Estrada sem fim

A alemã Juliana Buhring sofreu abusos sexuais quando criança em uma seita bizarra e teve seu grande amor devorado por um crocodilo em uma expedição de caiaque na África. Para lidar com tanta dor, comprou uma bike e saiu pedalando pelo mundo – para entrar para o Guinness e se tornar a ciclista de longa distância mais casca grossa da história

Por Grayson Schaffer

“É SÓ VOCÊ DIZER QUE CRESCEU DENTRO DE UMA SEITA que todo mundo pensa que tem alguma coisa de errado contigo”, diz a alemã Juliana Buhring.

Não que a moça se sinta prejudicada – pelo menos não emocionalmente, como faz questão de me dizer – por ter passado a infância na seita The Family International (A Família Internacional), o polêmico grupo religioso que Juliana descreveu em seu livro Not Without My Sister (Não Sem Minha Irmã, inédito no Brasil). Lançado em 2007, a obra autobiográfica se tornou um best-seller. Fisicamente, no entanto, ela está cheia de marcas. Seus joelhos são um emaranhado de cicatrizes sobre cicatrizes, e os antebraços carregam vestígios de queimaduras de asfalto não muito antigas. O tombo de bicicleta que as causou ocorreu duas semanas atrás, quando ela descia o monte Vesúvio, na Itália, em uma curva muito fechada de uma estrada molhada.

VIDA REFEITA: Juliana Buhring perto de sua casa, em Sorrento, na Itália (Foto: Harry Borden)

O famoso vulcão que enterrou a cidade de Pompéia fica do outro lado do golfo de Nápoles, perto de Sorrento, cidade onde, há três anos, Juliana administra uma pequena pousada para poder sustentar seus projetos ciclísticos. A moça de 33 anos é alta, bronzeada, esguia e tem uma grande águia-pescadora tatuada em tons de preto na barriga. Ela diz que já foi atingida por um carro em duas ocasiões e levou mais de uma dúzia de tombos nos últimos quatro anos – o primeiro deles apenas um mês depois de começar a pedalar. “Eu poderia escrever um guia sobre como cair de bike”, diz, durante nosso jantar em um pub pertinho de sua pousada, batizada de B&B Juliana. Seu próximo livro de memórias, Riding the Wind (Pedalando o Vento), que será lançado este mês no Reino Unido pela editora Little Brown, conta com detalhes algumas dessas quedas.

Na primeira vez que Juliana foi atingida por um veículo, em outubro de 2011, ela estava contornando uma estradinha na região montanhosa do norte de Nápoles chamada Benevento. Um caminhão baú entrou na curva muito rápido e tocou com o pára-choque na sua roda traseira. Ela voou em direção a uma valeta. “Felizmente o caminhão me empurrou para a direita, para a lateral da estrada, e dei um salto mortal e duas cambalhotas”, conta. O capacete ficou estraçalhado, a bike amassou toda e seu pulso se deslocou. O caminhão fugiu acelerando, porém o motorista que veio em seguida a socorreu e a levou ao hospital. Naquela época, Juliana ainda pedalava uma bike híbrida de passeio, usava roupas de academia e pedais de plataforma. Resumindo, ela era uma principiante. Mas já tinha grandes aspirações sobre quão longe e quão rápido sua bicicleta poderia levá-la – especificamente, ao redor do mundo, e em tempo recorde.

EM TODOS OS ASPECTOS, JULIANA FOI-BEM SUCEDIDA nessa façanha. No dia 23 de julho de 2012, ela carregou os dois alforjes de sua bike – desta vez um modelo de competição de fibra de carbono que ela batizou de Pégasus, doado por uma bicicletaria local apenas uma semana antes – com um saco de dormir, uma escova de dentes, um pouco de dinheiro, seu passaporte alemão e não muito mais do que isso, partindo em direção ao oeste. Ela pedalou aproximadamente 240 quilômetros por dia, primeiro em direção ao norte, ao longo da bota formada pela Itália, passando por Cannes, na França, e descendo pelo rio Ebro, na Espanha, que escoa as águas do sul dos Pirineus.


