A despedida do monstro

Por Fernanda Beck, de Mato Grosso do Sul
Fotos Alexandre Cappi

DIA 13 DE NOVEMBRO, sexta-feira de muito calor em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, quase divisa com a Bolívia. Em um grande saguão localizado no Sesc de Corumbá, na região portuária da cidade, 32 equipes brasileiras e internacionais fazem seus últimos preparativos antes de embarcarem em dois navios da Marinha para aquela que seria uma das provas mais desafiadora de suas vidas: o Adventure Race World Championship, grande final do circuito mundial de corrida de aventura, realizada pela primeira vez no Brasil e batizada aqui de Pantanal Pro.


LENDA VIVA: O neozelandês Natha Fa’avae, líder da equipe Seagate,
que venceu o mundial no Pantanal (Todas as fotos:
Alexandre Cappi)

Dentro de enormes caixas de equipamentos e mochilas abarrotavam-se mountain bikes, remos, roupas, comida e água, a serem carregados estrategicamente ao longo de um duríssimo percurso de 715 km. Em no máximo sete dias, os atletas precisariam atravessar muito mato, rios e montanhas, incluindo a região da serra do Amolar, que permanece alagada o ano inteiro e possui essa formação rochosa que é a mais impactante do Pantanal.

O clima era de apreensão e ansiedade: ainda seria preciso enfrentar 12 horas no barco antes de os atletas chegarem a Jatobazinho, local da largada, no dia seguinte. Em meio ao caos de equipos e rostos ansiosos, um homem se sobressaía, com expressão altiva, calma e imponente: Nathan Fa’avae, de 43 anos, o capitão da equipe neozelandesa Seagate. Três vezes campeão do Adventure Race World Championship (duas com a própria Seagate, em 2012 e 2014, e uma na equipe Balance Vector, em 2005), Nate, como é conhecido, transborda a confiança de quem já leva na bagagem 16 anos participando das competições mais casca grossa da história da corrida de aventura.


CENAS PANTANEIRAS: 1. Um dos barcos da Marinha que levou os atletas até a linha de largada

Na véspera do início do evento, seu único desejo era começar logo a competir: “Cobrir 700 km em qualquer terreno é uma tarefa árdua. E aqui estaremos com os pés molhados e sofrendo com o calor o tempo inteiro. Mas viemos mentalmente preparados para isso. Houve muito planejamento, e agora já não penso em mais nada: só quero largar”. Ele diz isso com voz calma, de quem sabe o que quer e o que terá de enfrentar nos próximos dias para conseguir seus objetivos.


CENAS PANTANEIRAS: 2. No Amolar, o pôr-do-sol é de tirar o fôlego

Com metade de sua carga genética samoense, Nate é o arquétipo do atleta invencível: alto, forte, grande e carismático, com traços marcantes no rosto de pele marrom escura, típica dos povos das ilhas do Pacífico. Liderando a Seagate – que ele próprio montou em 2001, na Nova Zelândia, depois de receber um “sim” ao pedido de patrocínio que enviou à empresa homônima de armazenamento digital –, Nate puxou seus integrantes para a ponta da competição pantaneira desde a primeira etapa, um intenso remo de 50 km contra a correnteza do rio Paraguai. “Remar rio acima foi terrível, fez muito calor quando estávamos no barco. Pareciam as chamas do inferno”, contou depois. A partir daí, sua equipe se manteve tão isolada na liderança que não encontrou mais nenhum time rival até a linha de chegada.


CENAS PANTANEIRAS: 3. Um baguari levanta voo

Desde o começo, o intuito dos kiwis (como são chamados os neozelandeses) era claro: abocanhar o primeiro lugar no pódio. “Viemos para ganhar. Não nos contentaremos com nada além da vitória”, decretou o líder. A frase não soa arrogante na boca desse atleta ultraexperiente. Aos 16 anos, Nate começou a correr maratonas e completou seu primeiro triathlon de resistência um ano depois. Ainda na adolescência, passou a representar seu país em competições de mountain bike, antes de migrar para as corridas multiesportes e se profissionalizar, em 1999.


