Perdido no Atacama


DUREZA: Dando uma pausa no calor, Maximo bebe uma água na secura

Por Maximo Kausch, do Alta Montanha

Muitas vezes me perguntam qual é a montanha que mais me marcou. De fato muitas me marcaram. Em algumas, tive acidentes, em outras vi gente morrer, e por isso essas me trouxeram grandes mudanças. Porém o lugar que mais me marcou não foi uma montanha, mas um deserto.

O Atacama foi para mim uma daquelas situações que “separam os meninos dos homens”. Fui para lá com 18 anos, uma época em que eu subestimava tudo o que enfrentava. Queria escalar o mundo e não media limites para isso.

Meu sonho de consumo na época não era ter um carro ou roupa de marca. Queria escalar o maior vulcão do mundo. Naquela ocasião, no entanto, eu estava na Bolívia e tinha um “pequeno” acidente geográfico entre o vulcão e eu: o deserto do Atacama. Deste modo me utilizei da minha experiência em atravessar desertos (que era zero) e decidi encarar os milhares de quilômetros que me separavam do destino. Outro pequeno detalhe não me fez desistir do sonho: eu só tinha US$ 109 no bolso!

Minha sorte começou mal. Querendo economizar, comprei toda minha comida na Bolívia. Ao entrar no Chile, no entanto, o controle sanitário ficou com tudo. Na primeira cidade que fiquei no Chile, também na tentativa de economizar, acampei na beira de um rio ao lado da estrada. A ideia foi péssima e atraiu os dois únicos ladrões da região. Eles acabaram levando cerca de US$ 90 e, no final, fiquei só com US$ 17,75.

Até então, a ideia de “atravessar” o deserto não era literal. Pensava em pegar carona até chegar a um lugar chamado Copiapó, próximo ao vulcão. O azar, porém, se estendeu e saindo de Antofagasta, na falta de carona, decidi cortar caminho. Entre uma tempestade de areia e a cabeça dura de não querer pedir informação, acabei me perdendo.

Não imaginava, mas nos próximos oito dias eu teria de sobreviver em um dos lugares mais secos do planeta.

A coisa mais difícil de se estar perdido não é a falta de recursos ou conhecimento. A pior parte é admitir para você mesmo que se perdeu. Uma vez que você já quebrou essa barreira, a segunda coisa mais difícil é manter a sanidade.

Lembro de uma vez ter escutado que devemos desistir de algo quando cometemos três erros. Na minha situação eu estava no 15º erro e sem a possibilidade de desistir. Confesso que nos primeiros dias que estive perdido e sobrevivendo nem pensei na palavra vulcão. No primeiro dia que constatei estar perdido, me encontrava com 7 litros de água, meio quilo de arroz, açúcar, chocolate em pó, cominho e US$ 17,75. Fora isso eu tinha uma barraca e carregava todo o equipamento para montanha.

Além do vento, o Atacama não possui outros meios de apagar pegadas ou marcas de rodas. Qualquer veículo que já transitou pelo deserto vai deixar marcas, que podem ficar ali por muitos anos. O fato de o Atacama possuir várias empresas mineradoras e um grande tráfego de veículos piora a situação mais ainda. O interior do Atacama é um verdadeiro emaranhado de marcas de rodas e coisas que se assemelham a estradas. Infelizmente eu não sabia disso naquela ocasião e optei pelos desvios ao sul.

Lembro de uma ocasião na qual encontrei um tambor de lata que inexplicavelmente estava lá. Era um tambor vermelho escuro com uma linha amarela na lateral, tinha um pouco de areia dentro. Fiquei descansando na sombra de 10 centímetros que aquele tambor produzia. Tive várias idéias para aproveitar sua sombra, mas nenhuma se encaixava com a prática, pois eu sempre me queimava com o metal quente. A insignificante sombra que o sol produzia nos objetos naquele começo de tarde me fez tomar atitudes e usar meu cérebro mal nutrido.

