Enquanto ondas e mais ondas de refugiados da África e do Oriente Médio se lançam no Mediterrâneo em barcos superlotados em busca de uma chance de sobreviver ao caos em seus países, um jovem milionário norte-americano e sua esposa italiana partem para o mar para salvá-los
Por Joshua Hammer
TRÊS DIAS APÓS embarcar no MV Phoenix, um barco de resgate de 131 pés, em Augusta, na Sicília, eu me encontrava no convés superior do navio em um amanhecer quente de junho. Observava as hélices de um drone Camcopter S-100 com listras azuis e laranja começarem a se mover. Estávamos algumas milhas a sudeste do Bouri Offshore Field, um conjunto de poços e plataformas de perfuração de petróleo em águas profundas de propriedade conjunta de uma empresa italiana e do governo da Líbia, no coração do Mar Mediterrâneo. Iluminado na escuridão por chamas de gás natural e com intenso tráfego de navios da marinha, embarcações mercantes e barcos de manutenção, o campo de petróleo se tornou um ponto de apoio para refugiados que escapam pelo oceano fugindo da guerra e da pobreza da Síria e da África subsaariana. No ano passado, 219 mil pessoas cruzaram o Mediterrâneo em frágeis barquinhos de pesca e botes abertos – uma enorme frota organizada por contrabandistas na desregrada costa da Líbia. Na tentativa desesperada de chegar à Europa, milhares de refugiados já morreram afogados durante a perigosa travessia.
O Phoenix chegara à região de Bouri na noite anterior, após navegar por 30 horas partindo da costa leste da Sicília. Agora havíamos entrado em uma fase de patrulhamento. Esperávamos ou por uma chamada do Centro de Coordenação de Resgate Marítimo (MRCC), em Roma, liderado pela guarda costeira italiana, ou por um contato visual com um dos barcos de refugiados, via um dos drones do Phoenix. Como esses barcos não são aptos a navegar em alto mar, e as condições a bordo são precárias, o MRCC instrui embarcações equipadas para resgate a interceptar os imigrantes assim que eles saem da costa da Líbia e a transportá-los para o sul da Itália, o país mais próximo que pode aceitá-los. Lá, permanecerão em centros de detenção enquanto seu pedido de asilo político é processado pelas autoridades locais.
“Consideramos que um barco superlotado está sempre em perigo iminente”, dissera-me mais cedo Christopher Catrambone, um empresário norte-americano de 34 anos, fundador desse surpreendente empreendimento privado de resgate. “Quando você cruza com uma embarcação equipada para dez pescadores e você depara com 400 pessoas a bordo, incluindo mulheres e crianças sem coletes salva-vidas, eis uma situação de resgate urgente.”
Nascido e criado no estado de Louisiana, filho de um engenheiro de petróleo e gás, Christopher começou uma empresa de seguros em zonas de guerra, a Tangiers International, que dá cobertura de seguro para jornalistas e prestadores de serviço em casos de sequestro, terrorismo, morte e lesão. Com base em Malta, único país de língua inglesa do Mediterrâneo, a companhia teve receita de US$ 10 milhões no ano passado. Em 2013, Christopher usou US$ 8 milhões de sua fortuna pessoal na criação da Estação Offshore de Auxílio a Imigrantes (MOAS), uma organização não-governamental também localizada em Malta que utiliza os serviços do Phoenix. Ele passou dois meses a bordo do navio em 2014. Nesse tempo, o Phoenix participou de nove operações de resgate e ajudou 3.000 imigrantes, levando-os a portos na Itália ou transferindo-os para embarcações da Marinha. Recentemente, nos primeiros 60 dias de sua temporada de seis meses, o Phoenix ajudou a resgatar mais 5.500 pessoas, e até agosto o número tinha subido para 8.696.
Christopher, no entanto, ficou em Malta neste ano para tocar sua empresa de seguros, deixando as operações a bordo nas mãos de sua mulher e parceira no projeto. Aos 39 anos, a italiana Regina Egla Christopher é uma incansável empreendedora que se entregou completamente ao esforço de resgate de imigrantes. Nesta nossa jornada no início de junho, éramos 23 a bordo da traineira readaptada, incluindo um capitão espanhol, Gonzalo Calderon, sua tripulação de seis pessoas e uma equipe de busca e salvamento de três profissionais composta por ex-integrantes das Forças Armadas de Malta. Havia também seis médicos, enfermeiros e gente de logística dos Médicos Sem Fronteiras, além de dois pilotos e um engenheiro da empresa de defesa austríaca Schiebel para operar os dois drones do Phoenix.