INCANSÁVEL: Juliana treina em estrada próxima a Sorrento, na Itália (Foto: Chiara Goia)

Quando chegou a Porto, em Portugal, oito dias depois de sair de casa, Juliana e Pegasus pegaram um vôo até Boston, onde ela continuou pedalando pelos Estados Unidos. Em 28 dias, a ciclista atravessou as Grandes Planícies e cruzou a Divisória Continental perto da fronteira entre os estados norte-americanos de Idaho, Utah e Wyoming, chegando a Seattle no dia 31 de agosto.

Juliana atravessou a Nova Zelândia e a Austrália em pouco mais de um mês. E quando um guarda de fronteira do deserto australiano quis confiscar sua sacola de laranjas, uma iguaria rara naquelas terras, ela comeu todas de uma vez em vez de entregá-las. Além disso, a moça pedalou sua magrela pela Malásia e Tailândia. Para matar o tempo em cima do selim, preenchia a cabeça com gravações de livros. “Passei duas semanas ouvindo Guerra e Paz, do Tolstói”, diz. “Depois descobri As Crônicas de Gelo e Fogo, do George R. R. Martin [conjunto de livros nos quais se baseia a série de televisão Game of Thrones].”

Juliana chegou à Índia em outubro, sem nenhum problema. Mas saindo de Calcutá, ela deu uma trombada com um pedestre que, correndo entre o trânsito caótico, deixou-a sem nenhum espaço para onde desviar. Os dois ficaram abalados, mas sem problemas mais sérios. Depois, perto de Balasore, uma cidade no golfo de Bengala, ela ficou doente de verdade. Com o intestino em revertério, teve que correr para dentro de um hotel, sapateando sobre as sapatilhas de ciclismo, onde a recepcionista lhe indicou o banheiro mais próximo. Era tarde demais. “Eu tinha 31 anos e me caguei como um bebê”, diz Juliana. O banheiro tinha um chuveiro, que pelo menos permitiu que se enxaguasse. Ela saiu dando um rápido “obrigada” e encontrou, continuando pela estrada, um lugar para dormir em um hotel mais barato. Aquele foi o primeiro dia em três meses que Juliana não passou pedalando ou voando de um destino para outro.

No dia 22 de dezembro de 2012, a alemã retornou a Nápoles. O Guinness, o livro dos recordes, registrou o tempo total de sua saga em 152 dias – 144 deles em cima da bike. Ela queria ser a mulher mais rápida a dar a volta ao mundo pedalando; no entanto foi a primeira, como o Guinness definiu, a cumprir a façanha sozinha, viajando de forma ininterrupta e na mesma direção. Desde então, Juliana vem se consolidando como ciclista de ultradistâncias, tendo participado de duas competições transcontinentais autossuficientes (ou seja, sem nenhum tipo de apoio): a Transcontinental, que vai de Londres a Istambul, e da edição inaugural da TransAmerica, no ano passado, entre o Oregon e a Virginia, nos Estados Unidos. Terminou ambas entre os primeiros competidores masculinos. Ela é um dos assuntos principais de um documentário sobre a TransAmerica, Inspired to Ride (Inspirado para Pedalar), que estreou em abril nos EUA.

No último mês de novembro, encontrei com Juliana em Sorrento para alguns dias de pedalada. Porém estava chovendo quando cheguei, então acabamos indo ao tal pub, rodeado por oliveiras envolvidas em redes para a colheita de azeitonas. Pedalar pela Costa Amalfitana pode ser um rolê de primeira, mas pouca coisa bate a comida local, composta por pizza napolitana, presunto defumado, mussarela caseira e uma variedade de azeites de oliva. Enquanto comíamos e bebíamos, lembramos do improvável conjunto de circunstâncias que a levou a se tornar uma ciclista.

“Eu não me tornei uma ciclista”, diz Juliana, corrigindo-me. “Decidi pedalar minha bike ao redor do mundo.”

NA MANHÃ SEGUINTE, o céu clareou e me clipei aos pedais de minha bike de estrada pela primeira vez em vários meses para acompanhar Juliana em um de seus treinos. Ela não estabelece um percurso detalhado que deve percorrer a cada dia. Durante sua jornada ao redor do globo, por exemplo, ela conta que fez uma lista com as cidades pela quais precisava passar, mas “na maior parte do tempo apenas seguia o sol”. Essa era a ideia para nossos próximos três dias juntos. “Decidi que vamos fazer o que eu sei melhor”, disse. “Ou seja, perder-me.”