Perdi toda a esperança em produzir sombra com minha barraca, pois se tornaria uma sauna antes mesmo que eu entrasse nela. Tentei levantar o tambor e colocá-lo apoiado a minha mochila. Ao levantá-lo, reparei na figura imóvel de um escorpião logo abaixo do tambor. Talvez eu tivesse destruído sua casa. Fiquei esperando ele se mexer enquanto eu tentava produzir sombra. Tentei fazer sombra com minhas roupas, estendendo-as sobre o tambor, mas o vento as derrubava e fazia tudo se tornar um inferno.

O escorpião continuava imóvel e eu continuava sem sombra. Eu não conseguia achar uma razão para aquele tambor estar lá. Decidi continuar andando e mais adiante achei outro tambor, com as mesmas cores. Avistei outro ao sul, e o que eu já tinha passado ficou ao norte. Tive várias idéias a respeito de refúgios feitos de tambores de lata. Talvez eles estivessem lá para que as pessoas perdidas no deserto construíssem abrigos. Não tive, até aquele momento, uma idéia mais brilhante que aquela. Dediquei aquela tarde a pensar nos tambores enquanto me movia.

Depois de uma sucessão de ideias estúpidas naquele calor de 40°C, tive um lapso que me fez entender tudo! Senti-me, naquele momento brilhante, ao ponto de explicar todas as coisas inexplicáveis. O óbvio andava comigo desde o primeiro tambor. Os tambores estavam lá simplesmente para sinalizar uma direção! Talvez naquele lugar ventasse muito à noite e as marcas desaparecessem rapidamente na areia. Mais tarde ainda descobri que eles estavam a 1 quilômetro de distância um do outro, pois eu demorava mais ou menos 20 minutos entre dois deles.

Fiquei muito orgulhoso, mas não pude dividir aquilo com alguém. O momento brilhante, no entanto, evaporou como água de minha mente quando voltei a mim mesmo lembrando onde eu estava. Isso me deu angústia e uma certa vontade de continuar para chegar logo a algum lugar.

No segundo dia eu tive uma boa e uma má notícia. A má foi que eu percebi que não tinha protetor solar e estava da cor de um tomate. A boa foi que encontrei um tipo de cacto que começou a ficar mais abundante quanto mais ao sul eu ia. Encontrei uns cactos curiosos nas proximidades de onde acampei. Eles tinham a ponta das folhas ovaladas e pareciam brotos, mas na verdade eram uma espécie de fruta. Algumas delas eram brancas no interior, mas a maioria tinha uma cor alaranjada. Experimentei aquela estranha fruta com muita cautela. As brancas eram horríveis e deixavam gosto muito ruim na boca, mas as alaranjadas eram muito boas e até um pouco doces.

Após mais ou menos 1h30, não existiam mais brotos na parte superior dos cactos da região. Muitos deles tinham buracos e estavam meio podres, talvez por causa dos pássaros. Não vi nenhum pássaro morto naquela planície e aquilo foi um bom sinal. Não vou dizer que matei minha fome, mas comi tantos daqueles brotos que cheguei a um ponto de olhá-los com desprezo.
Amassando um pouco as folhas eu consegui fazer um a geléia verde para aliviar as queimaduras do sol. O cheiro que o cacto seco produzia era tão bom que atraía todas as possíveis moscas que vasculhavam aquela vasta região em busca de alimento. Estas me acompanharam por muitos quilômetros.

Além de hidratante pensei em tentar extrair um pouco de líquido deles. Cactos no Atacama são bem diferentes dos que vemos em filmes. A maior diferença são os espinhos, que até então eu achava que não existiam. O resultado veio depois, quando descobri que, na verdade, os espinhos eram minúsculos chegando ao ponto de eu não poder nem vê-los. Aqueles malditos permaneceram sob minha pele durante o resto dos meus dias no deserto. Arrependi-me profundamente daquele momento cada vez que usava as mãos. Gastei pelo menos mais uma hora para retirar os espinhos maiores e mais visíveis.

