No chamado treinamento paleolítico, é preciso correr descalço pelo mato, carregar pedras à la Flintstones e comer carne aos montes. Tudo para despertar o homem das cavernas que existe em você – e, claro, te deixar mais preparado para qualquer tipo de desafio
Por Nick Heil
Este é o primeiro dia – primeira hora, na verdade – do acampamento das cavernas: uma oficina de uma semana batizada de Workshop de Redespertar do MovNat, realizado em West Virginia, nos Estados Unidos. MovNat, abreviação de “Mova-se Naturalmente”, é o empreendimento outdoor de preparo físico e condicionamento que Erwan fundou em 2008. Nosso acampamento – barracas modernas, fogueira e uma área de cozinha coberta – é montado numa clareira a uns 3 quilômetros de um lago. As academias estão fora de moda, a onda do momento é a floresta. Em vez de pesos, levantamos pedras, troncos, e às vezes os dois juntos. Combate corpo a corpo é parte do treinamento, assim como deitar na grama e observar as enormes nuvens passando.
“MovNat é um estilo de vida completo”, diz Erwan. “É dieta e nutrição. É exposição ao sol e à natureza. É descansar. É alimentar a mente com pensamentos saudáveis e positivos.” Erwan, que se mudou da França para os Estados Unidos em 2009, fundou a MovNat com a premissa de que os humanos uma vez já viveram em paisagens selvagens com força e graça, coletando frutas, dominando mastodontes e assim por diante – e que ser capaz de exercer essas atividades ancestrais irá nos ajudar a nos reconectar com o mundo no qual evoluímos. Não só nascemos para correr, ele diz, mas também saltar, subir em árvores, nadar por baixo d’água, atravessar pântanos, tocaiar presas e nos defender de ataques.
“Vivemos como animais de zoológico”, continua ele, com seu arrastado sotaque francês. É uma idéia que Erwan tomou emprestada do zoólogo britânico Desmond Morris, autor do clássico livro de 1967 O Macaco Nu [lançado no Brasil pela editora Record], de suma importância para sua visão de mundo: somos criaturas selvagens em nossa essência, mal adaptados para serviços de escritório e comida processada. “Nos divorciamos da natureza e fomos aprisionados em caixas desprovidas de cor”, diz Erwan. “E isso está ameaçando nossa saúde e longevidade.”
Já ficou claro que esse ponto de vista tem certo apelo: todas as cinco edições do acampamento-workshop de Erwan – no valor de US$ 1.700 – tiveram 100% de vendas. Antes de ir para lá, fiquei um pouco apreensivo com relação à excentricidade do negócio, antevendo um clã de hippies imprevisíveis e cabeludos. Mas o grupo é surpreendentemente normal e cosmopolita. Entre eles, há um gerente de recrutamento empresarial de Osaka, no Japão; um músico de Londres com sua esposa; um jornalista de Zurique, na Suíça; dois irmãos do norte de Nova Jersey, nos EUA; um webdesigner do Brooklyn, também nos Estados Unidos; e um programador de computadores da Flórida. Todos parecem ter um bom preparo físico e estão ou descalços ou metidos num Vibram FiveFingers, aquelas luvas de pé que dão um visual símio a quem usa.
“Quando eu vi o vídeo promocional intitulado ‘O Treino que o Mundo Esqueceu’, pensei que isso fazia todo o sentido”, diz Richard Carlow, gerente no Japão, quando lhe pergunto o que o inspirou a fazer uma viagem tão longa. “Eu queria aprender diretamente na fonte.”
A “fonte” tem um assistente, Vic Verdier, ex-integrante de uma tropa de elite francesa de 42 anos e que atualmente vive na Tailândia ensinando krav magá, a luta de autodefesa oficial do exército de Israel. O único outro membro da equipe de Erwan é Allie Brodeur, 22, uma talentosa acro-yogi, artista de circo e nossa cozinheira.
