Por Maximo Kausch, do Alta Montanha
De todos meus piores momentos, acho que este que agora vou contar foi o mais confuso. Montes Pamires, Tadjiquistão, agosto de 2006, terceira semana de escaladas. Éramos um grupo de escaladores de várias nacionalidades e finalmente tínhamos conseguido montar nosso sexto acampamento durante a escalada de um pico de 7000 metros.
Todos estavam extremamente cansados e, com mais o fator do mau tempo, o resto de meus companheiros decidiu descer até o segundo acampamento e esperar ali. Insistente, resolvi ficar e esperar o mau tempo passar, como sempre fiz. Acabei permanecendo quatro noites acima de 6000 metros. Como muitas outras vezes, meu plano de aclimatação foi péssimo e pouco comi e bebi no tempo em que permaneci naquele acampamento insólito. A falta de combustível e comida, além da temperatura de -30ºC durante o dia, tornaram minhas tarefas muito limitadas. As poucas vezes em que saí da barraca foi para desenterrar a própria e usar o banheiro. Este, por sinal, ficava perto de uma grande queda, tornando extremamente perigoso o ato de fazer um “número 2”.
Gastei boa parte do meu tempo aprendendo o alfabeto russo, pois me sentia muito perdido ali. Lembrava de tudo que passei para chegar àquela crista afiada de 6100 metros. Aquele país era realmente estranho. Praticamente não havia estrangeiros fora forças da ONU e, claro, nós mesmos.
Aproximamo-nos dos Pamires em um helicóptero russo MIL-Mi8 – que, aliás, caía aos pedaços, porém o piloto era extremamente experiente. Já voei em muitos helicópteros. No Tadjiquistão, no entanto, foi a primeira vez que vi um helicóptero dar marcha ré. Foi uma incrível odisséia chegar ali, mas isso seria um capítulo à parte.
Um dia antes de o tempo melhorar, meus companheiros decidiram tentar novamente, e todos seguimos juntos até o cume. Mesmo desidratado, mal nutrido e extremamente cansado, continuei rumo ao ponto mais alto. Demoramos muitas horas para vencer as afiadas cristas até o cume em meio a ventos cortantes. Foi uma escalada um tanto sofrida, e pouco lembro do trecho que antecedeu o cume. Ficamos ali apenas 10 minutos, pois a temperatura oscilava ao redor dos -45ºC e ventos bidirecionais de 60 km/h acabavam com qualquer possibilidade de descanso.
Durante a descida, meu único pensamento era chegar até o paradisíaco acampamento 3, situado num imenso glaciar, a 5700 metros de altitude. Ali eu me hidrataria e recuperaria as energias perdidas.
Na descida, encontramos um amigo russo a caminho de montar seu quarto acampamento. Cerca de 18 horas depois de termos saído, ainda estávamos descendo, e eu ainda tinha aquele pensamento fixo de chegar ao terceiro acampamento.
Ainda tinha o russo em vista quando um imenso bloco de gelo se desprendeu de uma geleira, iniciando uma avalanche. Incapazes de fazer qualquer coisa, podíamos ver aquele pequeno ponto escuro se movendo rapidamente, tentando escapar. A imensa massa de pedaços de gelo do tamanho de casas desviou-se a uma centena de metros do lugar onde estávamos, mas o russo fora levado embora. Decidimos subir para pelo menos tentar encontrar o corpo e descobrir seu sobrenome.
Meu plano foi para os ares. Aquelas poucas calorias restantes no meu corpo foram gastas na subida de 200 metros meio a torres instáveis de gelo e neve fofa. Quase 2 horas depois alcançamos o ponto onde ocorrera a fatalidade e não encontramos nada.
Sem que ninguém esperasse, um tranqüilo chamado a 50 metros dali revelou nosso amigo russo acenando desde o topo de um serac. Prestei atenção e reparei que ele estava fumando. Pensei: “Russos…”.
Ao me aproximar vi que algo estava errado. Ele esmigalhou o cotovelo e quebrou algumas costelas. Dois blocos de gelo o prensaram, fazendo com que seu cotovelo fosse pressionado contra o próprio peito. Fumando com o outro braço, o pobre russo reclamava que o peito ardia quando fumava.