Insisti em extrair líquido deles. Utilizando minha vasta experiência em produzir água com cactos, que até então vinha dos filmes, comecei a fazer água com as folhas. Espetei uma extremidade com um garfo e segurei a outra entre as botas. O primeiro passo foi retirar a grossa casca com uma faca de cozinha. Várias vezes o garfo escapou e espetou minha própria perna. Isso me fazia gritar várias sucessões de palavras rudes ao céu. Diversas folhas de cacto, semidescascadas, foram lançadas a vários metros de distância para aliviar a dor causada pelas espetadas do garfo nas pernas. Não consegui extrair a água alguma.

Aquela faca foi o item mais inútil que eu tive comigo. Lembro de uma ocasião que quase a utilizei. Foi dentro de uma das dezenas de vales profundos que encontrei no deserto. Após dias sem ter visto algo vivo, fora o escorpião, avistei uma vicuña dentro de um vale. Mamífero da família dos camelos, ela ingeria o pouco de vegetação rasteira que havia na parte central do vale seco. Ficou parada, olhando aquela figura ridícula que cruzava o vale – eu! Ficou me olhando como se eu fosse um intruso, como se eu estivesse sujando a paisagem.

Já minha visão dela era bem diferente. Ficava imaginando como seria melhor assar uma vicuña. Talvez um churrasco seria uma boa idéia… No fim, foi só eu mexer o braço para espantar uma mosca que ela disparou para o outro lado do vale. Seja lá como for, eu estaria muito débil para matar um animal de 1,5 metro de altura com uma faquinha de cozinha.

No terceiro dia de repente minha sorte voltou: avistei um riacho do topo de uma colina. Fiquei extremamente contente, foi como se eu tivesse uma pequena ilha de salvação onde poderia ficar por um tempo bebendo água e me deliciando com os abundantes pratos de comida que eu tinha (arroz). Ao chegar ao riacho, no entanto, notei uma espessa camada branca revestindo as rochas que o beiravam. Era sal! Sim, o rio era salgado! Pelo menos pude utilizá-lo para preparar um pouco de arroz.

Só fui encontrar água doce no meu quinto dia de deserto. Avistei um daqueles vales profundos e quase sem esperança alguma decidi cavar um buraco. O meu estado meio zumbi mudou completamente quando senti umidade nas mãos. Freneticamente cavei um buraco de 30 centímetros naquela terra úmida e cheia de pedrinhas. Após 50 centímetros cavando, encontrei água! Isolei o buraco com pedras para evitar que a areia voltasse para dentro de minha obra. Momentos depois, explodindo de impaciência, enfiei minha caneca no fundo daquele buraco e coletei um pouco do líquido marrom que eu tinha represado. Independentemente do gosto, era água doce. Sem perceber aquele vale me salvou a vida.

Muitas montanhas começaram a emergir ao oeste, e eu achava que poderia ser o próprio Ojos del Salado, o maior vulcão do mundo. O vale ia ficando cada vez mais largo e a estepe já predominava, mas eu ainda estava num deserto, longe de ser uma área fértil. Coletei o máximo possível daquele líquido marrom, desmontei o acampamento e iniciei minha marcha a sudoeste. Encontrei uma grande rocha poucas horas ao sul dali. Era um belo lugar para uma refeição, tinha até uma pedra que me serviria de mesa e outras para cadeiras.

Eu tinha tudo para uma boa e divertida refeição, só faltavam alguns detalhes: comida para pôr na mesa, pessoas para sentarem nas cadeiras e água para encher minha caneca. Mas pelo menos panelas eu já tinha. Preparei deliciosos 100 gramas de arroz, com muito sal e cominho. Até temperei o arroz com geléia, mas não foi tão delicioso quanto eu esperava.

O único problema que tive foi que derrubei o copo de água na mesa, deixando-a evaporar em segundos. Pelo menos, eu já tinha acabado de preparar o arroz. Fiquei irado! Iniciei agressões contra as pedras e minha própria mochila. Concluí que a culpa foi da pedra, por ser tão irregular. Não ter ninguém que confirme minha versão da história me trouxe muita inquietude. Talvez exatamente esse seja o maior problema de estar sozinho. Já escalei muitas montanhas sozinho, mas pelo que percebi o pior de estar completamente sozinho não é a tristeza ou essas coisas que todo mundo acha. O pior, sem dúvida, é que quando algo dá errado ninguém aparece para te consolar e dizer que a culpa não foi sua…

Um dos grandes problemas que tive no Atacama foi certamente o vento, especialmente durante a tarde. Lembro de ter sido pego de surpresa pelo vento durante um entardecer. Tive que montar a barraca às pressas. A areia carregada pelo vento preencheu cada centímetro quadrado da barraca.

