Quando era criança, o escritor norte-americano Norman Ollestad aprendeu a surfar com o pai em viagens ao México, até que um dia os dois sofreram um acidente de avião e só ele sobreviveu. Quarenta anos depois, o autor revive o passado, desta vez como pai de Noah – em um aprendizado recheado de altos e baixos e muitas ondas
Por Norman Ollestad
EU E MEU FILHO PEGAMOS NOSSAS PRANCHAS e saltamos do último degrau da escada de madeira que dava na areia da praia. Era a primeira manhã de nossa viagem a um pico isolado na costa do México, país onde surfei minha vida toda – desde as primeiras excursões de carro com meu pai nos anos 70, quando eu ainda era garoto. Saíamos de nossa casa em Malibu, nos Estados Unidos, e levamos vários dias de carro até o sul, cruzando o Golfo da Califórnia de balsa e surfando em todos os bons lugares até chegar a Puerto Vallarta, onde viviam meus avós. Era importante continuar a tradição familiar com meu filho Noah. Quando eu tinha 11 anos, eu e meu pai sofremos um acidente de avião, e ele morreu. Essas viagens com o Noah, agora com 14 anos, nos mantêm conectados com o espírito aventureiro do meu pai.
FILHO DE PEIXE: Noah e Norman Ollestad em Los Angeles, em fevereiro de 2015 (Fotos: Jeff Lipsky)
Meus destinos de surf favoritos no México quando criança – Sayulita e Punta Mita, próximos à casa dos meus avós – ficaram superlotados de uns tempos para cá. Mas eu dei sorte de encontrar recentemente um pico de esquerda na boca do Golfo da Califórnia, uns 480 quilômetros ao norte de Sayulita. Depois de dois verões surfando ali durante uma semana com Noah, hospedando-nos em um pequeno hotel com uns poucos amigos e quase nenhum outro turista, mal podíamos esperar para voltar para lá.
O sol da manhã aparecia por trás das árvores de umas montanhas perto da praia, e um único raio atravessava a paisagem verde, deixando-nos na sombra enquanto corríamos ao longo de uma enseada em forma de ferradura. Noah começou a assoviar uma música que acabara de aprender a tocar com seu ukulele, chamada Sunshine of Your Love, projetando o queixo na hora das notas mais difíceis, gingando com os ombros e sacudindo os quadris com ritmo. Seu senso de humor meio maluquinho me fez lembrar um momento que passei com meu pai em algum lugar surfando por estas bandas. Eu havia conseguido pegar meu primeiro tubo e, ao sair da onda inebriado com a adrenalina, perdi o controle do corpo e caí na água. Quando vim à tona, começamos a rir, e foi aí que finalmente entendi por que meu pai era tão apaixonado por surf e por que me pressionava tanto para gostar – algo do qual eu me ressentia quando era menino.
Noah e eu paramos e observamos o swell batendo na ponta rochosa da praia. Como seguindo um roteiro, cada onda se quebrava da mesma forma em direção ao coração da enseada, sem nunca atropelar a área aberta – um cenário perfeito para um surfista. Restavam na Terra muito poucos lugares como este, que ofereciam ondas bem formadas e suaves sem ter uns 40 caras competindo por elas. E o paraíso era só nosso.
MINI MIM: Noah, filho do autor deste texto
No dia anterior, quando estávamos guardando as pranchas, Noah disse: “Este ano quero arrasar nas batidas retas.” Tradução: quero dominar a arte de subir verticalmente a parede da onda, bater na crista e girar para baixo fazendo um arco estreito – a manobra também é conhecida pelo termo em inglês vertical snap. Fiquei surpreso com o brilho em seus olhos. Eu nunca tinha visto meu filho tão determinado. Não parecia mais com o menino tranquilão que desistia de uma boa onda vindo diretamente para ele se outro surfista a quisesse – e que depois reclamava “nunca pego as boas”. Da última vez que ele demonstrou metade dessa empolgação foi quando me disse que adorava andar de skate, e aí comprei um para ele de aniversário. Mas Noah praticamente só ficava olhando seus amigos treinando skate e, quando a turma avançou para o halfpipe, mostrava muito medo de dropar. Decidiu parar porque “agora eles são muito melhores do que eu”. Sempre me parecia que o que faltava era paixão. Sua personalidade meio conservadora fazia dele alvo fácil para tiração de sarro, por isso meu filho precisava daquela empolgação mais do que os outros garotos.
