui está muito fraco”, diz. “Vamos tentar a baía de Cox. Não se preocupe, você vai surfar água hoje.”
PAZ E AMOR: Muitos surfistas americanos fugiram da guerra do Vietnã
desviando suas pranchas para a ilha de Vancouver popularizando o esporte no Canadá.
Às Cegas
Cair nas ondas geladas com um cara surdo não era uma tentativa de suicídio. Na verdade, já estou bem acostumado com minha vida de deficiente. Minha visão foi se deteriorando ao longo de 20 anos, como se meus olhos estivessem ficando de saco cheio do mundo. Tudo por causa de uma falha genética chamada retinite pigmentosa. Não provoca dor, é irreversível e já está acontecendo faz tempo. Motoristas inexperientes amassam pára-choques; eu fui um adolescente que jogou o carro da mãe num paredão de pedra. Dizer que eu era apenas desastrado não explicava o fato. Reclamei da neblina, mas não havia neblina naquele dia. Quando finalmente um médico jogou um facho de luz sobre meus olhos, eles não refletiram de volta. “Você tem cegueira noturna”, explicou ele. Era meu aniversário de 18 anos. Vinte anos depois, não consigo mais lembrar como era meu rosto – a última vez que eu o vi deve ter sido em 1997.