Exatamente como no dia anterior, os ventos começaram a soprar quando o sol já havia percorrido dois terços do céu. Soprou cada vez mais forte, ao ponto de carregar areia. De dentro da barraca confortável, eu observava, com gargalhadas diabólicas, toda a cena se desenvolvendo do lado de fora, tudo através de uma pequena brecha no zíper.

A última hora de luz foi nítida e sem vento nenhum. Aquela foi uma das primeiras vezes em minha vida que escutei o silêncio total. Tive ideias e conceitos que jamais tivera antes, mas a preocupação e a falta de controle da minha situação prevaleciam sobre tudo. Era muito difícil me concentrar nas tarefas, tudo acabava me lembrando do fato que eu não fazia a mínima ideia de onde estava. Ao entrar na barraca e fechar os olhos, desabava naquele mundo de dúvidas e coisas ilógicas que tinham me acontecido. Descobri que o melhor remédio para aquilo tudo era dormir e tentar ver com outros olhos ao acordar.

Cruzei um grande vale cheio de pedras no centro, mas sem água alguma. Encontrei uma pequena lagoa mais à frente, salgada é claro, com dois flamingos. Foi muito bonito ver como aqueles dois almoços, quero dizer, flamingos, se mexiam na água. Os arbustos já eram altos e produziam sombra suficiente para sentar perto deles. Contemplei aquelas duas aves engraçadas em sua busca incessante por comida.


QUE BELEZA: A Laguna Verde, uma das atrações do Atacama

Avistei um avião que ia para o norte. Fiquei muito contente ao ver que mais pessoas cruzavam aquele deserto cruel, talvez de modo mais rápido, mas de fato, o cruzavam. Provavelmente eles não conseguiam me ver, pois estariam ocupados em comer suas refeições de avião com laranjas de verdade e tudo mais.

Parei muitas vezes para comer minhas frutas alaranjadas, hidratar a pele e beber água. Eu tinha perdido totalmente a esperança, que normalmente eu teria, em ver algum sinal humano atrás das colinas. Nada estranho após 6 dias de decepções. Assim como qualquer vale, cheguei à outra margem do que eu estava cruzando e sentei no topo da colina para descansar. Molhei a boca com um pouco d’água e enquanto eu rosqueava a tampa do cantil, olhando o horizonte, vi simplesmente, uma cidade enorme!! (para os padrões que eu tinha naquele momento). Não lembro de ter colocado o cantil na cintura. Não me lembro de ter levantado nem de ter descido toda aquela colina até o próximo vale.

Percorri o último trecho até a cidade, cortejado por um condor voando bem acima de mim. O condor é uma ave carniceira e eu não sabia de suas intenções naquele momento. Talvez ele estivesse esperando algo acontecer, ou provavelmente, cortejando minha chegada a civilização. Prefiro acreditar na segunda possibilidade.

Era meio de tarde num começo de março, quando finalmente entrei nos limites de Copiapó. Me sentia um explorador, que tivesse acabado de chegar da lua, ou de escalar uma montanha por primeira vez. Quando eu passava, todos olhavam, como se eu estivesse impondo respeito.

Ao conversar com o primeiro ser humano no entanto percebi que não era respeito que eu estava impondo, era repugnância. Imagine você estar no quintal de sua casa nas aforas de uma pequena cidade do norte do Chile. Do nada aparece um garoto todo queimado, descabelado, sujo, com sacolas de material verde pendurados na cintura e uma mochila enorme nas costas!