As pás do drone S-100 cortavam o ar conforme ele subia e pairava sobre a pista de decolagem. Indo para a esquerda, a geringonça disparou a 220 km/h na direção da costa da Líbia. Na apertada sala de controle, os dois jovens pilotos do drone e o engenheiro se espremiam na frente do monitor, recebendo imagens de alta definição de um sensor montado sob o nariz da aeronave. No meio da manhã, as atividades corriqueiras a bordo do Phoenix, como um jogo de pôquer na mesa de reunião e a preparação do almoço pelo chef norte-americano Simon Templer, um velho amigo de Christopher, são interrompidas pela notícia que circula pelo navio: há um possível resgate a ser realizado logo. O drone avistou um barco a cerca de 55 km de distância da costa da Líbia. A única pergunta, explicou Regina enquanto o capitão acelerava na direção sul, era se o MRCC enviaria uma embarcação italiana para fazer a busca ou se o Phoenix receberia a tarefa.
“Da última vez, os imigrantes não haviam comido ou bebido nada por mais de 12 horas”, contou John Hamilton, um homem alto e bronzeado da equipe de resgate de Malta. Simon Bryant, um médico norte-americano dos Médicos Sem Fronteiras, virou-se para David Johnston, um grisalho especialista em logística da Nova Zelândia, e disse: “Vamos nos trocar”. E assim os dois sumiram.
ESTE ANO ESTÁ se mostrando um período com atividades sem precedentes para “imigrantes irregulares” – descrição adotada pelas Nações Unidas para evitar estigmatizá-los com o termo “ilegal” – no Mediterrâneo. Em 2009, de acordo com Frontex, patrulha de fronteira da União Europeia, 11 mil pessoas fizeram a perigosa viagem das praias do norte da África até a Itália e Malta. Dois anos depois, a Primavera Árabe desencadeou instabilidade por toda a região, e o número de imigrantes da Líbia e da Tunísia saltou para 64.300 pessoas. Desde então, uma devastadora guerra civil na Síria, o terrorismo islâmico radical na Nigéria e em Mali, o alistamento militar forçado na Eritreia e o início de uma terceira década de caos na Somália aumentaram esses números ainda mais. Alguns refugiados vêm até de Bangladesh, sugados pela miséria econômica para odisséias traiçoeiras por terra e mar antes de chegar ao norte da África. Até o final de 2015, os números deste ano podem ultrapassar a marca de 250 mil.
A situação cada vez mais degradada na Líbia, principal ponto de partida para barcos de imigrantes, facilitou o êxodo. Operando em um país anárquico e dominado pela impunidade, traficantes de pessoas cobram dos refugiados entre US$ 500 e US$ 2.000 pela travessia. A viagem geralmente começa em Trípoli, onde os imigrantes são mantidos por semanas e às vezes meses antes de serem enviados de caminhão para praias a oeste da capital. Alguns desses contrabandistas são empresários astutos que querem fornecer um serviço seguro para seus clientes. “Eu inclusive ouvi falar de um contrabandista que permite que crianças menores de 5 anos viagem de graça”, diz Christopher.
Entretanto a maioria é de operadores inescrupulosos que mostram para os imigrantes barcos grandes e seguros nos portos da Líbia, e depois os espremem em pesqueiros deteriorados ou botes infláveis sem tripulação ou equipamentos de segurança. Os imigrantes recebem uma garrafa plástica com água e às vezes uma bússola para a viagem de dois dias. Normalmente não há volta: com os negócios dependendo da rotatividade e determinados a evitar que a notícia sobre o esquema escuso se espalhe, os traficantes muitas vezes obrigam os clientes a embarcar sob a mira de revólver. Os barcos são pilotados por imigrantes voluntários ou por um capitão contratado pelos contrabandistas, que escapa de ser capturado pelas autoridades costeiras da Europa abandonando o barco no meio da viagem e pulando para uma embarcação-mãe de seus chefes. Os barcos são abandonados no mar e recuperados por pescadores, revendidos para contrabandistas ou então destruídos pelas forças navais da União Europeia.
Os refugiados têm um bom motivo para hesitar. A travessia da África para a Itália é hoje, segundo a ONU, “a rota mais letal do mundo”, com um recorde de 3.419 imigrantes mortos em 2014 e outros 2.000 de janeiro até agosto de 2015. Em uma só noite gelada de fevereiro, três de quatro botes infláveis de borracha cheios de imigrantes afundaram em águas frias e agitadas da costa da Líbia. Pelo menos 300 pessoas morreram, incluindo 29 de hipotermia durante o resgate de 106 sobreviventes. Dois meses depois, um pesqueiro de 60 pés cheio de imigrantes virou quando colidiu com um navio mercante português à noite e todos os passageiros correram para um dos lados. Um sobrevivente de Bangladesh relatou que os contrabandistas haviam trancado centenas de pessoas no porão, incluindo dezenas de mulheres e crianças. Apenas 28 refugiados sobreviveram.