Tivemos muito trabalho em descê-lo até o acampamento 3. Apenas 1 hora antes de escurecer, meus companheiros continuaram e levaram o ferido até o acampamento 1 para ao dia seguinte continuar até o acampamento-base. De pouco adiantaria minha ajuda por eu estar tão exausto. Decidi ficar ali e seguir meu plano original.
Realizei a exaustiva tarefa de montar a barraca e quase desmaiei de cansaço, não lembro de mais nada até acordar no dia seguinte. Não derreti neve e não me hidratei naquela noite. A desidratação era tanta que a minha língua chegava a colar no céu da minha boca, que mal produzia saliva. Incentivado por algo que parecia a luz do dia, decidi sair do meu saco de dormir.
Percebi imensos pontos obstruindo a minha visão. O meu olho esquerdo estava quase que totalmente obstruído e o direito ainda tinha um vão central, por onde eu enxergava e conseguia focar não mais que 1 metro de distância.
Tentei manter a calma e realizar algumas tarefas rotineiras para acender meu fogareiro e derreter um pouco de neve. Tive sucesso na minha segunda tentativa. Primeiramente, lembro ter associado a cegueira com minha desidratação. Segundo minha absurda teoria eu estaria tão desidratado que meus olhos secaram e eu precisava reidratá-los. Ainda com a estúpida teoria em mente, hidratei-os com um pouco de água que acumulei na minha garrafa.
Quase congelei com o excesso de água que derramei nas minhas roupas e não obtive sucesso em reidratar os olhos. Passei a associar a cegueira à mais popular das causas da cegueira em montanha: a luz solar. Decidi usar óculos e uma viseira de ski para proteger o que sobrava dos meus olhos. O pouco conhecimento em medicina de montanha que eu tinha naquela ocasião e a pobre nutrição cerebral não deixaram minhas idéias ir muito mais longe que aquilo.
Tentei me comunicar com meus amigos no acampamento-base, mas uma imensa montanha chamada Pik Chapayev atrapalhou o sinal VHF do meu rádio. Um tanto quanto desesperado, tomei a decisão de descer.
Desmontar o acampamento foi uma odisséia à parte. Usando apenas o tato, consegui identificar algumas barras de cereal que encontrei misturadas com minha corda e equipamento. Comi uma e guardei a outra para viagem. Sem entender exatamente o que estava fazendo, enfiei tudo o que encontrei dentro da minha mochila e iniciei a descida.
Inicialmente foi bem difícil entender que caminho seguir. Com muito peso na consciência em danificar mais ainda meus olhos, tive que tirar viseira e os óculos para usar o minúsculo campo de visão do meu olho direito e identificar as linhas. Felizmente quatro pessoas carregando um ferido deixam muitas pegadas na neve e obtive sucesso na segunda ou terceira tentativa em encontrá-las. A cada passagem técnica eu tinha um trabalhão em reencontrar o caminho e seguir. Após um dia inteiro, eu não fazia ideia de onde estava, pois não conseguia identificar as montanhas no horizonte. Era bem assustador quando eu escutava pequenas avalanches, ou pedras caindo, assobiando bem na frente do meu rosto. Decidi acampar.
Ao acabar de montar a barraca, percebi que eu não tinha mais isqueiro. Meus fósforos estavam molhados e eu não teria sucesso em fazer fogo com as faíscas elétricas da bateria do rádio, pois estava quase cego. Eu tinha um pacote de mousse de chocolate desidratado e sonhava consumi-lo faziam alguns dias. Na falta de água, acabei consumindo o pó seco de dentro do pacote. Isso me desidratou mais ainda.
Tentei usar o rádio sucessivamente, porém jamais consegui resposta. Numa das rotineiras vezes em que tentei, sem menos esperar, obtive uma resposta de um dos meus companheiros presentes no acampamento-base. A voz apareceu bem clara, sem interferências – achei que eu estabelecera um sinal bom e comecei minha conversa:
“Você não acreditaria!” Perdi completamente o sinal e me arrependi em não ter começado a conversa com algo como “Estou cego” ou “Preciso de ajuda”. Fiquei toda a noite me torturando psicologicamente.
A desidratação me fez delirar muito durante a longa noite. Finalmente a luminosidade do lado de fora fez com que eu me mexesse. Fazia calor e até tirei a jaqueta.