Demorei um pouco para entrar em confiança e conversar com os locais. A pior notícia que eu tivera em muitos dias veio ali mesmo: Eu estava na cidade errada. O pequeno povoado não era Copiapó, mas sim El Salvador. Eu estava tão perdido que errei de cidade e acabei parando 150km de onde eu queria ir! No total caminhei 320 km pelo deserto.

Dias mais tarde, no tão sonhado vulcão, tudo deu errado novamente. Percorri parte do percurso até as montanhas a pé e de carona. Ao chegar passei num controle policial perto da fronteira argentina para perguntar sobre as condições sobre a montanha. Eu estava quase saindo quando um dos policiais pediu uma tal permissão. Contei para eles que eu tinha literalmente atravessado o deserto para chegar ali, mas isso não adiantou. Acabei perdendo a paciência e mandando um dos policiais para lugares desagradáveis.

Fui preso! Acabei ficando 2 noites no porão do refúgio da polícia chilena localizado a 4400m de altitude, aos pés do vulcão. No começo fiquei um pouco relutante em entrar no porão. Porém impulsionado pela tempestade de neve que se desenvolvia lá fora e por duas grandes mãos policiais, desci rapidamente as escadas que levavam ao porão. O lugar era agradável e tinha até um colchão no chão, mas tinha teto muito baixo.

Ao vasculhar o porão encontrei uma prateleira com coisas interessantes para mim naquele momento: latas de molho de tomate, latas de atum, sacos de açúcar, macarrão, vários tipos de sopas, cebolas, etc. Ganhei na loteria! Sem nem sequer pensar, esvaziei rapidamente as latas que se localizavam na parte de trás da prateleira. Engoli o molho de tomate como se fosse água e deixei a lata de atum para último. Para não despertar suspeitas, tampei as latas, as limpei e as coloquei no fundo, na mesma posição que as encontrei. Satisfeito, fui dormir. Aquele dia rendera muito e foi muito conturbado. Os policiais jamais perceberam.

Escutava as conversas dos policiais, a televisão, barulhos de facas que talvez estivessem espalhando doce de leite nos pães torrados. Sentia o cheiro de tudo! Das torradas, da fumaça da lenha da lareira, do leite que ferveu demais, do cheiro horrível dos quartos… Meu olfato ficou bem aguçado durante a travessia.

No terceiro dia os policiais me deixaram sair. Para mim era algo normal e percorri os 20 quilômetros que me separavam da Argentina a pé. Segui toda a estrada que beirava uma bela lagoa azul turquesa, a Laguna Verde (salgada, é claro). Havia uma linha de sal, na beira da lagoa, assim como todos os lagos e rios que vi no norte. Me despedi do Ojos del Salado e prometi voltar algum dia.

Como estava tão bem nutrido, tive a infeliz idéia de cortar caminho pelo meio das montanhas, pois a estrada dava uma grande volta ao redor de uma montanha de 6000 metros chamada Nevado San Francisco. Esta depois voltava para o Incahuasi (com 6650 metros), do outro lado da fronteira. Havia um grande platô entre as duas montanhas, que claramente me levaria ao outro lado do vale. Ignorando todas as experiências ruins em cortar caminho que tive ao norte, continuei a caminhada. Andava rápido, pois, cedo ou tarde, os policiais iriam descobrir as latas vazias no porão e ficariam furiosos.

Demorei pelo menos três horas para chegar a base das duas montanhas e perceber que fazia mais frio do que eu pensava. Já começara a duvidar de minha idéia de cruzar aquele platô. A neve acumulada no chão, tornou tudo bem mais difícil, mas oferecia um bom clima para caminhar. Após, teoricamente, cruzar o limite internacional, o tempo começou a fechar rapidamente e a chover. Tive que descer literalmente correndo para não congelar com aquela neve toda, por isso, me cobri com uma lona verde que não tive chance de usar até aquele momento. Eu já aceitara que aquela idéia foi o total fracasso.

Andava sempre molhado, hora pelo suor causado pelo uso da lona, hora pela neve que derretia e hora pela própria chuva. Ainda molhado, cheguei à linha dos 4000 metros, onde o mau tempo ficou para trás. Estava aliviado de finalmente estar são e salvo fora do alcance dos policiais. Mal sabia eu, que aquele era somente o primeiro vale e encontraria outros dois, até finalmente chegar à Argentina.