Então, quando ele colocou a mão no meu ombro e disse “quero melhorar o nível do meu surf nesta viagem”, vi ali uma boa oportunidade – e imediatamente já comecei a arquitetar um plano. Neste ano, Noah iria desabrochar no surf e começaria o primeiro ano do ensino médio com uma autoconfiança recém-descoberta, que serviria de combustível para sua jornada pela adolescência. Até a brisa do mar parecia prever um doce sucesso.
Eu já tinha tudo planejado.
“PARECE QUE AS ONDAS estão grandes”, disse Noah, com seus cabelos loiros bem claros brilhando no sol nascente.
Agitado pela adrenalina trazida com as ondas, eu lutava para manter a calma. “Parecem perfeitas para você”, respondi.
Ele enfiou a rabeta da prancha de 4’10” na areia, deixando-a vertical, e colocou o braço ao redor do nariz como se fosse seu ursinho de pelúcia. Foi o primeiro risco na imagem que criei na minha cabeça do meu filho pegando as ondas de sua vida.
“Até que para um mês de julho, os mosquitos não estão tão insuportáveis”, murmurei para distraí-lo um pouco.
Ele me ignorou e continuou a olhar o mar, com a cara meio emburrada.
“Nos velhos tempos”, eu disse, alongando o pescoço como quem não quer nada, “quando eu vinha aqui com meu pai a caminho de Puerto Vallarta, não tínhamos…”
“Não tinham ar condicionado”, interrompeu Noah, sem tirar os olhos da água. Seus ombros bem construídos – o único sinal físico de que ele acabara de completar 14 anos e estava entrando na puberdade – caíam para um lado, enquanto a boca se torcia com certo amargor. “Estou com um pouco de medo”, falou.
Minhas costas se contraíram. Onde foi parar aquele ímpeto por trás do “eu quero arrasar nas batidas retas”? Agora eu teria que persuadi-lo a passar por cima de um desconforto totalmente inventado e convencê-lo de que tudo seria divertido e recompensador. Como é que ainda estávamos travando a mesma batalha de quando ele tinha 5 anos e eu tentava fazer com que o menino surfasse as marolas perto da praia?
Outra onda maravilhosa quebrou na nossa frente. Era difícil acreditar que aquele tesouro pelo qual eu ansiava pudesse intimidar Noah, e isso me fez lembrar do meu pai em pé numa praia do México, como eu estava agora, olhando o próprio filho lutar contra o medo.
BONS COMPANHEIROS: Pai e filho na praia de Will Rogers, em Los Angeles, EUA
ERA O VERÃO ANTERIOR ao meu primeiro tubo. Eu tinha 9 anos, e estávamos ao redor de uma fogueira que havíamos montado numa manhã com vovô na areia de Sayulita. Recolhemos pedras da beira de um córrego que chegava até o mar e cozinhamos milho na espiga, pois o único restaurante da cidade estava fechado.
“Temos mesmo que voltar para Punta Mita?” perguntei ao meu pai.
“As ondas são melhores lá.”
“Por que não podemos ficar surfando aqui?”, argumentei.
“Você já surfou em Sayulita umas cem vezes. Vamos levar você para um lugar que tem velocidade e força.”
“Mas eu gosto destas ondas.”
Ele olhou para o mar e contraiu as costas. “Eu não quero perder uma oportunidade de ouro”, disse. “Vámanos.”
