Medicina de aventura: perseguindo um sonho

Por Karina Oliani

Ah, se todos os sonhos fossem fáceis e rápidos de serem alcançados, se todas as nossas vontades fossem realizadas num piscar de olhos e se tudo o que desejássemos nos fosse trazido sem tantos esforços… que chato seria a vida.

Concordo com a teoria que diz que quanto maior o esforço para atingirmos um objetivo mais prazer temos ao conquistá-lo. Não sei se consciente ou inconscientemente, o fato é que essa teoria move minha vida há muitos anos. Na hora de escolher minha faculdade, não foi diferente. Optei logo pela curso mais difícil de entrar, de cursar e de se formar: medicina.


AO AR LIVRE: Karina nossa nova colunista em uma de suas aventuras

Durante o curso, sempre gostei das matérias cirúrgicas, e alguns pensavam que eu fosse optar por alguma especialização mais tradicional, como cirurgia plástica ou dermatologia. Mas ficar horas a fio dentro de uma clínica ou um hospital e não poder viver do jeito que sempre sonhei, ao ar livre, me fizeram optar por algo mais amplo, maior e abrangente. Acabei indo para os EUA me especializar em um novo conceito médico que, até então, era totalmente desconhecido no Brasil: wilderness medicine, ou medicina de aventura.

Pensando no Brasil, que não está acostumado com essa área, considero ter tomado uma decisão de grande risco. Afinal, voltaria a meu país com uma especialização desconhecida por aqui. Só que o risco me move e, por isso, optei, decidi e me especializei em medicina de resgate em áreas remotas.

O conceito da wilderness medicine se oficializou no início dos anos 80, quando Paul Auerbach e outros 2 médicos californianos criaram uma sociedade em resposta a uma dúvida que há muitos anos existia em países onde esportes outdoor são uma cultura de vida. Comunidades médicas de Chamonix (França), da Nova Zelândia, da Califórnia e de outros locais onde a vida ao ar livre faz parte dos costumes locais apoiaram a fundação da Wilderness Medical Society (WMS). Desde então, dezenas de instituições sérias começaram a reconhecer essa nova especialidade médica e se associar à WMS.


SEGURANÇA: Acampamento de médicos aventureiros no Nepal

O que se notava era que os mais reconhecidos profissionais de renomadas clínicas e hospitais não eram os médicos que melhor atendiam montanhistas com edema agudo cerebral (de alta montanha) ou um caso de um mergulhador com doença descompressiva. Aliás, já ouvi muitos médicos dentro dos melhores hospitais públicos de São Paulo perguntarem: “Mas do que se trata essa tal de doença descompressiva?".

Como sou médica e trabalho em dois pronto-socorros de São Paulo, às vezes atendo pacientes que estão com edema agudo de pulmão. Para ajudá-los, entre outras medidas, aplico ampolas de Lasix (Furosemida). Porém se fizesse o mesmo com meus pacientes no acampamento base do Everest, por exemplo, eu os mataria em vez de salvá-los, já que atualmente o Lasix é proscrito em edema pulmonar de alta montanha. Esse é só um pequeno exemplo de como não é qualquer médico que pode se aventurar a fazer atendimentos em ambientes que não são de seu conhecimento.

Wilderness medicine abrange muitas áreas ou subespecialidades médicas, como medicina de guerra, aeroespacial, montanha, mergulho, deserto, selva, entre outras. Além de se especializar em uma determinada área, para prestar atendimento em áreas remotas, um médico deve ter um bom preparo físico e saber se virar em condições e ambientes extremos. Ele deve ser um solucionador de problemas, saber encontrar saídas mesmo quando parece impossível e procurar manter a mesma ética dos ambientes hospitalares em ambientes extremos e condições muitas vezes hostis.

Já presenciei médicos tentarem acompanhar expedições e se tornarem o paciente no meio do caminho ou ficarem perdidos no meio de provas que foram cobrir precisando do auxílio da organização para se encontrarem. Um bom médico outdoor deve ter noções mínimas de navegação, construção de abrigos, sobrevivência, uso e manejo de cordas e saber se virar com os poucos recursos que possuem.

Do outro lado da corda, se você não estiver em um grande evento que já tenha pré-contratado uma equipe médica especializada para fazer acompanhamento e algum dia se encontrar se aventurando em alguma cordilheira ou deserto do mundo, não adianta achar que vai ser atendido com a mesma abundância de recursos modernos do atendimento pré-hospitalar que temos em São Paulo. Quem sai para uma travessia carregando uma prancha rígida e um desfibrilador? E quem esquia com um tracionador de fêmur na mochila?

O lema dessa especialidade médica é o mesmo dos SEALS da marinha norte-americana: "adapt, improvise and overcome" (adaptar, improvisar e superar). Como tudo na vida, para atingirmos o melhor nível técnico, é preciso muitos cursos e treino para chegar lá.

A Medicina da Aventura (MDA) foi fundada em 2008 com a mesma finalidade que a WMS. Junto com outros sete colegas médicos, estou desenvolvendo no Brasil uma instituição que visa padronizar, difundir e consolidar o conceito de wilderness medicine em nosso país, bem como adaptar as aulas de wilderness first aid and wilderness first responder à realidade brasileira. Na próxima edição, vou falar um pouco sobre o Medicina da Aventura e também de algumas histórias interessantes de wilderness medicine que já vivi. É um prazer fazer parte do time de colunistas da Go Outside.

Boas aventuras!

Karina Oliani é médica, atleta e apresentadora do programa Extremos do Multishow







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