Mais ou menos 5 horas após ter deixado o posto policial, comecei avistar uma estrada, asfaltada, já do lado argentino. Aquela magnífica palavra, asfalto, soou em minha mente, como significado de tráfego contínuo de carros. Pensei em todas as possibilidades que eu teria, estando naquela estrada. Meus dias de vida infra-humana estavam contados, pois eu já estava no asfalto.

O caminho descia o vale, fazendo longas curvas em ziguezague. Tendo meu objetivo diante de meus olhos, não demorei muito para chegar até uma das curvas. Cansado e molhado, iniciei minha caminhada naquele maravilhoso solo estável. Me aferrei naquele caminho preto e prometi não soltá-lo, mesmo com tantas curvas. Avistei um veículo branco, a oeste, vindo do Chile. Não depositei muita esperança naquela carona, já que seria bom demais para ser verdade chegar em algum ponto de habitação humana ainda naquele dia. Quando ele já estava bem perto, me virei e levantei o polegar para tentar pará-lo. Finalmente tive sorte e o veículo parou.

Havia quatro homens naquela camionete branca de cabine dupla, escrito Dirección Nacional de Vialidad na porta (manutenção das estradas). Um deles, no banco do passageiro, era policial da Gendarmería Argentina. Só para ter o que falar, fiz uma pergunta muito óbvia. Perguntei a eles se iriam passar na aduana Argentina. O único ponto de habitação humana, antes de Fiambalá, a 230 quilômetros dali, era a própria aduana. O homem que dirigia, voltou seu olhar para mim e não disse nada. Aquele gesto me fez entender quão óbvia foi minha pergunta.

Contaram-me que vinham de uma visita que fizeram à aduana chilena e voltavam para os refúgios, a 30 quilômetros dali. Aquilo me deu um frio na barriga, ao lembrar das latas. Fiquei imóvel, esperando alguém revelar meu crime e tomar as devidas conseqüências. Mas ninguém falou nada, o que indicava que ainda não haviam percebido.

Eu era famoso, pois eles haviam ouvido rumores por rádio, de um garoto que veio a pé por todo o norte. Ao saber que se tratava de mim mesmo, todos me cumprimentaram e fizeram perguntas do tipo: “Como foi? Quanto tempo você ficou? O que você comeu?”

Enquanto eu respondia, todos fixaram sua atenção às minhas palavras. Foi a primeira vez que fiquei orgulhoso de minha travessia e de toda a tragédia que acontecera dias atrás. Minha viagem já não era mais motivo de arrependimento. Até ganhei comida!

A carona me deixou a 40 quilômetros da fronteira. Com os suprimentos que eu recebera, não seria tão difícil percorrer os 254 quilômetros restantes, até a primeira cidade, Fiambalá. A estrada é realmente selvagem. Em toda essa distância não existia uma casa sequer. Ninguém acreditou quando coloquei a mochila nas costas novamente e enchi minhas garrafas com água do rio. Todos começaram a argumentar, pois naquela época o tráfego é quase nulo. Mal sabiam eles sobre a estrada sinalizada por tambores que encontrei ao norte, ou dos vales de água salgada, onde fiquei vários dias.

Percorri pelo menos 15 quilômetros até o primeiro rio. Senti-me tremendamente confortável. Senti que tinha tudo o que eu precisava. Senti naquela vez, pela primeira vez, o que era Liberdade. Aquilo me veio como um estalo ao não sentir a monotonia de caminhar e não querer parar mais. Queria tornar aquilo eterno e sorria como um bobo, sozinho, a 250 quilômetros da primeira cidade e com US$ 11,75 no bolso. Entendi que podia ir para qualquer lugar, a qualquer hora. Não precisava de relógio ou cidades.

A partir daquele dia no meio do Atacama minha vida ficou mais simples. Tudo parecia estar ao meu alcance. Bastava ir e pegar.

Maximo Kausch é montanhista dos bons e ganha a vida guiando expedições pelos picos mais altos da Terra.

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