CENAS PANTANEIRAS: 4. a Seagate durante etapa de mountain bike

A partir daí, o moço inaugurou sua coleção de títulos nas maiores competições do mundo, como a Expedition (campeão na África, em 2014, e vice nos EUA, em 2011), o EcoChallenge (campeão em Fiji e vice na Nova Zelândia, em 2002 e 2001, respectivamente) e a Godzone, em sua terra natal, na qual é tetracampeão. Em 1999, foi diagnosticado com fibrilação atrial, uma arritmia cardíaca que pode levar a complicações graves, como edemas pulmonares. Nate se submeteu a duas cirurgias para consertar o problema, em 2005 e novamente em 2014 – paradoxalmente, anos em que ele viria a ganhar os mundiais de corrida de aventura.

A TRAJETÓRIA DE NATE é tão impressionante que poderia virar um livro, e ele percebeu esse apelo. Sua autobiografia, Adventurer at Heart (Coração de Aventureiro, em tradução livre, sem previsão de lançamento no Brasil) foi lançada em novembro deste ano. A obra conta como o atleta se consagrou tricampeão mundial (agora tetra, depois da vitória no Pantanal) em um esporte que muitas vezes exige que os participantes literalmente dêem o sangue para conseguir completar o percurso.


NA LAMA: Uma das equipes atravessa pântano durante etapa de trekking do Pantanal Pro

A corrida de aventura mistura etapas non-stop de trekking, bike, canoagem e técnicas verticais. Além da fadiga física extrema, há incontáveis perrengues: noites sem dormir, pele em carne viva, bolhas gigantescas nas mãos e nos pés, centenas de picadas de insetos, risco de topar com animais selvagens e perder-se por horas a fio na mata, muitas vezes sem água e com pouca ou nenhuma comida. O desgaste mental é tão grande quanto o físico. O cansaço e a confusão que vêm de pouquíssimas horas de sono e muito esforço podem provocar erros “bobos” de orientação, já que as equipes têm que achar seu caminho sem GPS, usando apenas bússolas e mapas.

Capitão experiente, Nate sabe que é preciso manter o foco a cada quilômetro percorrido. Para isso, sua equipe tem de funcionar em sintonia. “Sempre cuidamos uns dos outros. Também é fundamental que a comunicação entre nós seja aberta e eficiente”, explica. A neozelandesa Sophie Hart, que já disputou outras 15 provas sob a liderança de Nate e integrou o time neozelandês no Pantanal, dá todo o crédito ao líder: “Ele é o tipo de capitão que sempre conversa com o time na hora de tomar decisões. Também é muito competente na parte de estratégia; nos ajuda a focar no que precisamos fazer e a não nos preocuparmos com os outros times. É uma baita honra competir a seu lado”. Completando a equipe kiwi, estavam Chris Forne e Stu Lynch.


SEM TEMPO RUIM: O paredão enfrentado pelos competidores

No Pantanal Pro – em que, além das modalidades “tradicionais”, as equipes tiveram também que enfrentar trechos de pack-rafting, modalidade em que os atletas carregam um bote inflável em uma mochila, usando-o quando necessário – as condições revelaram-se ainda mais duras do que às quais Nate e sua equipe estão acostumados. Um calor inclemente assolou os competidores durante quase todo o percurso, com temperaturas anormalmente quentes para a época, com médias por volta de 38°C e picos de 41°C. A navegação em terras planas e alagadas, sem qualquer ponto de referência para facilitar a orientação, também teve seu lugar entre os grandes desafios do evento. Por conta disso, a prova sofreu alterações de percurso para que fosse possível manter a duração dentro do tempo disponível.

