Por Fernanda Beck, de Mato Grosso do Sul DIA 13 DE NOVEMBRO, sexta-feira de muito calor em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, quase divisa com a Bolívia. Em um grande saguão localizado no Sesc de Corumbá, na região portuária da cidade, 32 equipes brasileiras e internacionais fazem seus últimos preparativos antes de embarcarem em dois navios da Marinha para aquela que seria uma das provas mais desafiadora de suas vidas: o Adventure Race World Championship, grande final do circuito mundial de corrida de aventura, realizada pela primeira vez no Brasil e batizada aqui de Pantanal Pro.
Dentro de enormes caixas de equipamentos e mochilas abarrotavam-se mountain bikes, remos, roupas, comida e água, a serem carregados estrategicamente ao longo de um duríssimo percurso de 715 km. Em no máximo sete dias, os atletas precisariam atravessar muito mato, rios e montanhas, incluindo a região da serra do Amolar, que permanece alagada o ano inteiro e possui essa formação rochosa que é a mais impactante do Pantanal.
O clima era de apreensão e ansiedade: ainda seria preciso enfrentar 12 horas no barco antes de os atletas chegarem a Jatobazinho, local da largada, no dia seguinte. Em meio ao caos de equipos e rostos ansiosos, um homem se sobressaía, com expressão altiva, calma e imponente: Nathan Fa’avae, de 43 anos, o capitão da equipe neozelandesa Seagate. Três vezes campeão do Adventure Race World Championship (duas com a própria Seagate, em 2012 e 2014, e uma na equipe Balance Vector, em 2005), Nate, como é conhecido, transborda a confiança de quem já leva na bagagem 16 anos participando das competições mais casca grossa da história da corrida de aventura.
Na véspera do início do evento, seu único desejo era começar logo a competir: “Cobrir 700 km em qualquer terreno é uma tarefa árdua. E aqui estaremos com os pés molhados e sofrendo com o calor o tempo inteiro. Mas viemos mentalmente preparados para isso. Houve muito planejamento, e agora já não penso em mais nada: só quero largar”. Ele diz isso com voz calma, de quem sabe o que quer e o que terá de enfrentar nos próximos dias para conseguir seus objetivos.
Com metade de sua carga genética samoense, Nate é o arquétipo do atleta invencível: alto, forte, grande e carismático, com traços marcantes no rosto de pele marrom escura, típica dos povos das ilhas do Pacífico. Liderando a Seagate – que ele próprio montou em 2001, na Nova Zelândia, depois de receber um “sim” ao pedido de patrocínio que enviou à empresa homônima de armazenamento digital –, Nate puxou seus integrantes para a ponta da competição pantaneira desde a primeira etapa, um intenso remo de 50 km contra a correnteza do rio Paraguai. “Remar rio acima foi terrível, fez muito calor quando estávamos no barco. Pareciam as chamas do inferno”, contou depois. A partir daí, sua equipe se manteve tão isolada na liderança que não encontrou mais nenhum time rival até a linha de chegada.
Desde o começo, o intuito dos kiwis (como são chamados os neozelandeses) era claro: abocanhar o primeiro lugar no pódio. “Viemos para ganhar. Não nos contentaremos com nada além da vitória”, decretou o líder. A frase não soa arrogante na boca desse atleta ultraexperiente. Aos 16 anos, Nate começou a correr maratonas e completou seu primeiro triathlon de resistência um ano depois. Ainda na adolescência, passou a representar seu país em competições de mountain bike, antes de migrar para as corridas multiesportes e se profissionalizar, em 1999.