Comi meu milho e espantei mosquitos no banco de trás do jipe do meu avô. Cruzamos um riacho e subimos uma estrada íngreme, com os pneus cuspindo poeira para trás de nós. Eu odiava sempre ter que surfar ou esquiar onde meu pai queria, em vez de onde eu queria. Ele sempre tinha que fazer as coisas do jeito dele, mesmo que eu estivesse com medo – e eu não dava a mínima para as tais “oportunidades de ouro”, ficava é com vontade de largar o surf de uma vez.
Punta Mita era cheia de conchas brancas e eu morria de medo dos recifes onde quebravam as ondas. “Não quero surfar”, eu protestava, mas meu pai me pegava e me colocava sobre a prancha, empurrando-me na sua frente na parte rasa.
“Estas ondas não são nada demais, Norman. Dobre os joelhos na hora de dropar”, ele dizia como se fosse a coisa mais simples do mundo.
Eu me enchia de raiva, com lágrimas nos olhos, determinado a encontrar uma forma de me livrar daquilo tudo.
As ondas tinham um metro apenas, mas, quando dropei a minha primeira, a base estava sugando tanta água da bancada que meu peso ficou no pé de trás, fazendo com que a prancha fosse para cima pra cima e por cima da onda, me arremessando no ar.
Se eu não tivesse caído na parte de trás da onda, teria batido nos corais, e agora eu estava com muita raiva do meu pai. Então remei para a próxima onda, para que ele não me azucrinasse ainda mais por desistir. Porém a perdi, o que me deu uma boa ideia: é só parecer que se está muito afim, mas nunca conseguir pegar efetivamente a onda…
Uma onda maior se ergueu por trás de mim e meu pai dropou. Ele se agachou como uma bola e desapareceu por baixo da crista. Quando voltou, estava com um sorriso delirante estampado no rosto.
“Vai nessa”, ele me disse apontando para uma marola que chegava.
Remei dobrando os braços para diminuir a potência da remada e, quando a onda começou a passar por baixo da minha prancha, senti uma pancada na rabeta e vi que meu pai estava me empurrando para dentro da onda. Tive que ficar em pé para não cair no coral, e desta vez absorvi todo poder de sucção da base, flexionando os joelhos. Logo a prancha estava subindo pela parede da onda, e como que por instinto rodei os ombros na direção contrária, virei a prancha pressionando a borda de baixo e estendi as pernas, formando um arco por baixo da crista que se quebrava.
“Bela cavada”, cumprimentou meu pai quando voltei.
Eu estava dividido entre a raiva e a empolgação, mas tinha que descobrir: “Tinha muito spray?”.
Ele riu. “Quer voltar para Sayulita agora?”
“Não, estou bem”, respondi com uma ponta de ressentimento, porque significava que ele tinha conseguido o que queria. De novo.
RECUERDOS: Norman com o pai e a avó, em 1978. Nas fotos abaixo, outros momentos da infância de Norman (Fotos: arquivo pessoal)
OUVI A VOZ DE NOAH. “O que você está fazendo?” Ele estava me olhando ali em pé numa contemplação aflita, exatamente como eu havia visto meu pai. Agora, quando eu olhava para Noah, sabia exatamente como ele estava se sentindo – ele queria não estar com medo, queria ser empolgado como o pai, e essa falta de conexão fazia com que o medo fosse ainda pior, deixando-o confuso.
Ao mesmo tempo, eu estava vendo o Noah do ponto de vista do meu pai: era um momento de ouro para o meu filho, então precisávamos aproveitar. Medo é um mero detalhe.
“Só pensando”, respondi.
Apesar de eu achar importante o fato de o meu filho se sentir confortável para demonstrar seu medo na minha frente – bem diferente do que eu sentia em relação ao meu pai –, naquele momento isso não provocou nenhum insight com relação aos próximos passos que eu deveria tomar.
De repente ouvi a voz segura do meu pai na minha cabeça: chame-o para a praia, no ponto mais fácil para remar para o outside. Não deixe que ele sofra com isso. Depois da primeira onda boa, seu medo será uma memória distante.Entretanto pensei no que poderia dar errado: ele vai espernear e gritar, como no ano passado, e de novo vamos começar a viagem com Noah chorando, jurando que nunca mais vai surfar comigo.