FORTONA: A moça pedalando no estado norte-americano de Montana, durante sua participação na
TransAmerica, em 2014 (Foto: Eddie Clark Media)

Lá nos idos de maio de 2011, quando Juliana me contou pela primeira vez seus planos de dar a volta ao mundo, confesso que fiquei meio cético. Ela nunca tinha pedalado antes. “Pode chamar isso de orgulho ou teimosia”, ela me escreveu certa vez por email. “Uma característica tão útil quanto prejudicial, dependendo da situação. Eu estou completamente obcecada em fazer isso.”

Tínhamos nos falado durante muitas horas pelo telefone ao longo dos meses anteriores, quando eu estava escrevendo uma reportagem sobre a morte do canoísta extremo sul-africano Hendrik Coetzee. Durante oito anos Juliana teve um intermitente relacionamento à distância com Hendrik, até que ele foi devorado por um crocodilo durante uma expedição de caiaque pelo rio Lukuga, no Congo, em 2010. Juliana e Hendrik tinham se conhecido em 2002, na casa noturna Rock Garden, em Kampala, em Uganda, onde Juliana trabalhava como dançarina. Naquela época, ela ainda fazia parte da seita Family International, embora estivesse planejando fugir do grupo. Quando enfim conseguiu escapar para o Reino Unido, em 2006, ela e Hendrik perderam contato, mas voltaram a se falar por Skype em 2009. Ela comprou uma passagem de ida para visitá-lo no ano novo de 2011. Os dois finalmente dariam uma chance ao seu relacionamento. Em vez disso, Juliana usou a passagem para ir ao funeral do canoísta.

Hendrik, que tinha um espírito incansável e aventureiro, era um remador de destaque na exploração de corredeiras nunca antes navegadas de caiaque. Já tinha guiado complexas expedições pelo rio Nilo e descido remando, sozinho, alguns de seus trechos mais difíceis. Ele e Juliana se conectavam por meio de uma inabilidade mútua em seguir as regras, além do mesmo gosto em literatura – ambos curtiam um tipo de filosofia popular, incluindo o austríaco Viktor Frankl e o brasileiro Paulo Coelho, cujas ideias repercutem, sobretudo, entre aqueles que se sentem à deriva no mundo.

Juliana e Hendrik haviam conversado bastante sobre casais de exploradores do século 19, como Samuel e Florence Baker, e David Livingstone e Mary Moffat – esposa de Livingstone, que acompanhou o marido em duas de suas expedições pelo deserto de Kalahari, na África. “Ela deixou-o mais doce”, diz Juliana sobre Mary. Se Juliana conseguiu o mesmo com Hendrik, ninguém pode dizer. Presa em um relacionamento baseado em emails e conversas por webcam, ela nunca teve a chance de descobrir. “É uma amarga ironia”, diz Juliana. “Eu nunca teria lapidado o meu talento pelo ciclismo se Hendrik não tivesse morrido. Mas eu abriria mão de tudo para voltar a vê-lo vivo.”

Foi por meio de Hendrik que Juliana conheceu a britânica Naomi Swain, que sugeriu que as duas atravessassem o Canadá pedalando juntas. Juliana achou a ideia interessante, mas sua primeira reação foi: por que pedalar por um país chato como o Canadá? E por que só pedalar por lá? O projeto foi deixado de lado – Naomi acabou indo dar aulas de ioga para refugiados no Sudão do Sul –, mas Juliana começou a pesquisar sobre possíveis rotas de volta ao mundo, procurando no Google informações sobre os percursos realizados por outras mulheres. Como acabou descobrindo, não existia nenhuma referência a respeito do tema. Segundo o Guinness, nenhuma mulher havia circunavegado o globo pedalando. Principalmente porque, para uma mulher sozinha, tentar dar a volta no planeta em cima de uma bike poderia ser perigoso. Mas Juliana não se importava com isso.

Naquela época, ela precisava encontrar um jeito de dar vazão a toda sua tristeza. “Se eu tiver que morrer, não será em cima de uma bicicleta”, ela me diz agora. “Bem que eu gostaria de morrer pedalando, mas nunca consigo o que quero.”