Em outubro de 2013, a Itália lançou uma operação de resgate de US$ 10 milhões por mês, chamada Mare Nostrum, antigo nome romano para o Mediterrâneo. A marinha italiana utilizou um navio anfíbio, duas fragatas e duas embarcações de busca e salvamento logo na fronteira das águas territoriais líbias e salvou 130 mil pessoas no primeiro ano. Como a Migrant Offshore Aid Station (MOAS), a Mare Nostrum operou sob a premissa de que todas as viagens de imigrantes são perigosas, e seus resgates tinham como alvo não só embarcações em naufrágio iminente, mas também aquelas que não pareciam estar em perigo.
Porém o programa sofreu um revés de políticos italianos conservadores, que protestaram que a Itália estava injustamente aguentando a carga da crise migratória. De acordo com a política da União Europeia, o país onde o imigrante desembarca primeiro é obrigado a processar seu pedido de asilo. Assim dezenas de milhares de refugiados estão aguardando a burocracia na Itália. Se seu pedido for rejeitado, como aconteceu com 21% dos casos em 2013, os imigrantes são enviados para centros de detenção, onde aguardam até serem deportados. Muitos refugiados, é claro, deixam a Itália bem antes disso, atravessando as porosas fronteiras da Europa até a Alemanha, Suécia e outros países, onde entram como imigrantes ilegais ou pedem asilo.
Em outubro do ano passado, a Itália substituiu a Mare Nostrum pela bem mais modesta Operação Triton. Inspecionada pelo Frontex, a Triton tem apoio de líderes europeus como Joyce Anelay, a ministra das relações exteriores do Reino Unido, que argumenta que o alcance ambicioso da Mare Nostrum acabou estimulando os imigrantes a fazer a travessia. A Triton custa menos de um terço da Mare Nostrum, e patrulha uma área a 40 quilômetros da costa da Itália. Curiosamente, desde o encerramento da Mare Nostrum, o número de imigrantes cresceu muito. Após o afogamento de 300 pessoas em fevereiro, Nils Muiznieks, comissário de direitos humanos do Conselho da Europa, declarou: “A União Europeia precisa de busca e salvamento eficientes. A Triton não atende a essas necessidades”.
FOI NESSA CONFUSÃO multinacional que os Catrambones entraram em cena. O casal se conheceu em 2006, em uma praia em Reggio di Calabria, cidade natal de Regina, na ponta da Itália. Chris fora para lá procurar o lugar onde seu bisavô, que imigrou para os Estados Unidos no final do século XIX, nasceu. Eles se casaram em 2010 e vivem em Malta com sua filha adolescente, Maria Luisa.
Em julho de 2013, o casal estava navegando pelo Mediterrâneo em um iate alugado. A viagem, em parte, era presente de aniversário de Christopher para si mesmo após um ano lucrativo. “Eu adoro levar minha família para viajar e aproveitar a vida, e convenci Regina a explorar as águas perto de casa”, lembra-se.
Um dia, perto de Lampedusa, ilha italiana ao sul de Malta que se tornou o purgatório para dezenas de milhares de imigrantes, Regina estava tomando sol no convés superior quando viu um casaco boiando na água. Os Catrambones perguntaram ao capitão, Marco Cauchi, um comandante de busca e salvamento de folga das Forças Armadas de Malta, sobre a curiosa peça de vestuário. Ele respondeu que quase certamente era o casaco de um refugiado. Marco explicou como, durante um resgate militar, ele vira um imigrante afundar entre as ondas a poucos metros de distância. “Havia 29 pessoas nesse barco que virou, e a maioria não sabia nadar”, contou. “Vi seus olhos abertos, e testemunhei ele afundar muito rápido. Não consegui alcançá-lo. Nunca mais esqueci.”
Apenas uma semana antes da viagem do casal, o papa Francisco havia pedido uma “mudança de atitude em relação aos imigrantes e refugiados”, para afastar o medo de construir uma cooperação internacional. Regina, católica devota, levou a sério as palavras do papa e desde então convocou o arcebispo de Malta como seu apoiador. Ela se tornou uma aliada vital dessa causa, enquanto seu marido desenvolvia um plano para comprar um barco e navegar pelo Mediterrâneo, fazendo o trabalho que os governos pareciam relutar em assumir. “Eu sou basicamente um cara de operações”, diz Christopher. “Regina traz o elemento humanitário a tudo isso.” Ele também recrutou Marco. “Eu disse para Marco: ‘Se eu fizer isso, você embarca comigo?’ E ele respondeu: ‘Você é louco, mas se você for eu vou também’.”