Ter duas ou mais ideias na cabeça ao mesmo tempo e, ainda assim, manter a capacidade de funcionar direito – isso é a paternidade, pensei, parafraseando o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald, e comecei a ir para a água.
“Aonde você vai?”, perguntou Noah.
“Para o ponto mais fácil de passar a arrebentação.”
“Eu vou remar daqui…”
Quando peguei minha primeira onda, meu cabelo ainda estava seco. Era uma linha de cem metros, com três seções deliciosas para surfar no lip. Uns 20 minutos depois, Noah finalmente passou a arrebentação, mas a corrente o tinha levado muito para baixo, onde as ondas estavam quebradas e mal formadas. Ele estava destroçado, com os braços pendurados dentro d’água e a cabeça deitada na prancha. Estava acabado antes mesmo de ter pego a primeira onda.
“Será que eu deveria ter arrastado ele comigo?”, ouvi uma voz me perguntando.
TUDO EM FAMÍLIA: Norman em sessão de pôquer com o pai, na Califórnia
DEPOIS DO NOSSO DIA em Punta Mita, meu pai foi para casa, e fiquei com o vovô e a vovó. Eu vagava livremente pela praia, pela cidade ou onde quer que eu desejasse, mas sentia saudades do meu pai – nem tanto assim, porque eu só precisava surfar se quisesse.
Minha playa local favorita era a que o vovô chamava de Rock Beach, que ficava a uns dois ou três quilômetros de caminhada sob o sol tropical. Certo dia encontrei um burro no caminho. Uma corda havia sido cuidadosamente amarrada em seu pescoço, cabeça e mandíbula, e o levei pela estrada de paralelepípedos que ligava a praia à rodovia. Amarrei o burro a uma árvore e nadei contornando umas lajes de pedra que entravam no mar. Havia uma abertura estreita no meio das lajes e, quando vinha uma onda, ela levava a gente pelo corredor entre as pedras e empurrava até a outra ponta, perto da praia. Eu adorava pegar onda através do corredor, mas só conseguia trazer a prancha quando o vovô me levava até a praia. Mas agora eu tinha um burro e poderia trazer a prancha sozinho. Depois de umas duas horas nadando, desamarrei o burro e levei-o até o degrau na beira da estrada. Do degrau, saltei para a garupa, coisa que eu aprendera na Califórnia andando no cavalo de um amigo.
O burro passou a ser meu meio de transporte, e o vovô me deixou alojá-lo num galpão perto da sua casa. Durante três dias cavalguei todas as manhãs até Rock Beach, depois ia para a cidade tomar sorvete e brincar de pega-pega com os moleques na praça. Daí, em uma manhã, enquanto eu voltava de Rock Beach, um grandalhão encostou sua caminhonete no acostamento onde eu montava o burro. Gritou comigo e apontou outros burros na caçamba da caminhonete, e foi aí que vi as marcas, duas letras uma sobre a outra, queimadas na anca dos animais. Era a mesma marca que havia no meu burro. Ele gritou um pouco mais e puxou o burro para a caminhonete, onde afastou um tanto de lenha e fez o animal saltar para a caçamba, junto com os outros. Eu olhei o burro ir embora e chorei o caminho todo até a casa dos meus avós.
PELO SEGUNDO DIA CONSECUTIVO, uma tempestade tropical no sul do país estragava as condições do mar. “Você viu aquela cavada, pai?… Como foi aquele floater?… Fiquei vertical naquela?”, Noah perguntava depois de cada onda, e depois perguntava de novo quando estávamos no quarto. As ondas estavam muito fracas para conseguir extrair algo legal delas. Mesmo assim, sua necessidade de afirmação me forçava a fingir respostas entusiasmadas, com medo de que ele se sentisse diminuído.