Eles formam um trio colorido, mas é a cozinha de Allie que se torna o foco da maior parte de nossas conversas no primeiro dia. Isso porque todos estamos sendo submetidos a uma versão rígida da paleo-dieta – uma abordagem radical e nada hedonista da nutrição, desenvolvida segundo os hábitos alimentares de nossos ancestrais caçadores-coletores. Carne, frutas, verduras, nozes e alguns óleos são permitidos, mas laticínios, sal, açúcar, cafeína e álcool são proibidos. O Starbucks, como fui lembrado na primeira manhã no campo, não existia até o final do neolítico.
No momento em que fui dormir naquela noite, depois de mais exercícios e de um jantar com cenouras cozidas e costelas de porco sem molho, eu estava exausto e em pleno processo de desintoxicação: zonzo, com os joelhos trêmulos e preocupado com o que seria uma semana muito, muito longa. Pelo menos, encontrei um colchão de ar queen size e lençóis de algodão na minha barraca. “Isso não é um curso de sobrevivência”, Erwan me relembrou. “Queremos que você fique confortável aqui.” Aparentemente, uma coisa muito boa sobre os caçadores-coletores é o quanto eles adoram artigos de cama, mesa e banho. O MOVNAT SE BASEIA EM algumas fontes familiares – crossfit, dietas de poucos carboidratos, correr descalço, artes marciais, luta na lama etc. –, mas o programa de Erwan ocupa um espaço todo seu. Acima de tudo, o MovNat se encaixa no conceito de “exercícios evolucionários”, uma tendência cada vez mais popular adotada por uma comunidade global ainda não muito organizada, mas que cresce rapidamente, de entusiastas, profissionais da saúde e atletas. O movimento freqüentemente recebe a rubrica “paleo”, mas é mais do que apenas uma forma pré-histórica de comer e se exercitar.
Os adeptos mais fervorosos do paleo preferem carne crua (por sorte, nossas refeições sempre foram cozidas), evitam calçados, jejuam periodicamente e se divertem tirando sarro de vegetarianos, especialmente os vegans, que não comem ovo ou laticínio, e que eles acreditam estar redondamente enganados em relação a nutrição humana. Mas a maioria dos paleos é mais moderada e adota a regra 80/20: não se desespere por causa de um pão ou sundae ocasional, desde que você se atenha à dieta em cerca de 80% do tempo.
Os princípios básicos da paleo-dieta já existem há alguns anos, mas seu momento crucial ocorreu em 1985, quando S. Boyd Eaton, um professor de antropologia da Universidade de Emory, publicou um artigo sobre nutrição paleolítica no New England Journal of Medicine sugerindo que a paleo-dieta poderia ser uma boa saída para a saúde pública. Embora a obra em si tenha tido uma repercussão considerável, a ideia só começou a alcançar uma audiência maior quando Loren Cordain, professor de ciências do exercício na Universidade Estadual do Colorado, encontrou o texto alguns anos depois. Por fim, Loren se tornou a autoridade máxima em paleo-nutrição e, em 2011, publicou o livro The Paleo Diet [A Paleo-Dieta, não lançado ainda no Brasil].
Por alguns anos, o interesse no estilo de vida paleo pipocou aqui e ali com a ajuda de militantes como Ray Audette, autor de NeanderThin [algo como NeanderMagro, sem tradução para o português] e Frank Forencich, de Exuberant Animal [Animal Exuberante, sem tradução para o português]. Houve ainda a colaboração de defensores dos exercícios primitivos como Art de Vany, um sarado e entusiasmado septuagenário ex-professor de economia de Los Angeles a quem muitos creditam a ideia de exercícios evolucionários e cujo livro mais recente, The New Evolution Diet [A Nova Dieta Evolutiva], deve ser lançado este mês nos Estados Unidos. Mas então algo curioso aconteceu: os pagamentos de royalties à Loren começaram a engordar e The Paleo Diet subiu à lista dos 100 livros mais vendidos da Amazon.com. Loren atribui muito do sucesso inesperado do livro a Robb Wolf, um ex-campeão de levantamento de pesos e bioquímico que foi seu aprendiz em 2006.
