A lavagem de uma única jaqueta de poliéster pode lançar 1.900 pequenas microfibras sintéticas para os cursos d’água do planeta, poluindo rios e oceanos e matando a vida marinha. O que a indústria de artigos outdoor está fazendo a respeito?
Por Mary Catherine O’Connor
GREGG TREINISH não se conforma com o que tem visto saindo de sua máquina de lavar. “É chocante. Eu nunca demoro muito para limpar o filtro da máquina, e vou colocando tudo o que tiro de lá em um pote de 1 litro”, conta o fundador da Adventurers and Scientists for Conservation, uma organização norte-americana sem fins lucrativos que treina amantes da vida outdoor para coletar dados para pesquisas ambientais. Após cerca de dois meses, diz Gregg, mais de metade do pote fica cheia com um monte de porcaria que, se não fosse filtrada por ele, teria acabado diretamente nos cursos d’água da cidade.
Essas tais “porcarias” são milhares de fibras sintéticas que saem das roupas de Gregg durante os ciclos de lavagem (ele as recolhe com um filtro adicional que comprou), e o curso d’água em questão é o rio Gallatin, no estado de Montana (EUA). Gregg, cuja organização recebe o apoio de uma série de empresas de equipamentos outdoor, recentemente lançou uma campanha para rastrear o fluxo dessas fibras pela água doce. Ele pretende compartilhar esses dados com seus financiadores.
E o que há, afinal, de tão ruim em uns fiozinhos de plástico? Muita coisa. Em 2011, o ecologista britânico Mark Anthony Browne publicou um estudo no qual descreveu a descoberta de fibras sintéticas com tamanho na casa dos mícrons, a maior parte delas poliéster e acrílico, depositadas em sedimentos nas praias de vários lugares do mundo, com concentrações mais elevadas aparecendo perto de escoadouros de esgoto. Isso é um forte indício de que as microfibras vieram de roupas, um palpite que o pesquisador confirmou filtrando 1.900 fibras na água usada na lavagem de uma jaqueta de fleece. Um estudo similar feito na Universidade de Amsterdã, em 2012, estimou que os resíduos provenientes de lavagem de roupas estão jogando cerca de dois bilhões de microfibras sintéticas por segundo nas águas da Europa.
Claro que roupas de lã e algodão também soltam fibras. Mas esses materiais são biodegradáveis. Plásticos contêm aditivos potencialmente danosos e podem absorver toxinas – incluindo bifenilos policlorados (PCBs), encontrados flutuando na água do esgoto – para em seguida serem ingeridos por pequenos organismos, crustáceos e peixes. Essas partículas podem se acumular nas entranhas e tecidos dos animais, enfraquecendo seu sistema imunológico e prejudicando os sistemas endócrinos. Pouco ainda se sabe sobre como essa carga se acumula ao longo da cadeia alimentar.
Novas pesquisas têm mostrado que as microfibras são mais abundantes em lagos e rios dos Estados Unidos que, por exemplo, partículas de xampu e sabonete líquido do tipo esfoliantes (banidas em sete estados do país). “Testamos os resíduos de usinas de tratamento de esgoto e descobrimos que 85% do plástico neles contido era composto de fibras, enquanto outros fragmentos somavam apenas 13%”, diz Sherri Mason, professora de química da Universidade Estadual de Nova York.
EMBORA O POTE DE 1 LITRO DE GREGG possa não parecer grande coisa, representa uma fatia fina de uma torta incalculavelmente grande. E Gregg acredita que os fabricantes desse tipo de roupa precisam assumir logo sua responsabilidade no ciclo de poluição por microfibra. “Marcas de equipamentos outdoor estão começando a perceber a dimensão que o problema tomará assim que a notícia sobre o perigo das microfibras chegar ao grande público”, diz.
Em 2013, o ecologista Mark tentou formar uma coalizão de grandes marcas da indústria outdoor, incluindo a Patagonia e a Polartec, para rastrear as microfibras até seus fabricantes. A maioria das companhias se negou a participar do projeto, dizendo que antes queriam aprender mais sobre o problema e o quão sério era de fato o papel delas nisso tudo.
Essa é uma pergunta difícil de responder. De acordo com dados de 2010 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (a FAO), cerca de metade das roupas compradas em países desenvolvidos – e 68% nos países em desenvolvimento – é sintética. Sua casa provavelmente é enfeitada com fibras sintéticas também, dos tapetes aos forros dos sofás. Mas com que frequência você lava esses itens, em comparação com suas camisetas de poliéster, meias, jaquetas e pulôveres?
Grande parte das roupas em questão nem são esportivas, claro. Mas as marcas outdoor há muito têm dependido dos tecidos sintéticos e de suas boas características para a prática esportiva. Combinados com revestimentos e membranas químicas, eles podem ser à prova d’água e permitir boa respiração da pele. Embora a lã quente e resistente ao odor tenha recentemente passado a ser mais usada em equipamentos outdoor, a dependência do mercado em relação aos tecidos sintéticos não mudou.