A partir daí, o moço inaugurou sua coleção de títulos nas maiores competições do mundo, como a Expedition (campeão na África, em 2014, e vice nos EUA, em 2011), o EcoChallenge (campeão em Fiji e vice na Nova Zelândia, em 2002 e 2001, respectivamente) e a Godzone, em sua terra natal, na qual é tetracampeão. Em 1999, foi diagnosticado com fibrilação atrial, uma arritmia cardíaca que pode levar a complicações graves, como edemas pulmonares. Nate se submeteu a duas cirurgias para consertar o problema, em 2005 e novamente em 2014 – paradoxalmente, anos em que ele viria a ganhar os mundiais de corrida de aventura.
A TRAJETÓRIA DE NATE é tão impressionante que poderia virar um livro, e ele percebeu esse apelo. Sua autobiografia, Adventurer at Heart (Coração de Aventureiro, em tradução livre, sem previsão de lançamento no Brasil) foi lançada em novembro deste ano. A obra conta como o atleta se consagrou tricampeão mundial (agora tetra, depois da vitória no Pantanal) em um esporte que muitas vezes exige que os participantes literalmente dêem o sangue para conseguir completar o percurso.
A corrida de aventura mistura etapas non-stop de trekking, bike, canoagem e técnicas verticais. Além da fadiga física extrema, há incontáveis perrengues: noites sem dormir, pele em carne viva, bolhas gigantescas nas mãos e nos pés, centenas de picadas de insetos, risco de topar com animais selvagens e perder-se por horas a fio na mata, muitas vezes sem água e com pouca ou nenhuma comida. O desgaste mental é tão grande quanto o físico. O cansaço e a confusão que vêm de pouquíssimas horas de sono e muito esforço podem provocar erros “bobos” de orientação, já que as equipes têm que achar seu caminho sem GPS, usando apenas bússolas e mapas.
Capitão experiente, Nate sabe que é preciso manter o foco a cada quilômetro percorrido. Para isso, sua equipe tem de funcionar em sintonia. “Sempre cuidamos uns dos outros. Também é fundamental que a comunicação entre nós seja aberta e eficiente”, explica. A neozelandesa Sophie Hart, que já disputou outras 15 provas sob a liderança de Nate e integrou o time neozelandês no Pantanal, dá todo o crédito ao líder: “Ele é o tipo de capitão que sempre conversa com o time na hora de tomar decisões. Também é muito competente na parte de estratégia; nos ajuda a focar no que precisamos fazer e a não nos preocuparmos com os outros times. É uma baita honra competir a seu lado”. Completando a equipe kiwi, estavam Chris Forne e Stu Lynch.
No Pantanal Pro – em que, além das modalidades “tradicionais”, as equipes tiveram também que enfrentar trechos de pack-rafting, modalidade em que os atletas carregam um bote inflável em uma mochila, usando-o quando necessário – as condições revelaram-se ainda mais duras do que às quais Nate e sua equipe estão acostumados. Um calor inclemente assolou os competidores durante quase todo o percurso, com temperaturas anormalmente quentes para a época, com médias por volta de 38°C e picos de 41°C. A navegação em terras planas e alagadas, sem qualquer ponto de referência para facilitar a orientação, também teve seu lugar entre os grandes desafios do evento. Por conta disso, a prova sofreu alterações de percurso para que fosse possível manter a duração dentro do tempo disponível.
“Acho que desenhei a prova pensando na Seagate, o que acabou deixando o percurso bem puxado”, brincou Silvia “Shubi” Guimarães, atleta de aventura e diretora técnica do evento. Devido às dificuldades de terreno e clima, as etapas do Pantanal Pro se estenderam um pouco além do previsto – a própria Seagate tinha planejado terminar a corrida em no máximo seis dias, mas levou sete –, o que apertou as provisões de comida preparadas pelas equipes. Entretanto isso não foi o suficiente para abalar Nate e seus companheiros. Seriam os neozelandeses mais duros na queda que outros aventureiros? Ele diz que sim: “Os neozelandeses são muito adaptáveis, bons em sobreviver em ambientes selvagens, conseguem se virar com pouco. E nós, como corredores de aventura, estamos mais do que acostumados a passar longos períodos sem comida, especialmente fora de países desenvolvidos. É diferente de correr nos Estados Unidos, por exemplo, quando sempre há um McDonald’s 24 horas por perto”, brincou.