Christopher resolveu ignorar quaisquer subvenções ou ajuda do governo e financiou o empreendimento do próprio bolso. “Nós dois acreditávamos que algo tinha que ser feito agora, e que se você tem capacidade, habilidade e dinheiro, para que esperar? Nesse meio tempo, quantas pessoas mais morrerão?”, diz Regina.
Na noite anterior à nossa chegada, o navio aportara em Augusta, na Sicília, abarrotado com 372 refugiados, o ponto culminante da maior operação de resgate na curta história da MOAS. Ela começou na manhã de 6 de junho, quando o mar acalmara após cinco dias de ondas perigosamente altas. Como esperado, disse Ian Ruggier, outro veterano do exército maltês que é chefe de planejamento e operações, o MRCC chamou por rádio mais cedo relatando que imigrantes estavam em apuros e direcionando o barco para uma posição de GPS a 50 km do litoral de Zuwara, uma praia a oeste de Trípoli que é o mais popular ponto de lançamento dos contrabandistas libaneses. Logo Ian viu um pesqueiro de dois andares abarrotado com quase 600 pessoas. De repente, uma segunda embarcação lotada de refugiados surgiu através da neblina, e depois uma terceira, quase afundando, com duas bombas retirando a água. “Se esse barco tivesse virado, seria uma tragédia”, contou Ian. “Havia 500 pessoas no porão, e elas precisariam sair através de uma única escotilha minúscula.”
Ian pulou para um dos barcos semirrígidos do Phoenix (RHIB) e rapidamente se dirigiu para as embarcações em perigo. Ele mal tinha chegado a um dos barcos atingidos quando um quarto barco emergiu da neblina, e depois um quinto. “Meu Deus!”, pensou. “Deve haver 2.000 imigrantes em uma área de dois campos de futebol.”
Alertadas pelo MRCC, embarcações de suporte começaram a chegar. Botes de meia dúzia de navios passavam entre os barcos dos refugiados, distribuindo coletes salva-vidas, recolhendo passageiros rapidamente e descarregando-os em navios militares e no barco particular de resgate. O Phoenix ajudou a resgatar 2.200 pessoas, levando 372 a bordo. À uma da tarde, os dois conveses do Phoenix estavam lotados.
Ian já interceptou piratas nas perigosas águas do Golfo de Áden, no litoral da Somália, e dirigiu operações de resgate na costa maltesa, mas nunca participou de nada nessa escala. “Não parecia um resgate”, disse. “Parecia mais um exercício militar.”
NO FINAL DE MARÇO, enquanto os Catrambones se preparavam para a temporada de seis meses de resgate, fiz minha primeira viagem a Malta, o país-ilha onde eles vivem, densamente populoso com 423 mil habitantes. Um bastião do cristianismo durante as Cruzadas e uma estação vital de suprimentos dos aliados na Segunda Guerra, a antiga colônia britânica renasceu como um centro financeiro global e locação popular para cineastas de Hollywood, que gostam de seus generosos benefícios fiscais e aparência genérica de Oriente Médio.
A nação também está no meio do debate europeu sobre imigração. No táxi para Marsa, o encardido porto comercial de lá, passei por barracões cercados de arame farpado e cheios de refugiados da região subsaariana. O governo de Malta se diz “simpático” à condição dos imigrantes, mas após aceitar cerca de 19 mil na última década insiste que não há espaço para mais.
Encontrei Christopher no convés da popa do Phoenix, em meio a barulhos de martelos, furadeiras e lixas. O casco estava sendo pintado, e a tripulação removia a ferrugem. “Assim que o barco voltou em outubro, começamos a trabalhar. É uma grande embarcação de aço, e todas as estruturas precisam estar em perfeito estado para a temporada de resgates”, disse Christopher, um homem de passos lentos e negros cabelos despenteados, barba escura e um leve sotaque da Louisiana. Recentemente, depois que o empreendimento começou a atrair a atenção da mídia, ele contratou Robert Young Pelton, jornalista de guerra veterano e autor do livro The World’s Most Dangerous Places [Os Lugares Mais Perigosos do Mundo], como consultor estratégico.