Em 2012, Juliana entrou em um grupo do Facebook formado por homens que planejavam a primeira edição da World Cycle Race, uma competição de volta ao mundo feita de maneira totalmente autossuficiente. Ela não estava muito interessada em competir no evento, uma vez que ainda estava começando a pedalar distâncias longas sozinha. O organizador era Mike Hall, um engenheiro britânico de 33 anos que trabalhava na Rolls Royce (e que acabou ganhando competição, em 91 dias, aniquilando o recorde masculino anterior de 106 dias).

Mike deu a Juliana dicas sobre mecânica e manutenção de bike, sobre quais alforjes usar – um modelo leve e impermeável da marca Revelate – e sobre como guardar as coisas dentro deles. O conselho mais importante que Mike lhe deu, segundo o próprio, foi: “Você não precisa ir muito rápido, apenas não pare”. O engenheiro, como muitas outras pessoas que participam desse tipo de modalidade, é independente e extremamente focado, além de capaz de aguentar altas doses de sofrimento. “Eu cresci com um lábio leporino e fiz várias operações e cirurgias plásticas no rosto”, ele me conta. “Quando criança, eu era tímido, talvez um pouco solitário. Então sempre me saí bem pedalando sozinho longas distâncias.”

Esse tema é familiar entre os ciclistas de ultradistância. Muitos deles têm alguma coisa dentro de si mesmos que lhes permite pedalar apenas com a companhia de seus próprios pensamentos durante meses, ou que os faz preferir a solidão. Juliana, que passou a infância tentando escapar das pessoas mais próximas à ela, encaixa-se bem nesse modelo. “É como se eu tivesse trocado uma seita por outra”, diz.

JULIANA PASSOU os primeiros 23 anos de sua vida na tal seita. Ela nasceu na Grécia, em 1981, filha da alemã Serene Buhring e de um britânico chamado Christopher Jones, que trabalhava como locutor de rádio gravando e divulgando as mensagens religiosas da Family International. Ela tem 17 irmãos por parte de pai. Para calcular todos os seus irmãos sem relação sanguínea, ou seja os irmãos de seus meio-irmãos, Juliana teria de pedir ajuda a um instituto de estatística.

No seu auge, no final dos anos 1990, a seita Family International tinha quase 14 mil integrantes. Conhecida originalmente como Children of God (Meninos de Deus), a seita foi fundada na cidade de Huntington Beach, na Califórnia, na década de 1960 pelo polêmico pastor David Berg, um autoproclamado profeta que pregava uma mistura entre os ensinamentos da Bíblia e o amor livre.

Not Without My Sister foi o primeiro livro de memórias escrito por uma pessoa da segunda geração da seita. A obra traça um panorama sombrio do grupo. Escrito por Juliana e duas de suas meio-irmãs, Celeste e Kristina Jones, o livro é dividido em três relatos, um de cada autora, e esteve no topo da lista britânica de best-sellers durante cinco semanas em 2007. Só no Reino Unido vendeu 200 mil cópias e foi traduzido para 11 idiomas.

“Adultério, incesto, sexo fora do casamento e entre adultos e crianças não eram considerados pecados, pois eram feitos ‘com amor’”, escreveu Celeste, seis anos mais velha que Juliana. Uma das práticas mais infames da seita era conhecida como “flirty fishing” (ou “pesca com flerte”), na qual as mulheres do grupo eram encorajadas a usar seus corpos para arrebanhar novos integrantes. Quando crianças, as meninas eram treinadas tendo relações sexuais entre elas (chamadas de “cochilos de namoro”) quando tinham apenas 4 ou 5 anos de idade. Depois eram enviadas aos adultos.

Em 2010, três anos depois do lançamento do livro, a Family International se dissolveu e seus líderes distribuíram declarações públicas negando suas crenças. A organização já havia admitido, em uma declaração pública sobre Not Without My Sisters, que a história do livro era plausível. Os autores da declaração afirmaram que “a Family International tem uma política de tolerância zero no que diz respeito ao abuso de menores”. Porém, acrescentou, “nós lamentamos que, antes da adoção dessa política, entre 1978 e 1986, tenham ocorrido casos nos quais menores foram expostos a comportamentos sexuais inapropriados”.