No final dos anos 90, Robb havia passado por uma série de problemas de saúde, incluindo pressão alta e depressão. “Eu estava mais para lá do que para cá”, conta ele. Dois anos depois, as doenças haviam sido curadas pela paleo-dieta e Robb descobriu o crossfit, um popular treinamento de força e condicionamento que combina levantamento de peso, corrida e ginástica. Foi aí que Robb levou a paleo-mensagem à grande comunidade do crossfit, dando palestras com frequência em academias e eventos esportivos. A “novidade” se espalhou com intensidade viral, e conforme o crossfit florescia – a marca que lançou esse tipo de treinamento cresceu de 13 academias afiliadas em 2005 para 2.200 em 2010 –, aumentava, também, a popularidade do movimento paleo.
Hoje dietas de pouco carboidrato e muita proteína são adotadas por todos, de atletas profissionais a mães de classe média. Embora a abordagem paleo seja consideravelmente mais holística do que, digamos, a famosa dieta de Atkins, nem todos compram essa ideia. A nutricionista Marion Nestle, por exemplo, questionou a sabedoria de se eliminar completamente os laticínios de nossa mesa. “Nunca é uma bom restringir grupos alimentares, a não ser em casos de necessidade”, diz ela. “Esses alimentos têm sido consumidos por humanos por muito tempo, com muito prazer e bom valor nutricional.” Outros, como Katharine Milton, uma respeitada antropóloga da Universidade da Califórnia, argumenta que a pressuposição fundamental do movimento paleo – de que fomos incapazes de nos adaptar a tipos relativamente novos de alimentos desde o advento da agricultura e pecuária – é falha. Segundo Katharine, o ser humano, mesmo no período paleolítico, sempre se ajustou muito bem às mudanças ambientais e nutricionais.
Apesar da falta de consenso, as dietas e exercícios pré-modernos são um fenômeno pequeno, mas crescente. John Welbourn, veterano da Liga Nacional de Futebol dos EUA, prega a paleo-dieta para seus antigos colegas de equipe no New England Patriots. Gurus da resistência, como Joel Friel, que, com Loren Cordain, foi co-autor de The Paleo Diet for Athletes [A Paleo-Dieta para Atletas, sem tradução no Brasil], convoca triatletas a tentarem. De forma semelhante, livros como Nascido para Correr [lançado aqui pela editora Globo], de Christopher McDougal, sobre a tribo tarahumara do México, estão inspirando pessoas a correr descalças ou quase descalças, ajudando a elevar as vendas do Vibram FiveFingers em cinco vezes só no ano passado. Incontáveis websites, livros e blogs também se multiplicaram, junto com um bocado de clubes paleo ao redor do mundo, cujos membros se reúnem para fazer coisas como aprender arco-e-flecha e preparar carne seca de gado alimentado com pasto. NO ACAMPAMENTO, ENTRAMOS EM UM ESQUEMA FAMILIAR: levantamos às 7h, café-da-manhã reforçado, alguns exercícios de aquecimento, uma sessão de desenvolvimento de habilidades em corrida descalça ou técnicas adequadas de levantamento de toras, a sesta (ou “MovNap”), um circuito de exercícios combinados, uma nadada no lago, jantar com bastante carne e uma leitura de tópicos como o metabolismo de lipídeos ou o valor da vitamina D.
Até agora, considerando que não houve exigência de um teste físico, o desgaste tem sido mínimo. Poucos de nós perderam refeições por não estarem se sentindo bem, embora alguns tenham sido mais afetados do que outros. Há uma política severa contra lanches e beliscadas fora de hora, e Dave Csonka, o programador de computadores da Flórida de 1,96 m de altura, tem implorado por bananas porque seu nível glicêmico está sempre caindo. Pior que isso, seus braços estão cobertos de urtiga. Em uma de nossas caminhadas diárias descalças de 40 minutos até o lago, Oswald Fombrun, um dos irmãos de Nova Jersey, foi picado logo abaixo do olho ao passarmos por um ninho de vespas escondido em algumas pedras. As caminhadas era a parte favorita do meu dia, na qual eu me imaginava um caçador habilidoso no rastro de seu almoço – até que fui picado duas vezes no braço.