Christopher me levou por uma escada até o convés superior da popa e mostrou dois botes infláveis de última geração montados confortavelmente em armações de metal. “Sinta isso!”, disse ele, passando a mão ao longo de um dos botes de 20 pés, com casco duplo, cada um equipado com motores de popa de 70 cavalos. “Tem enchimento de espuma, então mesmo se furar ainda é capaz de flutuar.”
Na última vez que ele se envolvera com reforma de barcos, as circunstâncias eram bem diferentes. Em 2005, ele trabalhava como investigador freelance de sinistros de seguros após se formar em criminologia. “Ele tinha um Passat com vidro fumê e uma câmera de vídeo, e nós íamos aos lugares e ele filmava as pessoas pela janela”, lembra Simon, o chef, que vivia no mesmo prédio em New Orleans (EUA). Christopher era “meio neurótico”, conta Simon. “Ele era como o Kramer do seriado Seinfeld, um tipo nerd desajeitado, mas ao mesmo tempo cool e descontraído.”
Naquele mês de setembro, Christopher estava em um trabalho nas Bahamas quando o furacão Katrina atingiu New Orleans. Sem teto, ele se estabeleceu em um barco de três cabines em uma marina em Saint Thomas, nas Ilhas Virgens americanas, e convidou Simon e outro amigo desalojado para juntarem-se a ele. Com US$ 20 mil de indenização da Agência Federal de Gestão de Emergências, o trio alugou um barco de convés duplo e com rodas de pás e o transformou no Cajun Mary’s Riverboat Lounge, um bar e restaurante flutuante. “Era nosso luto e nossa homenagem à cidade que tanto amávamos”, diz Christopher.
Naquela época, ele recebeu uma ligação da G4S, uma gigante de segurança privada dos Estados Unidos, oferecendo um trabalho diferente relacionado a seguros: localizar tratamento médico em Dubai para um funcionário norte-americano que havia sofrido uma hérnia de disco lá. Esse trabalho o levou naquele ano para o norte do Iraque, onde provedores de seguros para grandes seguradoras estavam lutando para oferecer cuidado médico adequado para funcionários feridos por bombas à beira de estradas. Christopher montou uma rede de hospitais seguros no Curdistão e depois fez o mesmo no Afeganistão. Logo começou sua própria seguradora em áreas de guerra, e a Tangiers International, batizada graças a Tânger, sua cidade preferida do norte da África, decolou. Aos 26 anos ele já era milionário.
NO FINAL DE 2013, Christopher deixou a Tangiers nas mãos de seus subordinados e começou a procurar barcos à venda em catálogos online. “Christopher é um furacão”, diz Regina. “Ele é muito disciplinado quando precisa fazer algo.”
Por fim ele encontrou o Phoenix em Norfolk, na Virgínia. Foi amor à primeira vista. Construído em 1973 e usado originalmente como traineira de pesca, e posteriormente como uma embarcação para pesquisa científica, o barco tem um casco de aço e um sistema de propulsão construído pela Wärtsilä, empresa finlandesa conhecida por seus quebra-gelos. “Era um barquinho duro na queda”, conta Christopher. Ele o comprou na hora por US$ 1,6 milhão, gastou outros US$ 3,5 milhões em uma reforma, e ele mesmo atravessou o Atlântico com Marco ao leme e Simon na cozinha. Em determinado momento, o Phoenix bateu em algo, talvez um contêiner. “Ouvimos um barulho como bum-bum-bum, e depois parou,” lembra Marco. Temeu-se que a hélice nova de US$ 1 milhão tivesse sido destruída. Na verdade a colisão quebrou um pedaço do barco, mas Christopher não desanimou. “Ele era um cachorro louco,” disse Simon. “Não parava de falar: ‘Vamos! Vamos!’.”
Quando o Phoenix foi lançado ao mar em agosto de 2014, diplomatas e jornalistas europeus começaram a duvidar da empreitada. “Não nos deram muito crédito”, admite Christopher. “Desconfiavam que éramos ativistas tipo Greenpeace, ávidos para criar problemas.”
As dúvidas de Christopher também cresciam. “Depois de cinco dias no mar, estávamos frustrados”, lembra. “Eu dizia: ‘É tudo mentira, os imigrantes não vêm’.” Então, no sétimo dia, o Phoenix executou um resgate duplo de um pesqueiro abarrotado com 300 sírios e, depois, de um bote inflável cheio de africanos da região subsaariana. O MRCC registrou o feito e deu ao Phoenix o comando temporário de três outras embarcações. A MOAS tinha provado seu valor. Quando a missão acabou em outubro, Christopher não queria ir embora. Só pararam porque o barco precisava muito de reparos, e porque o esforço estava drenando as finanças dos Catrambones.
