Quem quer domar Nazaré?

quarentena go outside

O surfista norte-americano Garrett McNamara reúne big riders de peso no primeiro campeonato na onda gigante mais falada do momento, em Portugal

Por Kevin Damasio

O NORTE-AMERICANO GARRETT MCNAMARA mantém viva a memória de quando parou pela primeira vez no farol do Forte de São Miguel Arcanjo, em Portugal, no outono de 2010. Uma tempestade castigava Nazaré, vilarejo de 15 mil habitantes que fica 120 km ao norte de Lisboa. O barulho das montanhas de água salgada que quebravam ali misturava-se ao som da ventania e da chuva intensa. “Eram as maiores ondas que eu já havia visto”, recorda o surfista de 48 anos. Especializado em domar ondas gigantescas em sua carreira, ele reconheceu de imediato o potencial daquele pico. Primeiro desbravou o enorme mar, para logo depois sentir um imenso alívio por não ter tomado nenhuma vaca.


BOMBÁSTICO: Maya Gabeira enfrenta Nazaré em 2015 (Fotos: Hugo Silva, Red Bull Content Pool)

O big rider tinha ido a Nazaré a convite do prefeito Jorge Barroso. Os governantes portugueses cogitavam fomentar o turismo local por meio do surf e se perguntavam se essas ondas, até então apenas aproveitadas apenas por bodyboarders, permaneceriam surfáveis também nos dias de swells gigantes. “Eles queriam saber se era possível fazer um campeonato no local, mas percebi que seria perigoso demais competir lá. Porque um surfista instigaria o outro a pegar mais pesado e a se arriscar em ondas cada vez mais sinistras”, lembra. “Seria bem melhor trabalhar em equipe e, assim, manter o máximo de segurança possível.”

Com esse pensamento em mente, Garrett criou o Red Chargers, o primeiro campeonato de ondas grandes em Nazaré. Com transmissão ao vivo, o evento acontecerá toda vez que uma ondulação grande bater na costa da praia do Norte, em uma janela de tempo entre 3 de novembro e 29 de fevereiro – a primeira session rolou no dia 11 de novembro.

Trata-se de um evento fora dos moldes das principais disputas atuais do big surf, que são chanceladas pela World Surf League. No Circuito Mundial da modalidade (BWWT), por exemplo, há uma janela de seis meses para os picos de cada Hemisfério, mas as etapas costumam durar apenas um dia. E enquanto no Big Wave Awards (ex-XXL Awards e considerado o “Oscar das ondas grandes”) os vencedores são definidos por um júri técnico, no Red Chargers os finalistas serão eleitos pelos fãs, em votação online. Depois, será a vez de os próprios surfistas participantes elegerem os vencedores em cada categoria: excellence (que elege a melhor onda em tow-in, em que o surfista é transportado por um jet ski), resilience (que premia a “vaca” mais sinistra), brotherhood (trabalho em equipe), courage (resgate), perseverance (bomba surfada na remada) e portuguese performance (melhor local).


PARCERIA: Com Carlos Burle, seu companheiro de tow-in

CINCO ANOS ANTES de desafiá-la, Garrett viu pela primeira vez uma foto de Nazaré, enviada pelo bodyboarder local Dino Casimiro. Desde então, o big rider vinha monitorando cada tempestade que marchava em direção à costa portuguesa. Garrett já estava acostumado a viver situações extremas. Aos 16, quatro anos depois de se mudar com a família para o Havaí, ele se jogava em seus primeiros mares pesados do North Shore de Oahu. Em 2003 e 2007, consolidou-se como um renomadíssimo big rider ao ganhar o XXL Awards na categoria Performance do Ano.

Entretanto a experiência em Nazaré revelou-se algo inédito para Garrett. Em quatro anos, ele já viveu no pico suas maiores glórias e pesadelos. “Imprevisível” é a palavra que ele escolhe para classificar a praia do Norte. “Lá podem rolar tubos perfeitos e limpos de 6 pés ou bombas de 90 pés.” As ondas gigantes surgem a partir de um raro acidente geomorfológico chamado Canhão de Nazaré. A 500 metros da praia, junto à Pedra do Guilhim, uma falha na placa continental estende-se por 170 km e desce por 5 km de profundidade – o maior fenômeno do tipo na Europa. Com isso, as ondulações correm pelo oceano Atlântico à toda velocidade, sem interrupção, até atingirem a fissura e formarem as tais montanhas d’água.

Na manhã do dia 1º de novembro de 2011, o maior swell até o momento chegou ao pico. Na companhia do big rider inglês Andrew Cotton e do irlandês Al Mennie, Garrett mostrou Nazaré para o mundo com a maior onda já surfada na história, calculada em 78 pés (cerca de 23 metros).