O altímetro do meu GPS acusava 5300 metros de altitude. Como eu não tinha marcado nenhuma coordenada que não a do acampamento-base e os acampamentos superiores, não conseguia me guiar. De pouco adiantaria seguir a direção até o base, pois pelo que eu lembrava o caminho era bem sinuoso e cheio de curvas. Comi um pouco de neve e consumi a segunda barra de cereal.
Novamente comecei a descer. Consegui sair da geleira e alcançar morenas glaciárias, que parecem montanhas de brita. De alguma forma, pulei o segundo acampamento e talvez o primeiro. Jamais soube o que aconteceu com eles. Tive muita sorte, pois nevou pouco ali embaixo e as pegadas eram facilmente identificadas.
Quase no final do dia, escutei barulho de água e me guiei por ele até a borda de um glaciar. Várias rochas e pedaços de gelo se desprendiam dali e explodiam no chão. Era assustador. Mas a água valia o risco. Bebi 1 litro inteiro quase sem parar e por pouco não congelei a garganta de tão fria que a água estava.
Tentei o rádio novamente e, desta vez, consegui contactar um companheiro meu que tinha descido o ferido dois dias atrás. Combinamos de nos encontrar no meio do caminho. Lembrava de um trecho perto de uma cachoeira de gelo. Ao finalmente pisar no tão sonhado acampamento-base, comi e me hidratei bastante, antes de desmaiar de sono. Meus amigos providenciaram alguns colírios, que pareceram ter ajudado. No terceiro dia, eu podia ver bem melhor com o olho direito, mas meu olho esquerdo permanecia parcialmente obstruído. Tratamos o caso como queimadura de córnea e tampei os olhos durante 36 horas, sem obter quase nenhuma melhora.
Após o tratamento, evitei ao máximo a exposição à luz, pois o diagnóstico mudou para queimadura de retina, que é muito mais grave. Eu não sabia ao certo o que fazer e mesmo após 5 dias meus olhos continuavam obstruídos.
Grande parte dos escaladores presentes ali no acampamento-base era da Polônia, integrantes de uma grande expedição de 12 pessoas. Vários deles já estavam no acampamento-base há dias, tentando se recuperar de congelamentos de primeiro e segundo grau. O lugar parecia mais um circo de horrores: congelados, fraturados e cegos…
Foi uma odisséia de mais de dez dias, mas acabei conseguindo sair dos Pamires para finalmente encontrar um médico oftalmologista. Meu olho direito estava muito melhor, mas o esquerdo continuava obstruído com um grande ponto alaranjado no centro da visão. Foi extremamente difícil explicar ao médico em Dushanbe, capital do Tadjiquistão, o que aconteceu. Ele receitou colírios e tratou o caso como queimadura de córnea. Teoricamente eu estaria melhor dali há dois ou três dias.
Uma semana depois, já na Turquia, o médico que me tratou também constatou que foi queimadura de córneas. Diante da incapacidade dos médicos, meus amigos turcos me recomendaram um curandeiro e até mesmo um veterinário. Decidi procurar tratamento na Europa.
Duas semanas depois consegui atenção médica no hospital de olhos de Moorfields na Inglaterra, um dos melhores do mundo. Meu caso virou atração de circo, e todos os médicos vieram examinar minhas retinas, pois nunca tinham lidado com um caso desses. Foi diagnosticado algo chamado “retinopatia de altitude”.
Acabei perdendo duas expedições no Himalaia por causa disso. O dano no meu olho esquerdo parece ser irreversível, até hoje tenho problemas com ele.
Pelo pouco que vivi naquele verão nos Pamires, hoje respeito muito as pessoas cegas. Maximo Kausch é montanhista dos bons e ganha a vida guiando expedições pelos picos mais altos da Terra.
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CEGUETA: Nosso colunista Maximo se vira como pode nos Pamires
SOLIDÃO: Foto de Maximo de um companheiro nos Pamires
“O quê?”
…interferência… shhhhhhh…
Este trecho tinha fendas e torres de gelo, e eu seria incapaz de me guiar sozinho por ali. Pouco antes de chegar à cascata de gelo, escutei um grito, e só consegui identificar a cara do meu amigo quando ele estava a 2 metros de distância. Fiquei muito contente ao encontrá-lo e até sorria. Ele mal acreditava que eu tivera conseguido chegar até ali sozinho.