De fato, em março passado, Christopher duvidou se conseguiria usar os drones em 2015. No ano anterior, ele tinha feito um acordo com Hans Georg Schiebel, proprietário da Schiebel, uma empreiteira militar austríaca, para comprar dois Camcopter S-100, mini-helicópteros não tripulados que podem voar 610 km sem reabastecimento e que são usados pela Marinha de todo o mundo. Hans inicialmente queria vender os drones por US$ 5,5 milhões, mas Christopher persuadiu-o a arrendá-los para a missão mais curta de três meses do ano passado por US$ 400 mil por mês. “Eu disse para Hans: ‘Mostre para o mundo que esse drone pode ser usado para fins pacíficos’”, conta. Hans concordou. Para a temporada deste ano, Hans topou diminuir a mensalidade para US$ 300 mil e deu os últimos dois meses de graça. Mas US$ 1,2 milhão ainda era grana demais para o orçamento de Christopher.
Agora, depois de queimar muito da sua fortuna, Christopher estava buscando doadores. A ONG Médicos Sem Fronteiras havia doado US$ 1,6 milhões; a Oiland Gas Invest, da Alemanha, estava pagando pelo combustível do barco. Mas faltava os US$ 1,8 milhões para os drones. “Vamos ter que buscar financiamento coletivo”, disse. “Organizações como Médicos Sem Fronteiras não querem pagar por drones.” Algumas semanas depois veio a boa notícia: a Avaaz, uma organização ativista global, concordara em dar US$ 500 mil para os dois S-100. Christopher levantaria o resto a tempo para a temporada de resgate.
AGORA OS S-100 estavam se mostrando ferramentas fundamentais. Horas após a decolagem do drone do heliponto do Phoenix, eu e Regina estávamos no convés, observando o horizonte ao sul. As montanhas Nafus erguiam-se à nossa frente, a uns 50 km de distância, envoltas pela bruma marrom do deserto. Regina estimou que as ondas batendo nas praias de Zuwara teriam cerca de meio metro de altura, condições perfeitas para os contrabandistas lançarem suas embarcações.
Aproximando-se devagar pelas águas, um ponto branco distante entrou em nosso campo de visão. Lentamente, o ponto tomou forma: um bote inflável branco, de uns 25 pés, com um único motor externo, lotado com umas cem pessoas.
A expectativa tomou conta do barco. No convés de popa, o médico Bryant fechou sua roupa de proteção branca e colocou as luvas cirúrgicas e as galochas. O restante da equipe de saúde, vestida da mesma forma, trouxe cem pequenas sacolas azuis do porão, cada uma contendo meias, uma toalha, macacões brancos, duas garrafas de água e um pacote de barras de proteína. Marco, Ian e três tripulantes baixaram os botes infláveis ultramodernos para a água e aceleraram na direção do pequeno barco.
De centenas de metros, vi o resgate acontecer: o bote inflável se aproximou lentamente, com cuidado para não causar agitação nas pessoas a bordo e fazer com que o bote virasse. Marco, falando em inglês por um megafone, tranquilizou os imigrantes – todos eles, ao que parecia de onde eu observava, africanos. A equipe lhes deu coletes salva-vidas laranja, transferiu-os em pequenos grupos para os infláveis e os transportou para o Phoenix. Um por um, os imigrantes ultrapassavam o pequeno espaço entre os barcos e, vacilando, embarcaram no barco maior. Quatro jovens mulheres somalis com lenços na cabeça, as primeiras a por os pés no Phoenix, se jogaram ao chão no convés e juntaram as mãos em oração. Logo o convés estava cheio de refugiados da Somália, Nigéria, Eritreia, Mali e outros cantos arruinados do continente africano, em um total de 77 homens e dez mulheres. Gente cansada, com um olhar de gratidão, e cujas privações das últimas semanas e meses mal poderiam ser imaginadas.
Com um boné de beisebol azul da MOAS na cabeça, Regina circulava confiante entre os refugiados, inclinando-se para confortar o menino etíope de 15 anos que viajava sozinho e procurando por um nigeriano que havia levado um soco no olho durante a viagem. O Phoenix aguardava comunicação do MRCC, que os mandaria levar os imigrantes para um porto na Sicília ou continuar em patrulha na área.