Juliana nasceu em 1981. Quando ela tinha 3 anos, sua mãe foi diagnosticada com um tipo raro de artrite e acabou mandada de volta para a Alemanha. A filha foi criada por uma série de cuidadores, seguindo a tradição da seita. Juliana ficou com Celeste a maior parte do tempo, e juntas elas acompanharam o ramo da Family ao qual pertenciam, conforme seus integrantes se mudavam para várias partes do mundo para espalhar a doutrina em mais de 30 países. As meninas viram o pai poucas vezes. Elas eram mantidas sob controle rígido, como contam no livro, tanto física – com punições corporais – quanto psicologicamente. Diziam-lhes que o mundo terminaria em 1993 e que apenas a Family International escaparia. “Muitos de nós dirão que o pior de tudo, na verdade, nem foram os abusos sexuais”, diz Celeste, que atualmente trabalha como terapeuta infantil no Reino Unido. “O abuso emocional e as alucinações coletivas foram os danos que permaneceram mais tempo em todos nós.”

Essa parte foi especialmente difícil para Juliana. Quando ela tinha 12 anos, contam as irmãs, elas foram mantidas trancadas em um quarto por mais de um mês para não serem vistas por autoridades dos direitos da criança que estavam à procura de Celeste a pedido de sua mãe, que abandonara o culto. Quando Juliana fez 13 anos, pouco depois da frustrada materialização do apocalipse, ela cresceu e amadureceu rapidamente, chegando a medir seus atuais 1,80 metro. Foi considerada rebelde por seus “tios e tias”, como exigiam que chamasse seus pais adotivos, que passaram a falar que ela não era do tipo que seguia o rebanho.

Aos 18 anos, em 1999, Juliana teve uma grave anorexia (“Meu peso era a única coisa que eu podia controlar”, diz). Naquela época, o clã estava vivendo em Dakar, no Senegal, e Juliana trabalhava como modelo de passarela, voltando para a casa da Family International à noite. Ela sabia que precisava sair daquela situação. Não havia nada que a impedisse. Kristina tinha sido retirada da seita por sua mãe quando tinha 12 anos, e Celeste acabou abandonando o grupo aos 25, quando já era mãe. Juliana se sentia dividida porque não queria abandonar seus irmãos mais novos; mas, em 2005, quando sua irmã Davida, então com 23, cometeu suicídio, Juliana decidiu que era hora de se mandar.

Ela se mudou para a Inglaterra em 2006 para rever Celeste e Kristina e escrever o livro. Matriculou-se na Universidade de Bristol e criou uma instituição beneficente chamada Rise International – que desde então se fundiu com a fundação Safe Passage – para defender os interesses de crianças confinadas em seitas religiosas abusivas. Em 2009, ano em que se formou na faculdade, ela se mudou para Itália. “Precisava escapar do meu próprio livro e ir para algum lugar onde fosse uma desconhecida”, diz.

Para Juliana, o maior suplício veio com as inesperadas desvantagens de sua reputação pessoal. Apesar de ter escrito um best-seller, de ter fundado uma instituição beneficente e de ter se tornado uma atleta campeã, tudo com apenas 33 anos, muitas pessoas ainda a vêem como uma mulher com um passado sórdido. Ela acha que isso tenha gerado as fofocas no ambiente de trabalho quando ela tentou um emprego normal na área de cuidados geriátricos no Reino Unido. E, para ela, ainda assusta e afasta patrocinadores.

Juliana ainda mantém contato com a mãe, que vive no Vietnã. E surpreendentemente, ela e as irmãs vêem ocasionalmente o pai, que continua vivendo em Uganda e trabalhando como produtor de rádio e TV (ele decidiu não me dar nenhuma entrevista para esta reportagem). Em dezembro passado, conta Juliana, ele compareceu à festa de Natal que ela celebrou em Sorrento com muitos de seus irmãos. É muita informação para processar.

NÃO MUITO TEMPO depois do retorno de Juliana de sua pedalada pelo mundo, Mike lhe falou sobre outra competição que ele estava organizando para a primavera de 2013, chamada Transcontinental – cujo percurso de inauguração uniria Londres a Istambul. Trinta e um ciclistas atravessaram a Europa pedalando quase 3.300 quilômetros sem apoio, cada um deles escolhendo sua própria rota, tendo apenas que transpor os Alpes pelo Passo dello Stelvio, a 2.758 metros de altitude, no norte da Itália. Juliana foi a única mulher. Ela terminou na nona colocação, com uma média de 280 quilômetros por dia, durante 12 dias.