A maioria de nossos treinamentos ocorre em um pomar sombreado próximo ao acampamento, onde Vic Verdier e Erwan Le Corre construíram uma academia temporária a céu aberto, com toras cortadas em pesos diferentes entre as árvores, um complemento de pedras e troncos, várias barras de equilíbrio e alguns bancos de piquenique para salto em altura. Na maior parte do tempo, Vic observa em silêncio, enquanto nossa cozinheira mantém no acampamento o ruído de processador de alimentos e de liquidificador.
Às vezes, Erwan interrompe o que estamos fazendo para demonstrar a técnica correta ou para nos impressionar com demonstrações de força e habilidade. Depois que alguns de nós não conseguem mover uma tora de madeira maciça, ele coloca o tronco de árvore (que deve pesar mais de 150 quilos) sobre o ombro e o carrega por cem metros até o acampamento, onde o joga perto da fogueira e limpa o ombro num gesto teatral. Erwan é alto e bronzeado – o tipo de físico que você esperaria encontrar se tivesse depilado um neandertal. Ainda assim, e apesar do aspecto exterior de um corpo endurecido e das falas motivacionais, ele não é um sargento disciplinador.
Suas instruções são temperadas com declarações quase místicas, como “o oxigênio é um acidente, a respiração é intencional”, e dicas como “ouvir mais reggae estimula o ritmo e o fluxo do corpo”. Em um determinado momento, eu o encontro em pé, na grama, fazendo algum tipo de oração ao sol com a cabeça baixa e um braço erguido em direção ao céu. “Eu só estava em um momento de gratidão”, diz ele. Ele tem um iPhone, dirige uma Land Rover e, talvez por ser francês, sente-se confortável vestindo uma sunga preta apertada no lago.
Na terceira manhã, eu já estava imundo, queimado de sol e tinha conseguido centenas de cortezinhos minúsculos e arranhões que queimavam com o suor. Mesmo assim, meu corpo havia se ajustado (quase) totalmente à dieta e eu me sentia surpreendentemente bem me rastejando sobre uma grama amarronzada e quebradiça debaixo de um sol escaldante, praticando um movimento que poderia me ajudar a escapar de um ataque. Erwan grita que nós fomos domesticados, que nossas vidas esterilizadas e hermeticamente fechadas nos deixaram intolerantes à natureza. “Mas você ainda pode se acostumar com a sujeira!”, ele exclama, fazendo uma referência indireta ao fato de que estar exposto à terra e aos germes fortalece nosso sistema imunológico.
Treinar a céu aberto não apenas nos deixa mais resilientes, diz Erwan, como é também uma maneira melhor de se exercitar do que a típica penitência cardiovascular ou os supinos inclinados em grandes academias, onde os principais motivadores são o afinamento da cintura e o aumento dos bíceps. O MovNat avança um conceito que alguns treinadores vêm utilizando desde os anos 70, ao tratar o corpo como uma ferramenta de movimento dinâmico.
Mais para frente naquela tarde, depois de praticar mais corrida descalça (“Caia para a frente e aterrisse com a parte da frente dos seus pés”), Erwan acrescenta um “bônus” ao nosso percurso até o lago. No caminho, temos que parar e carregar um parceiro nas costas. Eu me junto a Christoph Zürcher, 44, o jornalista suíço, com 1,88 m e cerca de 10 quilos a mais do que eu. Estamos suados e sem camisa. Meio sem graça, subo nas costas dele enquanto ele passa o braço sob minhas pernas e começa a andar para frente desajeitadamente. “Uuuuugghhhhh! Até onde temos que ir” ele grunhe. “Troquem!”, grita Erwan depois de uns 5 minutos, e lá vou eu pela trilha, curvado pelo peso da carga suíça esmagadora. Por fim, passamos por pedras imensas e chegamos ao lago.