Esse trabalho com os refugiados é o que tem sido mais recompensador para a italiana. Em 2014, ela comprou nos mercados de Malta sacos de arroz e legumes e, trabalhando como assistente do chef Simon, preparava refeições quentes na apertada cozinha do navio para centenas de famintos. “Usávamos a tampa de uma lata de óleo como bandeja, e eu subia e descia com ela cheia de arroz e tomates”, diz. Neste ano ela passou dezenas de horas na clínica a bordo. “Lembro-me de uma mulher somali com seu filho de 2 anos e meio”, conta. “Eles ficaram por 12 horas em um barco aberto. Nós o tiramos do bote, mas o menino não estava reagindo.” Regina levou a criança para um leito, onde um médico o colocou no soro. Logo ele já estava sorrindo, ativo e brincando com um boneco do Scooby-Doo e uma pequena Ferrari.
ENQUANTO A TRIPULAÇÃO aguardava ordens, comecei a conversar com Abdisamat Mohammed Mahmoud, um somali de 25 anos de rosto longo e anguloso que estava debruçado em uma mureta do barco, olhando para o mar. Nascido e criado na capital, Mogadishu, ele não consegue se lembrar de um só momento de paz lá. O jovem havia fugido da Somália quando era adolescente e morado por seis anos em campos de refugiados no norte do Quênia, onde aprendeu inglês e árabe sozinho. Ele e sua mulher saíram para procurar trabalho no sul do Sudão e, em abril de 2015, quando o novo país ficou instável demais, mudaram-se para Cartum, a capital, com o plano de cruzar o mar até a Europa. Traficantes os colocaram em um caminhão para a extenuante viagem de uma semana através do deserto até a Líbia. Quando chegaram a Trípoli, ele foi separado da mulher e mantido em um porão por 51 dias enquanto esperava que sua família em Nairóbi transferisse US$ 500 para pagar a travessia.
“Eles apareceram duas noites atrás e disseram: ‘Vamos’,” contou. “Falaram: ‘Você vai para a Itália em um belo barco’. E contaram que levaria cerca de dez horas, mas eu sabia que era mentira.” O caminhão parou na praia e os capangas mandaram os imigrantes saírem, sob a mira de revólver. “A maioria dos somalis nunca tinha visto o mar, até aquela noite. As mulheres estavam chorando”, disse. “Fiquei chocado quando olhei o barco. Pensei: ‘Fomos enganados’.” Diferentemente dos barcos pesqueiros, que costumam ter capitães experientes, os imigrantes em botes geralmente são instruídos e depois deixados à própria sorte.
Segundo Mahmoud, os imigrantes saíram para o mar por volta das 5 horas naquela manhã. Eles tinham uma bússola, que na verdade estava quebrada, e uma garrafa de meio litro de água cada um. As pessoas choravam, gemiam e rezavam. “Algumas realmente achavam que era seu último dia de vida. Eu dizia para eles que seríamos resgatados e que comeríamos nosso café da manhã na Itália”, disse.
Os refugiados estavam flutuando há cerca de oito horas quando Malshak Adano, um cristão de 32 anos que fugia da violência no nordeste da Nigéria, viu o Phoenix à distância e começou a gritar e a acenar. Depois, como o próprio Malshak me contou, um homem com um megafone gritou: “Não tenham medo, vocês estão recebendo coletes salva-vidas, nós os protegeremos”. Ao que ele pensou: “Deus ouviu as minhas preces”.
Na manhã seguinte passamos Malta. O MRCC enviara ordens para navegarmos para Pozzalo, na costa sul da Sicília, e descarregar nossos 77 passageiros. Uma dezena de somalis se agarrava à mureta do barco, silenciosamente absorvendo sua primeira visão da Europa. Logo Mahmoud começou a me bombardear com perguntas. A Sicília é uma ilha? Qual a distância do continente? Quanto tempo leva para chegar a Roma? Sua primeira missão, segundo ele, era encontrar sua esposa. Uma vez reunidos, eles iriam para a Finlândia, que possui uma grande comunidade somali, cruzando as fronteiras fáceis da União Europeia. “Ouvi dizer que eles têm bons empregos lá”, disse Mahmoud.
Na verdade, enquanto os países escandinavos têm economia forte e geralmente são mais receptivos que outras nações a imigrantes em busca de asilo político, um movimento de resistência está crescendo: em 2012, um assessor parlamentar sugeriu em seu blog que imigrantes usassem pulseiras de identificação, e em maio último um vereador de Helsinki pediu a “esterilização forçada” de homens africanos.
Chegamos a Pozzalo no final da tarde. Mahmoud observava inquieto na rampa de desembarque os policiais italianos espalhados pelo porto. Então, resignado com a incerteza do que o esperava, totalmente certo de que o pior já havia passado, desceu a rampa e foi conduzido a uma barraca de triagem médica. “Somos muito gratos a todos vocês!”, gritou, ao sair do barco.