Com cada ondinha que o Noah pegava, cada jogo de pingue-pongue, partida de futebol ou sorvete de chocolate devorado na sala de estar, minha paciência diminuía. Estávamos ali com outras duas famílias e alguns casais no hotel, e Noah parecia estar passando mais tempo com as garotas do que surfando. Observando meu filho falando besteira na jacuzzi enquanto o sol se punha no Golfo da Califórnia, eu tentava analisar minha frustração. Para meu pai era tão simples, lamentei. Na sua época, não havia pressão para que ele refletisse sobre o que fazia – ele sabia o que era bom para mim, e isso era suficiente.
O mundo de hoje é diferente, claro, e sua atitude meio tosca não daria certo, mas uma coisa é fato: ele me mostrou como lidar com as adversidades e a vencer neste mundo, e isso acabou salvando a minha vida. No acidente de avião que matou meu pai, tive que me virar sozinho nas encostas de uma serra nas montanhas de San Gabriel, na Califórnia, em meio a uma nevasca a 2.500 metros. Utilizando as técnicas e a coragem que ele cultivara em mim por meio do surf e do esqui, consegui atravessar as encostas nevadas, a rocha íngreme e a tempestade de neve, arrastando-me montanha abaixo até uma casa de fazenda. Nos dias e anos que se seguiram, continuar surfando foi o que evitou que eu entrasse em parafuso com a dor e a confusão causadas pelo que eu havia passado e perdido. E, mais tarde, foi aquela fonte de paixão que meu pai despertou em mim que me possibilitou atravessar as piores tempestades da vida.
Talvez por esta razão é que eu estava tão tenso com o lance do surf. Eu sabia que Noah teria que se virar sozinho um dia – ainda que nunca fosse estar envolvido nas circunstâncias extremas pelas quais passei. Eu queria que ele experimentasse, mesmo em parte, o prazer de algo que exigisse sua convicção, foco e paixão, que seriam recursos vitais pelo resto da vida. Mas, quando chegara o momento, eu o deixei passar.
Revirei na cama até muito tarde na nossa terceira noite lá. Noah estava espalhado na outra cama, com o lençol tremulando levemente com a brisa do ar condicionado. Uma pergunta martelava na minha cabeça: será que ele algum dia iria saber o que é soltar a imaginação numa onda, sentir o corpo e a mente superarem o que ele acredita serem seus limites?
TANDEM SURFING: Norman desliza na onda de carona com o pai, em 1968
QUANDO OS PRIMEIROS RAIOS DE SOL tocaram o mar, eu praticava ioga do lado de fora do quarto. Estava difícil distinguir as ondas e o céu com a mesma cor metálica, mas em vez das ondas flácidas de ontem consegui ver um certo formato cilíndrico.
Abri a porta do nosso quarto, e Noah dormia com um braço pendurado para fora da cama. Colocando-me no lugar do meu pai, visualizei-me despertando Noah, arrancando-o da cama e arrastando-o para as ondas. Você não pode deixar que ele perca mais uma oportunidade de ouro! Pode ser que as belas ondas durem apenas uma hora. Pode levar mais um ano até que ele consiga outra chance destas. No ano que vem, ele terá 15, o ápice da rebeldia, e provavelmente estará fora do meu alcance. É isto que você estava esperando!
Porém, quando estendi o braço para acordá-lo, não consegui.
Perdida em algum canto da minha cabeça, ainda mal formada, deveria haver alguma outra forma de ajudar meu filho.
Talvez eu consiga desenvolver a ideia no mar, pensei comigo.
Deixando a porta entreaberta, saí.
“POR QUE VOCÊ não me acordou?”, perguntou Noah quando ele finalmente conseguiu chegar até o outside, onde o mar ondulava com o swell e uma selva verde acinzentada podia ser vista a nosso redor.
“Eu queria que você curtisse seu sono embelezador.”
Ele deu um sorriso de lado e revirou os olhos. “Tá irado aqui fora!”
“As ondas estão bonitas”, respondi com cara de quem não quer nada.