Depois, em junho do ano passado, Mike e Juliana participaram da primeira edição da TransAmerica, uma competição meio underground de 6.810 quilômetros que largou em Astoria, no Oregon, atravessou as Montanhas Rochosas, seguiu em direção ao leste e terminou em Yorktown, na Virginia. O percurso acompanha a rota mais popular de travessia dos Estados Unidos de leste a oeste. Não há taxa de inscrição e não há prêmio em dinheiro, muito menos autorização para se organizar a prova.


FIÉIS: Integrantes da seita Children of God, em Miami, em 1978
(Foto: Glasser/AP)

Diferentemente da famosa ultramaratona de ciclismo Race Across America (RAAM), competição que existe há 33 anos e na qual os competidores contam com vans e equipes de apoio, na TransAmerica – assim como outras competições similares, entre elas a Tour Divide e a Arizona Trail Race – os participantes têm que levar seus pertences na bike, sem contar com nada de apoio, nem ao menos um PC com água. Os ciclistas podem apenas usar a infraestrutura e os serviços disponíveis ao longo do trajeto, como restaurantes, postos de gasolina, lojas e oficinas de bike. É um retorno aos velhos tempos das Grandes Voltas, à era pré-guerra do Tour de France, quando os ciclistas tinham que arrebatar a maior quantidade de quilômetros que pudessem antes de cair no sono.

A TransAmerica começou no dia 6 de junho. No segundo dia, Juliana caiu, voando sobre o guidão de sua bike. “Ela apenas nos enviou esta mensagem de texto: ‘Tombo feio’”, diz Mike Dion, diretor do documentário Inspired to Ride. Juliana, como ficou sabendo depois, tinha quebrado uma costela e estava com um hematoma enorme na perna. “Ela me disse: ‘Eu já quebrei costelas antes; só vai piorar’”, lembra o diretor. “Então simplesmente seguiu em frente.”

Alguns dias depois, em Montana, o canote de Juliana começou a escorregar. Ela tinha zoado o parafuso que segurava o selim e, como se tratava de um modelo usado apenas na Europa, não era possível substituí-lo ao longo do percurso. “Ela apertava o tal parafuso com toda a força, mas uma hora depois o selim descia novamente”, conta Mike Dion. “Parecia um adulto em uma bike de criança, pedalando com os joelhos altos. O que ela estava fazendo com seus joelhos era insano. Há algo nela, em termos físicos e mentais, que faz com suba na bike e pedale sem parar.”

Ciclistas que topam esses desafios longuíssimos costumam mencionar que vivenciam um tipo de realidade paralela, uma espécie de estado religioso que ocorre durante à noite, sob o globo reluzente das lanternas de cabeça. Acumulando quilômetros sobre estradas vazias, suas pernas se transformam em motores incorpóreos girando a 30 km/h enquanto seus cérebros entram em um estado meditativo. Para Juliana, esse movimento constante dá um basta na apatia que, caso contrário, ela sentiria na vida cotidiana se não pedalasse.

“Fico entediada quando passo muito tempo no mesmo lugar”, diz. “Preciso sentir que estou realizando alguma coisa. Sempre tenho uma sensação de urgência, como se o tempo não estivesse do meu lado ou estivesse se esgotando. E sempre tenho a sensação de que tenho que alcançá-lo.”

Acostumada a recuperar as energias com bolas de mussarela de búfala e expressos do sul da Itália, Juliana não estava preparada para atravessar o grande deserto gastronômico que é o meio-oeste norte-americano. “Você está na estrada, totalmente sozinha, e comendo as piores comidas da Terra”, ela diz. “Eu entrava em um posto de gasolina e ia apenas agarrando o que via pela frente.” Juliana preferia alimentos com amendoim ou manteiga de amendoim, e estava grata à atual moda da água coco.

“Em determinado momento, a estrada parecia imaterial”, conta. “Sombras me perseguiam, árvores se transformavam em animais selvagens, pessoas saltavam na minha frente, mas quando eu olhava novamente já não havia ninguém lá. Nada parecia real.” Perto do final da competição, em Virginia, Juliana acordou com o brilho das luzes e o barulho da buzina de um caminhão que vinha na sua direção. Ciclistas que caem no sono em cima de suas bikes são um dos grandes perigos desse tipo de competição.