O que aconteceria com os imigrantes depois dependeria muito de sua desenvoltura, explica Gabriele Casini, assessor de comunicação dos Médicos Sem Fronteiras, enquanto observávamos do convés. O governo italiano é obrigado por regras da União Europeia a mantê-los no país até que sua solicitação de asilo seja aprovada ou rejeitada. “Mas essas regras não são rígidas,” diz Gabriele. “Os funcionários nem sempre registram as impressões digitais, então os imigrantes esperam escapar e chegar até a Alemanha ou a Escandinávia.” Nós dois observamos Mahmoud embarcar em um ônibus para um campo onde seria recepcionado e acenamos pela última vez. “Nesses centros, eles estão livres e podem ir embora.” Talvez Mahmoud afinal chegasse à Finlândia.
CONFORME O MAIS RECENTE grupo de refugiados confrontava sua nova vida na Europa, o continente ainda hesitava sobre como lidar com eles. Em junho, líderes da União Europeia discutiram um modesto esquema para compartilhar 60 mil refugiados da Síria e da Eritreia que buscavam asilo durante os próximos dois anos, embora o Reino Unido tenha se recusado a fazer parte dessa força-tarefa. A Itália alertou que, sem um acordo justo, começaria a emitir vistos temporários para imigrantes viajando além de suas fronteiras. Nesse meio tempo, conforme se espalham as notícias sobre os perigos das travessias do Mediterrâneo, imigrantes da Ásia, África e do Oriente Médio estão cada vez mais tentando uma rota alternativa, viajando por terra para a Europa Ocidental através da Turquia, Grécia e dos Bálcãs.
“O quão patético é o fato de uma família motivada conseguir mudar tanta coisa, enquanto todas essas organizações e governos não conseguem nada?”, pergunta Christopher uma tarde, já em Sliema, em Malta. A viagem tinha acabado, e ele veio me buscar no meu hotel em seu Range Rover preto. Com Buena Vista Social Club tocando no rádio, Christopher passava pelas ruas ensolaradas da populosa cidade maltesa a caminho do almoço no Royal Golf Club, um oásis construído pelos britânicos nos anos 1880 – uma escolha estranha para um homem que recentemente se dedicara aos refugiados do mundo. Mas Christopher não esconde seu amor pelas coisas sofisticadas da vida. “Eu sou sócio, eu acho, mas não tenho mais tempo de jogar golfe”, conta, enquanto procura nos bolsos da calça pela carteira do clube no portão de entrada.
Enquanto tomávamos cappuccinos no terraço, conversávamos sobre o futuro de sua operação de resgate. Com doações chegando para a MOAS, os Catrambones estão prontos para se retirar e passar a operação para sua tripulação. “Nós a iniciamos. Agora o pessoal segue por conta própria, o modelo de ação está completo”, diz. “Estamos mostrando a todos: levem essas ideias adiante.”
Por ora, Christopher voltou a dirigir a Tangiers International, e recentemente comprou a maior corretora de seguros aeronáuticos de Malta, transformando a Tangiers na seguradora da Air Malta e várias outras companhias aéreas. Os negócios continuam no seu sangue, isso é claro, mas ele não descarta outro projeto humanitário. “Há um nível de consciência cívica entre a geração millenium”, reflete. “Eles querem alimento de graça e fronteiras abertas a todos. Estão pensando em soluções que beneficiarão a sociedade como um todo, e não só a eles.”
Levanta-se e alonga-se um pouco. “Quando você atinge esse ponto na vida, passa a entender no que é bom realmente”, diz, mostrando seu habitual misto de charmosa sinceridade e frágil autoconfiança. “Percebi que eu era bom em fazer o impossível.”
Reportagem publicada originalmente na Go Outside 124, de novembro de 2015
HELP: Barco cheio de imimgrantes é resgatado no Mediterrâneo, perto da Líbia, em junho de 2015
MÃO NA MASSA: Christopher Catrambone, milionário que ajuda a resgatar refugiados, em seu barco Phoenix
SOLIDARIEDADE: Regina Catrambona (dir.) e o médico canadense Simon Bryant socorrem um nigeriano
que fugiu da milicia Boko Haram
OPERAÇÃO DE GUERRA: Embarcação repleta de imigrantes se prepara para aportar na Sicília
HOMENS AO MAR: Nas próximas fotos, cenas da operação de resgate de imigrantes encontrados no
Mediterrâneo, organizada por Regina Catrambone e seu marido, Christopher, com o auxílio de ONGs, como
os Médicos Sem Fronteiras