“Eu vou atrás da minha batida reta hoje!”, declarou, dando meia-volta e remando para uma pequena marola.
As ondas estavam tão consistentes que não o vi mais por mais de uma hora.
Eu havia acabado de pegar uma onda incrível, quando Noah apareceu.
“Eu sou um lixo”, disse.
Apertando o rosto, ele chorava, e isso contrastava de tal forma com tudo o que eu estava sentindo e com o que eu esperava do meu filho que não segurei uma risadinha.
“Qual é o problema?”, perguntei.
“Eu treino e treino, mas nunca melhoro. Todos os meus amigos são melhores. Eu não sou bom em nada”.
Eu queria gritar. Queria espantar aqueles demônios. Esmagá-los com minhas próprias mãos. Eu queria salvá-lo. Quantas vezes eu havia feito aquilo? Quantas vezes eu havia resgatado aquele menino, salvo a sessão de surf ou a descida de esqui de um xilique ou evitado que ele passasse vergonha numa festa de aniversário? “Agarre a minha perna e reboco você para fora de novo”, queria dizer, mas permaneci em silêncio.
Fiquei ali meio gaguejando e, naquele momento de vazio, veio uma ideia há muito escondida num canto da minha mente: meu pai nunca teve que lidar comigo na fase da adolescência. E, vendo pelo outro lado da moeda, eu nunca tive que lidar com nesse período. Por isso eu não conseguia compreender direito o que Noah e eu estávamos passando, o que me impedia de agir. A estrada que estávamos percorrendo estendia-se muito além do mapa que meu pai deixara para mim.
“Por que fico estragando essas ondas perfeitas?”, gritou Noah.
“Ei”, falei em voz muito alta, arrancando-o daquela espiral descendente. “Quem se importa em como você surfa? Não é essa a questão.”
“Então qual é a questão?”
“Isto. Aqui e agora. A busca. Que você tenha sua paixão.”
“Dane-se a paixão.”
“Ah! Agora pegue essa raiva e reme para cada onda que encontrar, como se sua vida dependesse disso.”
“Mas depende.”
“Sim”, respondi, e remei para longe.
Durante o resto daquela manhã, cada vez que eu cruzava com Noah, ou ele estava todo empolgado por causa de alguma cavada ou drop-in, ou parado em desespero, socando a prancha, ou remando forte para pegar alguma outra imaculada lâmina d’água. Eu estava surpreso por ele não ter me perguntado sobre suas manobras mais nenhuma vez.
Em um determinado momento, entrei em casa para tomar água e comer uma banana. Voltando para a praia, vi Noah fazer uma cavada na parte de baixo da onda, subir reto, romper a crista e girar a rabeta, mas não os ombros, o que fazia com que a prancha ficasse no topo da onda. Daí ele fez um drop no ar e mergulhou na água. Quando voltou à superfície, agarrou a prancha e arremessou-a com violência, abrindo a boca para gritar, mas as ondas engoliram seu grito. Enquanto sua sessão progredia, toda vez que Noah ficava irado ou frustrado, dando um pequeno chilique, seu ataque era absorvido pela fluidez e vastidão do oceano.
Cada nova onda era uma chance para que ele recomeçasse – um espaço idílico para trabalhar sua fúria e construir seu caráter –, e aquilo estava além de qualquer coisa que eu pudesse oferecer.
AS ONDAS SE AMANSARAM por volta do meio-dia. Os joelhos de Noah estavam ralados – arranhados pela prancha e irritados com a água do mar –, e ele estava tendo dificuldades para caminhar, mais ainda para surfar. Eu sabia que ele estava sentindo dor de verdade, porque depois nem foi jogar vôlei na piscina. Cada vez que mancava ou fazia uma careta, reforçava a ideia de que ele provavelmente não surfaria de novo antes do fim da nossa viagem. Fiquei pensando: será que Noah vai usar os joelhos como desculpa para não voltar lá para o mar?