“Quanto mais nos movemos, mais espertos ficamos”, diz Erwan, enquanto descansamos sobre as pedras depois de nadar. “Nós ficamos menos estressados quando vemos o verde das folhas e da grama.” Um barco a motor passa por nós rebocando uma pessoa em esqui aquático. “Eu amo a tecnologia”, continua ele. “Amo todas as conveniências modernas, mas temos que nos perguntar: ‘Quando devemos usá-las? E qual o custo disso?’” ERWAN CRESCEU CORRENDO pelos campos e florestas das cercanias de Paris. Ele gostava de esportes com bola – futebol, tênis –, mas detestava as regras e limites dessas modalidades. Aos 15 anos, ele tentou o caratê, ultrapassando rapidamente oponentes mais velhos e experientes. No entanto, ele também achou os protocolos formais e as tensas competições do caratê algo muito rígido e confinante. Até que, aos 18 anos, ele assistiu a um programa na televisão sobre um dublê parisiense de 45 anos chamado Jean Haberey. Num certo momento, Jean saltava de um helicóptero sobre um oceano cheio de icebergs vestindo apenas calção de banho. Foi a coisa mais extraordinária que Erwan havia visto até então – e decidiu que queria fazer aquilo também.
Um ano depois, encontrou Jean e, pelos sete anos seguintes, seguiu o dublê e seus outros discípulos pela metrópole francesa em atividades de alto risco: um “clube da luta de movimentos naturais”, descreve Erwan. “Jean foi o primeiro a levar as pessoas para os telhados de Paris”, diz. “Ele também nos mostrou o underground, sempre descalços, sem nenhum tipo de equipamento, para treinarmos como nos mover silenciosamente, como gatos, através dos obstáculos urbanos… especialmente à noite, quando todos estavam dormindo.”
Uma vez, Jean e Erwan fizeram uma competição de abdominais pendurados pelas pernas de uma ponte sobre uma via expressa de oito pistas. Em outra vez, Erwan escalou a parte horizontal de um guindaste com as pernas soltas no ar a, aproximadamente, 30 metros do chão. “Aquilo foi maluco, mas me fez me sentir muito vivo.” Os feitos urbanos de Jean ajudaram a lançar a febre do parkour [em que o praticamente vence obstáculos urbanos com saltos e acrobacias], mas Erwan, como a maioria de seus seguidores, acabaram desiludidos. “Eu o apoiei por um tempo, só que aquilo se tornou um culto a sua personalidade. Tudo para ajudar a ele, não aos outros.”
Por alguns anos, Erwan procurou esportes de endurance, correndo IronMans enquanto se mantinha em trabalhos estranhos, incluindo um emprego em uma fábrica de sabão e outro em uma joalheria masculina. Mas se tornar uma máquina de movimento perpétuo não era sua razão de ser. Finalmente, em 2004, ele deparou com um comentário online sobre o Methode Naturelle, um manual de treinamento obscuro publicado em 1912 por Georges Hérbert, um oficial da marinha francesa. O livro continha fotos em preto e branco de rapazes robustos em sungas realizando todos os tipos de exercícios com movimentos primitivos: salto, corrida, nado, escalada etc. “Eu me perguntei: Como assim?! Era exatamente o que eu estava fazendo, mas esse cara tinha dado um nome a isso”, diz. “Ele sistematizou a coisa toda. Ali, achei meu caminho.”
O lema de Georges era “Ser forte para ser útil”, um conceito amplamente inspirado pelo evento que definiu sua vida. Em 8 de maio de 1902, ele foi enviado para o Sughet, um navio estacionado na costa de Saint-Pierre, na ilha de Martinica, durante a infame erupção do monte Pelée. Em minutos, a erupção torrou a maior parte dos 30 mil cidadãos da cidade, queimando-os antes de enterrá-los em tsunamis de lama. Em meio à carnificina, Georges e seus colegas salvaram cerca de 700 vidas, retirando do mar homens, mulheres e crianças queimados, que haviam sido arremessados por centenas de metros pela explosão.