Um especialista da indústria de artigos outdoor, que pediu para não ter seu nome revelado, diz que não surgiu até agora uma fibra “milagrosa” capaz, ao mesmo tempo, de servir para alta performance e ser ambientalmente benigna. O algodão cultivado do jeito tradicional, por exemplo, precisa de muito mais água para ser produzido que os tecidos sintéticos. Além disso, ocupa bastante espaço para ser plantado e depende de fertilizantes e agrotóxicos. Alguns fabricantes, ambientalistas e cientistas, incluindo Mark, sugerem que a indústria de eletrodomésticos deveria arcar com parte da responsabilidade, já que máquinas de lavar não filtram direito partículas pequenas. Filtros instaláveis como o que Gregg usa, projetados para impedir que fiapos caiam em tanques sépticos (que atuam como um decantador primário de esgoto, filtrando sedimentos mais sólidos), também não conseguem segurar as fibras menores.
A COMUNIDADE DE EQUIPAMENTOS OUTDOOR está começando a olhar para si mesma. O Outdoor Industry Association’s Sustainability Working Group, um grupo de estudos sobre sustentabilidade da poderosa organização norte-americana de 250 empresas do setor, começou a examinar a questão, com cooperação de especialistas em detritos marinhos da ONG Ocean Conservancy. A pesquisa ainda está engatinhando, admite Beth Jensen, diretora de responsabilidade corporativa da Outdoor Industry Association. “Não dá para mobilizar uma indústria em torno de um tema até termos todos os fatos e informações em mãos”, diz ela. “Mas nós reconhecemos a urgência a respeito das microfibras, e queremos seguir adiante rumo a uma solução.”
Dentre as marcas mais famosas, a Patagonia foi a que deu mais passos concretos nessa direção. Embora tenha recusado o pedido de Mark Browne para trabalhar em parceria com ele, a empresa está colaborando com a Universidade da Califórnia para identificar quais materiais sintéticos em sua cadeia de produtos soltam fibras. “Tudo que aprendemos com esse projeto será informação útil”, diz Adam Fetcher, diretor de comunicação da Patagonia. “Independentemente de descobrirmos que somos parte do problema ou não.”
Outras marcas contactadas por esta reportagem, como a Polartec e a The North Face, se negaram a responder os pedidos de entrevista. A Columbia Sportswear, alvo de uma petição online criada por iniciativa do grupo antiplásticos Story of Stuff, deu a seguinte declaração: “A Columbia está nos estágios iniciais da revisão da pesquisa inicial do Dr. Mark Browne. E continuaremos com nosso envolvimento no grupo de sustentabilidade da Outdoor Industry Association”.
Por enquanto, o progresso mais significativo está ocorrendo na Europa. Lá existe um novo consórcio de pesquisa chamado Mermaids (Sereias), patrocinado pela Comissão Europeia e promovido pela ONG Plastic Soup, da Holanda, dedicada a reduzir a poluição de microfibras em 70%. O primeiro passo do grupo é identificar os piores culpados. Mark e outros pesquisadores estão trabalhando para desenvolver um processo que possa rastrear um fio de poliéster ou náilon até seu ponto de origem por meio da identificação de uma “impressão digital” deixada pelos corantes e produtos químicos da fabricação. Os plásticos em implantes médicos passam por uma série de certificações antes de serem usados em corpos humanos, diz Mark. Por que os plásticos de produtos de consumo não deveriam passar por testes igualmente rigorosos para determinar seu impacto sobre ecossistemas aquáticos?
Provavelmente será um longo caminho até isso acontecer. “Eu moro no Maine [estado norte-americano onde faz muito frio], não iria conseguir viver sem fleece”, diz Kara Lavender Law, pesquisadora de microplásticos da instituição de ensino de assuntos ligados ao oceano chamada Sea Education Association. “A grande questão é: onde deveríamos usar plástico? É um material claramente útil a nossa sociedade, mas talvez seja hora de reconsiderar a lã e outros materiais que foram substituídos por sintéticos.”
Nesse meio tempo, os cientistas-cidadãos treinados por Gregg Treinish começarão neste mês a pesquisar as águas do estado de Montana, com tubos de coleta de amostra nas mãos. Nenhum deles, diz Gregg, usará fleece ou fibras sintéticas durante os trabalhos.
Água suja
A pesquisadora norte-americana Abigail Barrows está estudando amostras de águas tiradas dos oceanos de várias partes do mundo por integrantes da Adventurers and Scientists for Conservation. Quase todas contêm plásticos
426
Amostras de um litro cada foram pesquisadas por Abigail.
94%
Continham algum tipo de microplástico.
84%
Dos microplásticos eram microfibras.
316
Pedaços de microplásticos foram encontrados em uma só amostra do oceano Atlântico do Norte.
98%
Dos microplásticos dessa amostra eram microfibras.
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Matéria publicada originalmente na Go Outside 125, de dezembro de 2015.
PEQUENO GRANDE PROBLEMA: Fibras nocivas encontram os oceanos do mundo todo
(Ilustração: Laszlo Kubinyi)