Dado o sucesso repentino de Juliana, ciclistas de ultradistância começaram a dizer em fóruns online que, com seus tempos e velocidade média, ela provavelmente não seria tão rápida quanto as melhores ciclistas da RAAM, que fazem em média 80 quilômetros a mais que Juliana por dia. Juliana rebate chamando atenção para o fato de que sua bike está carregada com tudo que ela precisa para sobreviver na estrada e dormir ao relento. “Na RAAM, você conta com uma equipe que te dá bebida e comida na hora certa”, rebate ela. “Onde fica a aventura em meio a isso?”

No final, 25 dos 43 ciclistas que tinham largado cruzaram a linha de chegada. Mike ganhou com um tempo de 17 dias, 16 horas e 17 minutos. Juliana estava apenas três dias atrás e ficou empatada com outro ciclista em quarto lugar, com um tempo de 20 dias, 23 horas e 46 minutos. Ela chegou 16 dias antes da outra competidora feminina, a ciclista alemã Franziska Hollender. “Sua vitória entre as mulheres não surpreende”, diz Mike. “Mas foi uma surpresa o quão perto ela chegou dos primeiros competidores da categoria geral da prova.” Para conseguir esse resultado, Juliana pedalou as últimas 36 horas sem parar para dormir, percorrendo 800 quilômetros de uma tacada só.

NAS PLANÍCIES ITALIANAS do sul de Salerno, tive que dar o meu melhor para ficar na roda de Juliana. Ela não é arrebatadoramente rápida, mas é potente. Como o também ciclista alemão Jan Ullrich, estrela do Tour de France anos atrás, ela prefere escalar montanhas usando a coroa grande da bike em vez de mudar para marchas mais leves e aumentar a cadência do giro. Ela não treina com outras mulheres, e raramente com homens. “Eles não conseguem me acompanhar”, diz. Quando ela está em um pelotão, o ritmo costuma aumentar devido a sua presença. “Existe agora certa expectativa de que eu seja invencível”, confessa. “É muita pressão.”

Essa região da Itália é um sonho para ciclistas de qualquer parte do mundo. As estradas são asfaltadas e se expandem, como as teias de uma aranha, em todas as direções – subindo montanhas, ao longo do plano litoral e através de parques naturais repletos de ruínas romanas. No primeiro dia, aquecemos com 120 quilômetros, e depois pedalamos 200 km em cada um dos outros dois dias. Foi agradável recordar quanto asfalto uma pessoa pode percorrer em cima de uma bike se não tem que estar em nenhum outro lugar.


PASSADO DIFÍCIL: Aos 18 anos, Juliana teve anorexia ("meu peso era
a única coisa que eu podia controlar") (Foto: Harry Borden)

Juliana torceu o joelho em um tombo em dezembro, porém em fevereiro já estava de volta aos treinos. Ela queria bater seu próprio recorde de 12 dias na Transcontinental, que estava prevista para receber 250 ciclistas no mês de julho. Depois, ela espera estabelecer um novo recorde na travessia da parte mais larga da Itália, entre a França e a Eslovênia, em menos de 24 horas. E em setembro, provavelmente, será a única mulher a pedalar sozinha e sem apoio a Race Across the Dolomites, uma competição sem paradas de cerca de 650 quilômetros, que cruza 16 passos de montanha e tem 15.850 metros de desnível positivo. Talvez depois ela tente bater o recorde de pedalada no trajeto que separa Fairbanks, no Alasca, da Terra do Fogo, no Chile. Ela ainda não decidiu com certeza.

Entretanto uma coisa é certa: Juliana não é capaz de ficar quieta num canto por muito tempo. Essa possibilidade a aterroriza, como se estivesse sempre tentando evitar uma insistente infelicidade que só ganha terreno quando ela está parada. Ou talvez ela esteja simplesmente recuperando o tempo perdido.

“Pergunto-me quantas pessoas por aí não terão um potencial escondido dentro de si, com o qual provavelmente nasceram, porém nunca encontrarão uma chance de descobrir”, diz. “Eu estou apenas começando.”

Ouvindo-a falar assim, fico com a sensação de que ela poderia continuar seguindo para sempre.







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