Preparar seu corpo e sua mente para o mundo real e para casos de vida ou morte é a raiz do MovNat. Nossas atividades em campo (lançar uma pedra, escalar uma árvore) podem parecer sem sentido, mas têm a intenção de cultivar o que Erwan chama de “tensão seletiva”, uma reação cinética na qual os músculos se relaxam e se contraem em padrões que ajudam você a se mover de forma mais eficiente, especialmente em situações imprevisíveis. Para reforçar o valor prático das atividades, Erwan sempre cita cenários atuais imaginários durante nosso treinamento. “E se você tivesse que puxar alguém para fora de um prédio em chamas?”, ele pergunta em uma manhã. “Ou de uma enchente?”, Vic Verdier acrescenta. “Às vezes, a sobrevivência se resume a quem consegue e quem não consegue correr um lance de escadas.”
Em uma tarde, Erwan me mostra um vídeo em seu laptop, basicamente a versão sem cortes do tal O Treino que o Mundo Esqueceu. Eu reconheço algumas cenas: Erwan se arrastando através de moitas e correndo na praia na Córsega. Mas há momentos mais dramáticos nessa versão. “Não posso colocar isso online para não ficar incentivando outros a fazerem isso”, diz ele, ao aparecer na tela saltando de pedra em pedra em um rio cheio e feroz. Na cena seguinte, depois da passagem de uma grande onda, Erwan salta de um penhasco em um mar agitado. Parece que ele vai ser transformado em picadinho humano. Conforme chega a próxima onda, ele inclina o corpo e usa as pernas – um movimento sutil, como um peixe, que o alinha em frente a uma abertura impossivelmente estreita nas rochas. A onda quebra, mas Erwan a acompanha como um pedaço de madeira para dentro da pequena alcova. Ele desaparece brevemente enquanto a onda caótica se lança sobre a costa. A água recua e lá está ele, agachado sobre as pedras, ileso. “Eu não estou tentando me exibir”, diz ele, talvez percebendo minha descrença. “Só estou mostrando o que é possível.” NO FIM DA SEMANA, Vic Verdier finalmente entra na cena central. É hora do combate. “A melhor opção sempre é escapar”, diz Vic. Ele fala com calma. “Mas, se tivermos que lutar, precisamos estar preparados para ir até o fim.” Lutas de rua são um “caos completo”, diz ele. “Você está atolado de adrenalina, e a maioria das brigas não dura mais do que 1 minuto.”
Verdier distribui protetores de chute usados em muay thai e nós nos revezamos dando socos o mais forte e rápido que podemos. Formo uma dupla com Fred Fombrun, 26, um dos irmãos de Nova Jersey. Ambos são boxeadores amadores sérios, e o primeiro soco de Fred é tão forte que eu me inclino para trás e quase caio de costas. Preciso usar toda a minha energia para manter meus pés no chão. Meu ataque é consideravelmente menos impressionante. Em certo momento, percebo que Fred estava vendo mensagens em seu iPhone enquanto eu espancava o protetor.
Depois da aula de luta, voltamos para o acampamento, onde Allie Brodeur nos espera com o almoço. Espaguete?! Não. É abobrinha cortada de modo a parecer espaguete: abobrete! Os vegetais são acompanhados de tomates crus, tomates secos, manjericão fresco, alho, orégano, azeite de oliva e pimenta do reino moída – e são deliciosos. Estou faminto e engulo tudo como um coiote desesperado, lambendo o molho do fundo do meu prato sem o menor constrangimento.
Apesar de meu frequente desejo nada paleo por salgadinhos e outras porcarias, eu me sinto ótimo. Minha pele parece mais grossa, meu bronzeado adquiriu um tom de canela que não tinha há anos e a dor nas costas e nos braços se dissipou completamente. Só Dave Csonka, o cara grandão da Flórida, ainda parece estar numa pior. Além da urtiga e da baixa taxa de açúcar no sangue, ele conseguiu um torcicolo. “Eu vou ficar bem”, diz ele, mantendo o espírito esportivo mesmo tendo que girar o tronco inteiro para olhar para cada um de nós.