Naquela noite a turma toda estava feliz, pagando as cervejas uns dos outros e brindando o surf do dia. Ainda assim, Noah não falava das ondas; ele recostou-se em uma das cadeiras de couro, meio que perdido em pensamentos, à deriva em alguma correnteza particular. Depois do jantar ele saiu com uma das garotas e adormeci antes que ele voltasse.
Dolorido e todo duro, decidi dormir até tarde. Perto do amanhecer, uma porta rangeu, ouvi ruídos e vi que o Noah estava indo ao banheiro. Quando me levantei, por volta das sete da manhã, sua cama estava vazia. Fui até a sala e fiz um café, esperando encontrá-lo em frente a um prato de huevos rancheros. A única pessoa na sala era uma das garotas com quem Noah tinha feito amizade, e perguntei se ele estava no quarto “enchendo a paciência” das meninas. Ela apontou para a janela. “Noah está surfando desde que amanheceu.”
Uma pequena figura entrou em uma onda perto do pico localizado do lado de umas pedras grandes e, quando a micropessoa chegou à base dela, a crista estava bem acima de sua cabeça. Os cabelos loiros claros se destacavam contra a parede azul de água. Corri para o quarto e peguei a câmera.
Noah estava no point, em mais uma onda das grandes. Mantendo uma linha alta na onda para chegar rapidamente à sessão manobrável, ele baixou a velocidade na base da onda, deixou a crista levantar e, então, bateu forte girando a prancha – abrindo um sulco profundo na parede de água –, repetindo a manobra várias vezes até o raso. Quando ele veio em minha direção, acenei mostrando a câmera. Sem falar nada, ele veio e colocou-se ao meu lado. Fiz uma sombra no display da câmera e fui passando as imagens da sequência das manobras.
“Não estou indo tão na vertical como imaginava”, comentou.
“Nunca estamos”, respondi. “A gente vê a crista crescendo por cima da cabeça, e o cérebro nos projeta um pouco para frente, antes do gancho mais crítico.”
“Preciso resistir a isso.”
“É. Em resumo é isso mesmo.”
Ele assentiu com a cabeça. Foi quando percebi que tinha protegido os joelhos com silver tape.
“Onde você conseguiu esse silver tape?”
“De um dos caras da turma.”
“Bem pensado.”
Ele não respondeu. Seu olhar estava seguindo uma onda, e vi seus olhos traçando uma linha imaginária reta para cima, por baixo da quebra do lip. Suas narinas se abriram, e tive uma ideia do que havia mudado nele ontem. Aquela sessão havia feito ele entrar em contato com sua essência, e ao final não havia mais nada a esconder. Sua paixão havia sido despertada.
Noah virou-se e correu até o point, enquanto eu me sentava de novo na pedra.
Após algumas tentativas, ele começou a fazer com que a prancha fosse reta pela parede da onda, lutando contra o instinto de se projetar para fora e mandando uma série de legítimas batidas retas. Porém o mais impressionante é que ele estava indo fundo, escolhendo as linhas certas, nas ondas certas, o que lhe permitia explorar uma grande variedade de manobras e ultrapassar verdadeiramente o que imaginava que seriam seus limites. Eu sabia, por experiência própria, que a fé que ele encontrara hoje nunca o abandonaria.
“Essa sessão foi de mestre”, eu disse quando ele voltou para descansar um pouco.
Ele concordou, com um sorriso disfarçado.
“Valeu, pai. Obrigado por me trazer aqui e me incentivar.”
“De nada.” O sorriso se abriu por completo e ele disse: “Vou voltar para a água”.
Eu o observei trotar pela trilha, desaparecendo ao descer a escada, e lembrei do vovô me mostrando o abrigo para o burro. Claro que ele sabia que o animal pertencia a outra pessoa e que havia uma boa chance de que o proprietário me encontrasse, porém em vez de intervir me deixou ter minha própria experiência.
Noah reapareceu na areia. Caminhou à água e acompanhou a curva da baía até o point.