A carreira repleta de sucessos de Nate, no entanto, está quase no fim: após cruzar a linha de chegada, ele confirmou os rumores de que o mundial no Pantanal foi sua última grande competição como atleta profissional. “Sem dúvida esta edição se mostrou a prova mais difícil que já corri. Em muitos momentos detestei estar ali, mas muitas partes foram épicas e sensacionais. Foi o ápice da aventura e da expedição, e nossa equipe saiu vitoriosa. Sinto-me realizado!”
Em 2005, Nate já tinha anunciado uma pausa nas corridas profissionais, porém voltou às trilhas em 2009. Hoje, aos 43 anos, a situação é diferente, como explica a australiana Louise Foulkes, diretora da ARWS (Circuito Mundial de Corrida de Aventura, na sigla em inglês), que estava no Pantanal para acompanhar a prova. “Na idade dele, é quase impossível que Nate volte a competir nesse nível novamente, caso pare e decida retornar”, diz ela. E o monstro kiwi concorda: “Acho que, a partir de agora, a equipe correrá mais rápido sem mim”. Se este foi mesmo o ponto final na carreira de Nathan Fa’avae, a conquista de seu tetracampeonato e a defesa do título pela bicampeã Seagate, em meio a uma natureza desafiadora, acabaram sendo uma despedida espetacular de uma trajetória esportiva formada por grandes e inesquecíveis momentos. A corrida de aventura agradece.
Prata da casa
Os brasileiros suaram, se ralaram e deram o sangue no mundial mato-grossense
Em meio às 32 equipes que encararam os inúmeros perrengues da Pantanal Pro, havia 17 nacionalidades. O Brasil foi bem representado por 11 times que levaram a bandeira nacional no uniforme. Competindo em casa, os atletas canarinhos penaram com as mesmas dificuldades que atrasaram as equipes gringas: quilometragem duríssima, calor intenso e navegação trabalhosa navegação em terras planas. “Com certeza foi uma das provas mais difíceis de que já participei”, diz o experientíssimo Rafael Campos, capitão da equipe Kailash Quasar Lontra, a brasileira melhor colocada na disputa, com o 11o lugar. “Mas foi um prazer enorme estar no Pantanal e passar por lugares em que ninguém esteve antes.”
A paulista Tessa Roorda integrou a equipe espanhola Columbia Oncosec, 4a colocada, e o brasiliense Guilherme Pahl fez parte da equipe inglesa Godzone Expedicion Guarani, 7o lugar. As brasileiras Brou Aventuras e a Enigma Papaventuras completaram a presença nacional entre as 15 melhores colocadas, com a 13ª e 14ª posições, respectivamente. Nenhum time brasuca, porém, completou o percurso originalmente proposto – por uma decisão da organização, um total de 16 equipes foi transportado de avião por um trecho de 113 quilômetros para manter o cronograma oficial e garantir a segurança dos atletas.
Fotos Alexandre Cappi
LENDA VIVA: O neozelandês Natha Fa’avae, líder da equipe Seagate,
que venceu o mundial no Pantanal (Todas as fotos: Alexandre Cappi)
CENAS PANTANEIRAS: 1. Um dos barcos da Marinha que levou os atletas até a linha de largada
CENAS PANTANEIRAS: 2. No Amolar, o pôr-do-sol é de tirar o fôlego
CENAS PANTANEIRAS: 3. Um baguari levanta voo
CENAS PANTANEIRAS: 4. a Seagate durante etapa de mountain bike
NA LAMA: Uma das equipes atravessa pântano durante etapa de trekking do Pantanal Pro
SEM TEMPO RUIM: O paredão enfrentado pelos competidores
NOITE ADENTRO: Os integrantes da Seagate se preparam para encarar o rapel