Uma pergunta que todos parecem querer fazer é finalmente disparada por Fred Frombrun: “E o que exatamente eu faço quando voltar para casa?”. “Não há muitos parques onde moro.” Erwan vem trabalhando numa solução para isso. Em 2009, ele conheceu Robb Wolf, o influente instrutor de crossfit que se tornou um amigo. Inspirado por sua história e pelo sucesso do crossfit, Erwan começou a elaborar um plano de negócios baseado em Robb: ele espera treinar e certificar instrutores que terão licença da marca para uso em suas próprias academias, ou criarão locais de treinamento em áreas abertas como o nosso. Ou ambos.
Eu consigo ver o apelo desse programa de exercícios, especialmente porque Erwan acredita que, se ele for realizado de forma inteligente, você precisa fazer só alguns circuitos por semana, sem compromissos diários e opressores com a esteira. “Um atleta especializado pode melhorar porque treinar assim ajuda a prevenir lesões e desenvolve o equilíbrio”, diz ele. Imagino que isso me ajudará também nas coisas que eu gosto de fazer, como esquiar e andar de bicicleta, porque está fortalecendo meu corpo para que ele se mova do jeito que deveria. E o melhor de tudo é que é bem mais divertido que suar numa esteira fazendo tiros com o monitor de freqüência cardíaca.
Enquanto isso, Erwan está escrevendo um livro sobre o MovNat. E ele continua a cruzar o país para realizar palestras, seminários de um dia e outros eventos. Em outubro, foi um convidado VIP da primeira corrida anual descalça da cidade de Nova York. Algumas semanas depois, ele e Robb foram convidados a explicar os benefícios da paleo-dieta e do MovNat para a NASA. TREINAR COM A BARRIGA VAZIA, em jejum, segundo os paleos, aumenta a produção do hormônio humano do crescimento. Então, na última manhã, Erwan nos faz começar nosso circuito final, que testaria todas as nossas habilidades recém-desenvolvidas, sem o café-da-manhã. Começamos andando pelo morro gramado próximo ao acampamento, torcendo e dobrando o corpo, e então passamos a fazer agachamentos usando somente o peso do corpo. Depois, nós nos abaixamos e rastejamos furtivamente pela colina usando as mãos e os pés. “Vasculhem o horizonte”, instrui Erwan. “Fiquem abaixados! Vocês não devem ser vistos. Lembrem-se: na natureza, nunca ficamos distraídos, mas sempre alertas.” Ele aumenta a intensidade com flexões de braço e exercícios de “carrinho-de-mão”, quando um parceiro segura seus pés. Aí nos diz para irmos para o chão e rolarmos morro abaixo, como troncos. No final, eu estou tão tonto que não consigo me levantar. Ali perto, um jovem de Rhode Island está curvado, vomitando.
Erwan mantém o ritmo. Partimos exaustos para a zona de treinamento com madeira para fazer levantamentos de troncos e carregar pedras. Depois, vamos para a caminhada na barra de equilíbrio e saltos. Erwan começa a usar jogos mentais, dizendo que estamos fazendo exercícios com contagem até dez, mas parando no oito e contando ao contrário, ou repetindo um número várias vezes: “sete, sete, sete, sete …”. “Nós funcionamos em grupos de dez na natureza?”, pergunta. “Como sabemos até quanto temos que fazer alguma coisa?”
Depois de mais de 1 hora de exercícios pesados, passamos para a barra alta que tentamos no primeiro dia. Eu pulo para cima, engancho minha perna e… começo a gargalhar quando me vejo macaqueando no topo da barra. Um a um, quase todos, tão constrangidos com a derrota no começo da semana, conseguem fazer a mesma coisa. “Estão vendo?”, diz Erwan, com um olhar de satisfação no rosto. “Progresso”.