Apesar do recorde quebrado, a morra portuguesa demorou para cair nas graças de boa parte dos big riders. Em 18 de janeiro de 2013, Garrett pegou uma onda ainda maior, que entrou para o XXL Awards. Mas logo ele se retirou do prêmio, diante de comentários negativos dentro da comunidade do surf que diziam que “a onda não tinha quebrado” e ele “não descera até a base”. Por quatro anos, Garrett surfou praticamente sozinho ali na maior parte do tempo. “Hoje o pico é carregado de surfistas de todos os cantos do mundo”, conta o norte-americano.

Na visão de Garrett, Nazaré levou o surf como um todo para milhões de pessoas que antes nunca haviam se interessado pelo esporte. No final do mesmo ano em que o big rider domou o maior mar já visto, Nazaré recuperou o foco dos noticiários, desta vez com protagonismo brasileiro.

Na manhã de 28 de outubro de 2013, as ondas estavam sobrenaturais em Nazaré. Alguns big riders afirmam ter visto séries de 100 pés (30 metros) quebrando solitárias. Maya Gabeira, Carlos Burle, Felipe Cesarano, Pedro Scooby, Rodrigo Koxa e Sylvio Mancusi, estreantes no pico, representavam o Brasil e haviam se destacado nos dias anteriores. Logo cedo, Burle e Maya protagonizaram o pior e mais intenso momento vivido na praia do Norte: um acidente que fez com que as medidas de segurança para surfar ali fossem reforçadas. Maya caiu quando dropava uma onda gigante, tomou várias morras na cabeça e por pouco foi resgatada com vida por Burle. “Eu gosto muito de Nazaré. Mas é algo bem intenso”, define Maya, sobre sua relação com o lugar.


VEM NI MIM: O note-americano Garrett McNamara se divertindo em Nazaré, em 2014 (Foto: Jeff Flindt/Red Bull
Content Pool)

A DUPLA BRASILEIRA voltou para Nazaré no outono deste ano. Os mares grandes que pegaram espantaram o fantasma do acidente. Desta vez, a estrutura para as sessões foi encorpada. Agora, são dois jet-skis para resgate. As pranchas estão melhores e as roupas de borracha adquiriram mais flutuação. Na praia, um time de primeiros-socorros com oxigênio fica de olho nos surfistas, assim como um spotter – o cara que observa tudo de cima do penhasco – e outra pessoa no quadriciclo, e todos se comunicam por rádio. “Acho que a primeira coisa que a pessoa percebe aqui é que não é só o tamanho do mar”, analisa Burle. “Se você cair, vai apanhar bastante, porque a onda quebra com muita força e violência.”

Burle acredita que o Red Chargers trará o devido prestígio para o pico. “Nazaré é uma onda que merece ser celebrada, porque não é fácil – e tem provado isso ao longo dos anos”, diz. “A onda não dá tanto espaço para performance, mas é a melhor do mundo para você treinar suas habilidades, coragem e domínio na prancha.”

São justamente histórias de superação como a de Maya e Burle que Garrett McNamara espera inspirar nos 118 dias do Red Chargers. “Surfistas de ondas grandes são algumas das pessoas mais apaixonadas e apaixonantes que já conheci, com incríveis histórias de sacrifício e determinação”, observa o norte-americano. “Acredito que, ao contá-las, tornaremos eles mais humanos e, com isso, conseguiremos inspirar o mundo a seguir seus sonhos também.”

Década de gigantes

Os fatos que colocaram Nazaré definitivamente na história do big surf

2005

O bodyboarder local Dino Casimiro envia para Garrett McNamara uma foto de uma onda gigante em Nazaré. Até então, a onda só era surfada em dias menores.

Outuno de 2010

Convidado pelos governantes portugueses, Garrett sobrevive à primeira sessão de tow-in na praia do Norte, ao lado de Andrew Cotton e Al Mennie.

Novembro de 2011

Garrett dropa a maior onda já surfada na história, estimada em 78 pés (23 metros), que lhe rendeu o prêmio do XXL Awards 2012.

Janeiro de 2013

Garrett pega uma onda ainda maior em outro swell gigante, mas desiste de concorrer ao XXL, diante de comentários negativos de que “a onda não quebrou”.

Outubro de 2013

Na estreia em Nazaré, Maya Gabeira escapa da morte após uma vaca sinistra. Depois de resgatá-la e levá-la ao hospital, Carlos Burle volta para o outside e pega a mais pesada do dia, que o fez finalista de Maior Onda no XXL 2014.

Dezembro de 2014

O big rider alemão Sebastian Steudtner surfa a montanha do swell de inverno. Meses depois, conquista o prêmio de Maior Onda do XXL 2015 por essa bomba.