“Acho que desenhei a prova pensando na Seagate, o que acabou deixando o percurso bem puxado”, brincou Silvia “Shubi” Guimarães, atleta de aventura e diretora técnica do evento. Devido às dificuldades de terreno e clima, as etapas do Pantanal Pro se estenderam um pouco além do previsto – a própria Seagate tinha planejado terminar a corrida em no máximo seis dias, mas levou sete –, o que apertou as provisões de comida preparadas pelas equipes. Entretanto isso não foi o suficiente para abalar Nate e seus companheiros. Seriam os neozelandeses mais duros na queda que outros aventureiros? Ele diz que sim: “Os neozelandeses são muito adaptáveis, bons em sobreviver em ambientes selvagens, conseguem se virar com pouco. E nós, como corredores de aventura, estamos mais do que acostumados a passar longos períodos sem comida, especialmente fora de países desenvolvidos. É diferente de correr nos Estados Unidos, por exemplo, quando sempre há um McDonald’s 24 horas por perto”, brincou.


NOITE ADENTRO: Os integrantes da Seagate se preparam para encarar o rapel

A carreira repleta de sucessos de Nate, no entanto, está quase no fim: após cruzar a linha de chegada, ele confirmou os rumores de que o mundial no Pantanal foi sua última grande competição como atleta profissional. “Sem dúvida esta edição se mostrou a prova mais difícil que já corri. Em muitos momentos detestei estar ali, mas muitas partes foram épicas e sensacionais. Foi o ápice da aventura e da expedição, e nossa equipe saiu vitoriosa. Sinto-me realizado!”

Em 2005, Nate já tinha anunciado uma pausa nas corridas profissionais, porém voltou às trilhas em 2009. Hoje, aos 43 anos, a situação é diferente, como explica a australiana Louise Foulkes, diretora da ARWS (Circuito Mundial de Corrida de Aventura, na sigla em inglês), que estava no Pantanal para acompanhar a prova. “Na idade dele, é quase impossível que Nate volte a competir nesse nível novamente, caso pare e decida retornar”, diz ela. E o monstro kiwi concorda: “Acho que, a partir de agora, a equipe correrá mais rápido sem mim”. Se este foi mesmo o ponto final na carreira de Nathan Fa’avae, a conquista de seu tetracampeonato e a defesa do título pela bicampeã Seagate, em meio a uma natureza desafiadora, acabaram sendo uma despedida espetacular de uma trajetória esportiva formada por grandes e inesquecíveis momentos. A corrida de aventura agradece.

Prata da casa

Os brasileiros suaram, se ralaram e deram o sangue no mundial mato-grossense

Em meio às 32 equipes que encararam os inúmeros perrengues da Pantanal Pro, havia 17 nacionalidades. O Brasil foi bem representado por 11 times que levaram a bandeira nacional no uniforme. Competindo em casa, os atletas canarinhos penaram com as mesmas dificuldades que atrasaram as equipes gringas: quilometragem duríssima, calor intenso e navegação trabalhosa navegação em terras planas. “Com certeza foi uma das provas mais difíceis de que já participei”, diz o experientíssimo Rafael Campos, capitão da equipe Kailash Quasar Lontra, a brasileira melhor colocada na disputa, com o 11o lugar. “Mas foi um prazer enorme estar no Pantanal e passar por lugares em que ninguém esteve antes.”

A paulista Tessa Roorda integrou a equipe espanhola Columbia Oncosec, 4a colocada, e o brasiliense Guilherme Pahl fez parte da equipe inglesa Godzone Expedicion Guarani, 7o lugar. As brasileiras Brou Aventuras e a Enigma Papaventuras completaram a presença nacional entre as 15 melhores colocadas, com a 13ª e 14ª posições, respectivamente. Nenhum time brasuca, porém, completou o percurso originalmente proposto – por uma decisão da organização, um total de 16 equipes foi transportado de avião por um trecho de 113 quilômetros para manter o cronograma oficial e garantir a segurança dos atletas.







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