Deixo West Virginia inspirado. Em casa, invento circuitos em um parque da vizinhança – correr descalço pelo campo, saltar sobre um banco, descer de quatro escada abaixo –, mesmo percebendo que pessoas com cachorros e pais com crianças pequenas mudam de caminho para me evitar. Nos fins de tarde, eu preparo jantares de carne de gado alimentado com pasto e vegetais grelhados para minha namorada, com melancia fatiada de sobremesa. Mas isso requer um nível de dedicação, planejamento e autocontrole que eu não consigo manter. Logo, eu me pego na tendência de comer comida mexicana, tomar cappuccinos triplos e dirigir até o mercado que fica a poucas quadras de casa. Meu treinamento vai se diluindo em uma vez por semana, uma vez por mês e, por fim, se resume a assistir O Planeta dos Macacos em DVD.
Eu poderia ter previsto isso enquanto estava sentado no portão do aeroporto de Charleston, observando, entediado, enquanto crianças gordinhas passavam segurando cones de waffle do tamanho da cabeça delas. Percebi como cada dia se resume a uma série de decisões centradas na conveniência e no conforto. Enquanto eu me afundava na cadeira, bebendo água, nossa última manhã no acampamento já parecia distante e apagada.
Depois do fim do circuito do último dia, seguimos Erwan até uma trilha no meio da floresta. Não podíamos conversar e tínhamos que nos mover o mais rápido e silenciosamente possível. Começou a chover e logo estávamos não apenas suados, mas encharcados e forrados de terra da floresta. Em um certo momento, Erwan se abaixou sobre as mãos e os pés e fizemos o mesmo. Rastejando ao longo da trilha, acabei me espetando com alguns espinhos, mas não senti nada. Chegamos a um anfiteatro pequeno e fértil no centro do qual havia uma poça escura com, talvez, 6 metros de diâmetro. O ar tinha o cheiro forte de musgo e amônia, e a folhagem balançava e brilhava em verde fluorescente.
Pela primeira vez em 20 minutos, Erwan resolveu falar. Vestindo apenas shorts e uma bandana verde escura, cheio de lama, como se alguém tivesse desenhado seus músculos com marcador preto, ele parecia bem selvagem. “A adaptabilidade é o santo graal do MovNat”, disse. “Isso é o que fizemos ao longo da história humana. Mas perdemos o contato com o mundo que nos criou.” Aí ele se lançou no buraco negro de lama, afundando imediatamente até a cintura, mergulhou os braços e o peito no lodo e nadando até o outro lado em um esforço gutural e contínuo. O resto de nós ficou ali, em pé, perplexo. Algumas pessoas balançavam a cabeça, enquanto Erwan gesticulava, chamando a gente do outro lado. Por fim, um por um, entramos na lama para nos juntar a ele. E, então, como que para reforçar o fato de que, sim, tínhamos sido despertados novamente e isso não era nada ruim, cruzamos a poça novamente – não uma, mas duas vezes.
Corra. Grite. Coma carne. Vária vezes << 1. Evite alimentos que não existiam antes do advento da agricultura e da pecuária (como laticínios e doces). Em vez deles, consuma muita carne, peixe, frutas, vegetais e nozes.
<< 2. Exercite-se como um homem primitivo. Faça séries curtas e intensas de exercícios com o corpo inteiro algumas vezes por semana: corra, escale, nade, levante coisas pesadas, lute, salte e role. O mais importante de tudo é se sujar e se divertir.
<< 3. Mantenha o foco em habilidades que tenham utilidade no mundo real. Em vez de treinar de forma distraída, suba em árvores, salte de pedra em pedra, pratique prender a respiração, brinque com seu cachorro etc.
<< 4. Estresse seu sistema. Pule uma refeição uma vez por semana ou mais. Tente treinar logo que acordar de manhã, sem comer nada. Participe de algo competitivo, como uma corrida ou um jogo.
PRIMITIVO: Erwan carrega um tronco e incentiva um maior contato do homem com a natureza
DE PERNAS PARA O AR: Erwan Le Corre acredita que a volta ao passado é o melhor meio de treinar bem o corpo
Um guia rápido para um estilo de vida mais paleo
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2011)